Resenha: Herdeiras do mar – Mary Lynn Bracht
“Herdeiras do mar”
Mary Lynn Bracht
Tradução: Julia de Souza
Paralela – 2020 – 304 páginas
Quando Hana nasceu, a Coreia já estava sob ocupação japonesa, e por isso a garota sempre foi considerada uma cidadã de segunda classe, com direitos renegados. No entanto, nada diminui o orgulho que tem de sua origem. Assim como sua mãe, Hana é uma haenyeo , ou seja, uma mulher do mar, que trabalha por conta própria seguindo uma tradição secular. Na Ilha de Jeju, onde vivem, elas são as responsáveis pelo mergulho marinho ― uma atividade tão perigosa quanto lucrativa, que garante o sustento de toda a comunidade.
Como haenyeo, Hana tem independência e coragem, e não há ninguém no mundo que ela ame e proteja mais do que Emi, sua irmã sete anos mais nova. É justamente para salvar Emi de um destino cruel que Hana é capturada por um soldado japonês e enviada para a longínqua região da Manchúria.
A Segunda Guerra Mundial estava em curso e, assim como outras centenas de milhares de adolescentes coreanas, Hana se torna uma “mulher de consolo”: com apenas dezesseis anos, ela é submetida a uma condição desumana em bordéis militares. Apesar de sofrer as mais inimagináveis atrocidades, Hana é resiliente e não vai desistir do sonho de reencontrar sua amada família caso sobreviva aos horrores da guerra.
Em Herdeiras do mar, Mary Lynn Bracht lança mão de uma narrativa tocante e inesquecível para jogar luz sobre um doloroso capítulo da Segunda Guerra Mundial ainda ignorado por muitos.
Essa será a menor resenha que escrevi para este site e não será porque não gostei do livro. Sei que quando me empolgo pelo livro, tenho costume de escrever resenhas longas e que termino sendo redundante diversas vezes, mas a verdade é que “Herdeiras do Mar” tirou tudo de mim, toda minha habilidade de surtar, de falar motivos para vocês lerem, toda minha capacidade de me comunicar está presa em meu coração neste momento, junto com tudo que este livro me fez sentir – e não foi pouco.
Hana tem dezesseis anos e não conhece nada além de uma existência vivida sob a Ocupação. O Japão anexou a Coreia em 1910, e Hana fala japonês fluente, estuda a história e a cultura japonesas, mas é proibida de falar, ler ou escrever em coreano, sua língua nativa. Ela é uma cidadã de segunda classe em seu próprio país, com direitos de segunda classe, mas isso não diminui seu orgulho em ser coreana. Hana e sua mãe são haenyeo, mulheres do mar, e trabalham por conta própria. Vivem numa pequena aldeia na costa sul da Ilha de Jeju e mergulham numa enseada que não é visível da estrada principal que leva à cidade. O pai de Hana é pescador. Ele navega o Mar do Sul com os outros homens da aldeia, escapando dos barcos de pesca imperiais que saqueiam as águas costeiras da Coreia em busca de produtos para repatriar ao Japão. Hana e sua mãe só interagem com os soldados japoneses quando vão ao mercado vender a pesca do dia. Aquilo dá uma sensação de liberdade que só pode ser desfrutada por poucas pessoas no outro lado da ilha, ou mesmo no continente, a mais de cem quilômetros ao norte. A Ocupação é um assunto tabu, sobretudo no mercado; somente os corajosos ousam abordá-lo e, ainda assim, apenas aos sussurros e por trás das mãos em concha. Os aldeões estão cansados dos altos impostos, das doações forçadas ao esforço de guerra, da captura de seus homens para lutar na linha de frente e de suas crianças para trabalhar em fábricas no Japão.
Há tempos vejo diversas pessoas falando sobre o livro, mas confesso que não tinha encontrado coragem de lê-lo porque sabia que a história iria me pegar – mas o que essa história causou foi além do esperei. A tristeza que sinto não pode ser transcrita aqui, se perdendo na comovente história de duas irmãs separadas pela ocupação de um país e homens vis. Esse livro precisa ser lido e precisa chegar a mais pessoas, por mais receio que você tenha como tive um dia da leitura me impactar. Todos precisam conhecer a história das mulheres Coreanas e o que muitas sofreram. Você precisa conhecer a história de Hana e Emi, que pode até não ser real, mas retrata diversas outras Hanas e Emis.
As histórias das duas irmãs são contadas alternadamente em linhas temporárias bastante espaçadas entre si: enquanto Hana está em 1943, temos Emi em 2011. Como a sinopse muito bem já diz, a Coreia está ocupada pelo Japão, e Hana, com 16 anos, faz exatamente o que sua mãe lhe ensina: proteger a irmã, Emiko, de 9 anos, de ser sequestrada por um soldado japonês. Capturada no lugar de Emi, Hana é levada para a Manchúria para se tornar uma “mulher de consolo” – e só de escrever este termo já sinto uma raiva imensa porque o que Hana e milhares de jovens Coreanas sofreram se chama na realidade tráfico sexual, sendo obrigadas a se submeterem a estupros diários por soldados enquanto a segunda guerra mundial acontecia.
“Sempre olhe para a praia quando voltar à superfície, senão você pode perder o norte”, a mãe disse, virando o rosto de Hana para que ela enxergasse a terra. Na areia, sua irmã estava sentada, protegendo os baldes que continham a pesca do dia. “Procure sua irmã depois de cada mergulho. Nunca se esqueça disso. Se puder vê-la, você estará segura.”
Emi fica na ilha de Jeju, terra Natal das irmãs, lidando com as sequelas do sequestro de sua irmã em sua família. Irmã mais nova, destinada a também ser uma haenyeo, que eram mulheres com habilidades de mergulho invejáveis, capazes de prenderem a respiração mais do que normalmente conseguimos, exatamente como sua mãe e sua irmã mais velha foram antes dela. A garota sente que há algo faltando – uma parte que agora vive escravizada em outro continente, sofrendo e tentando encontrar um jeito de voltar para sua vida e sua família. Já em 2011 e idosa, ainda nutre esperança de juntar seus pedaços em um protesto que será feito em Seul, cidade na qual encontra seu filho e seu neto, sempre com aquela sensação de que nada está completo.
Primeiro (e único) livro publicado em 2018 da autora Mary Lynn Bracht, norte americana descente de coreanos e que mora em Londres, fiquei impressionado com a crueza da trama, a mira em toda tristeza e dor que uma trama assim pode nos entregar. Não pense que há vulgaridade aqui – há somente a crueldade e uma trama capaz de embrulhar o estômago e prender o leitor a uma hipotética tentativa de encontrar sentido em tamanha violência. A narrativa é forte e intensa, e por mais que estejamos sem nenhum motivo para tal, a esperança continua nos seguindo, exatamente como a determinação de Hana continua com ela.
“Agora você é a protetora dela, Hana”, a mãe disse em tom sério.
Hana olhou fixamente para sua irmãzinha bebê e esticou o braço para fazer carinho no tufo de cabelo preto que brotava de sua cabeça.
“Ela é tão macia”, disse, admirada.
“Você ouviu o que eu disse? Agora você é uma irmã mais velha, e junto com isso vêm algumas responsabilidades. A primeira delas é a de proteção. Eu não vou estar sempre por perto; mergulhar no mar e vender no mercado nos mantém alimentados, e vai ser seu papel cuidar da sua irmã daqui para a frente, quando eu não puder. Posso contar com você?”, a mãe perguntou em tom grave.
Hana recolheu a mão. Ela baixou a cabeça e respondeu com obediência.
“Sim, mãe, vou protegê-la. Eu prometo.”
“Promessas são para sempre, Hana. Não se esqueça.”
Quando falei que seria a menor resenha que já escrevi, não menti porque não tenho a menor condição de ser analítica ou imparcial nesta resenha. Esse livro é um livro cruel, que traz cenas gráficas de violência sexual (então fica aqui o alerta de gatilho e insisto nisso!) a ponto de me incomodarem, mas que depois se mostram necessárias para entendermos que o que estava se perdendo ali não era a inocência de um corpo, mas de uma alma, e é por isso que esse livro me atingiu dessa forma: é uma história que segue os caminhos de dezenas de jovens que, no passado, sofreram violências que sequer consigo imaginar, marcadas e separadas das pessoas que amavam por pessoas que acreditavam que podiam fazer tal atrocidade. É a reconstrução dessas mulheres da melhor forma como puderam e encontraram.
A esperança e ligação das irmãs é a única forma de se agarrar a alguma ideia de que há o bem aí fora, mesmo em um mundo tão errado e torto quanto o que vivemos e que continua a perpetrar tantos erros monstruosos. O mais assustador é que não discutimos sobre estes crimes de natureza sexual na Segunda Guerra – e deveríamos. Deveríamos olhar para trás e aprendermos com o pior que podemos fazer com outros seres humanos para deixarmos de sermos os vilões de nossa própria espécie, mas parece que a cada dia que se encerra, nos condenamos mais e mais a este lugar.
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