“Carrie”(Coleção Biblioteca Stephen King)
Stephen King
Suma – 2022 – 592 páginas
Tradução: Regiane Winarski
Arte da capa: Alceu Chiesorin Nunes
Carrie White é uma adolescente tímida, solitária e oprimida pela mãe, cristã ferrenha que vê pecado em tudo. A rotina na escola não alivia o dia a dia em casa. Para os colegas e professores, ela é estranha, não se encaixa e, por consequência, é alvo constante de bullying.
O que ninguém sabe ainda é que, por trás da aparência frágil e indefesa, Carrie esconde um enorme poder: ela consegue mover objetos com a mente. Trancar portas. Derrubar velas. Dom ou maldição, isso mudará para sempre o destino das pessoas que algum dia lhe fizeram mal.
Antes de começar a ler “Carrie”, você precisa saber que a narrativa não é somente contada pelos olhos de um narrador onipresente que segue a protagonista (ou em alguns outros pontos, outros personagens principais) e sim também por documentos de uma comissão que investiga uma tragédia que aconteceu na cidade de Chamberlain, no estado do Maine (que, obviamente, é a cidade natal de Carrie e sua mãe), trechos de um livro escrito por uma sobrevivente, trecho de um artigo escrito por outras sobrevivente, entrevistas com pessoas que entraram em contato com a garota ao longo de sua vida e diversas passagens que ajudam a montar o quebra-cabeças dessa narrativa – e isso é uma reclamação de vários leitores que já vi por ai em resenhas, já como a narrativamente obviamente não é cronologicamente linear. Isto, para mim, é, de longe, um trunfo de King, que nos dá informações sobre os personagens que nos faz ver melhor como os acontecimentos se desenrolaram, já como que ao final da leitura fica claro que se não fosse assim e somente seguíssemos Carrie, não teríamos todas as informações que temos ao concluir a última pagina. A outra informação que você precisa ter é que “Carrie” foi o 1º livro escrito por King, então tenha isso em mente que falarei sobre a escrita dele mais a frente. O ano era 1974 e ali estava nascendo um dos maiores escritores de nossa época. Ainda bem.
A sensação de tristeza que esse livro traz quando a história se encerra não é pouca e é com esse sentimento de tristeza que estou escrevendo esta resenha. Se você, que me lê, espera um livro repleto de acontecimentos bombásticos e terror que todos leitores esperam do King, eu te digo para repensar antes de ler “Carrie” porque ele não é um livro de terror – digo, ele é um livro de terror, mas o terror humano. Claro, há sim o elemento sobrenatural da telecinesia de Carreie (isto não é spoiler, tá na sinopse!) e a promessa de uma grande catástrofe, mas, acima disso tudo, temos o elemento do horror humano, aquele tipo de horror que vemos no dia a dia entre pessoas sendo más e mesquinhas umas com as outras e um relacionamento abusivo no máximo entre mãe e filha. É triste porque Carrie era só uma garota de 16 anos querendo ser amada e encontrou o horror em todos lugares que deveriam lha acolher e amar.
Carrie continuou andando pela rua na direção da casinha branca com janelas azuis. O sentimento familiar de ódio, amor e medo estava fervendo dentro dela. Tinha hera subindo pelo lado oeste do bangalô (elas sempre chamaram de bangalô porque “casa branca” parecia uma piada política e a Mamãe dizia que todos os políticos eram safados e pecadores e acabariam entregando o país para os Vermelhos Ímpios, que colocariam todos os que acreditavam em Jesus, até os católicos, na frente do paredão), e a hera era pitoresca, ela sabia que era, mas às vezes a odiava. Às vezes, como agora, a hera parecia uma mão gigante grotesca coberta de veias enormes que tinha surgido do chão para segurar a casa. Ela se aproximou arrastando os pés.
A trama de Carrie se passa em 1979 enquanto ela frequenta a escola Ewen de Ensino Médio, então não esperem celulares e nem tecnologia nenhuma aqui, enquanto há passagens de livros que foram publicados nos anos subsequentes. Ah, eu deveria ter falado isso também, mas vou começar falando da trama e já dar o recado: esqueça os filmes baseados nessa obra. Sério. Vi todos e nenhum, absolutamente NENHUM faz jus ao texto. Não importa as atrizes, não importa as mudanças na trama, não importa o ano e a modernização da trama: o que não faz jus é mesmo ao sofrimento e dor que Carrie passa porque no livro fica bem claro que ela não é a garota padrão. Ela está acima do peso, com espinhas e um jeito introvertido causado por anos de bullying. Os livros sempre padronizaram as atrizes que fizeram a Cassie, enquanto o livro chega até mesmo a ser cruel com a personagem, narrando sempre o quanto a garota não estava dentro dos padrões aceitáveis para ser considerada “bonita”.
Em um mundo perfeito (ando falando muito sobre um mundo melhor em minhas resenhas. Talvez seja pelo momento atual da humanidade, mas estou divagando agora), Carrie não iria sofrer o que ela sofre, mas não estamos no mundo perfeito e muito menos estamos melhorando como humanidade e sociedade: Carietta “Carrie” White é constantemente humilhada desde que conseguiu, por muito esforço, frequentar a escola contra toda vontade de sua mãe, uma mulher amargurada e claramente fanática religiosa, que ve pecado nas mínimas coisas e que me provoca os piores sentimentos possíveis. Digo com facilidade que Margaret White, a mãe de Carrie, é uma das maiores vilãs de todos livros de King pelo simples fato de que se recusa a sequer pensar na filha e tentar entender o que acontece com a garota e como poderia acontecer. Ela não queria Carrie misturada com o mundo mas teve de aceitar, e Carrie sofreu bullying desde o 1º dia que foi para a escola e se ajoelhou no chão do refeitório para agradecer a refeição que iria comer. Claro que nenhuma criança ou adolescente iria “perder” a oportunidade de zoar uma cena dessas, e claro que isso jogou um estigma na garota, que foi crescendo e se tornando mais e mais alvo de todos tipos de piadas cruéis. E digo cruéis de verdade.
— Tommy, você tem horas que odeia ser tão… bom, Popular?
— Eu? — A pergunta gerou surpresa no rosto dele. — Você quer dizer tipo no futebol americano e sendo presidente de turma, essas coisas?
— É.
— Não. Não é muito importante. O ensino médio não é um lugar muito importante. Quando estamos nele, achamos que é, mas quando acaba ninguém acha que foi ótimo, a não ser que encha a cara de cerveja. É assim com o meu irmão e os amigos dele, pelo menos.
Quando a trama começa, o que catalisa o “começo do fim” de Carrie e do desastre que acontece na cidade de Chamberlain é o fato da garota menstruar depois de uma aula de educação física, no chuveiro tomando banho com suas colegas de turma, no colégio. Carrie se assusta porque não tem ideia do que está acontecendo com ela e seu corpo porque sua mãe nunca a contou e a instruiu sobre. Margaret associava o corpo e todas as coisas que remotamente remetessem a sexo como sujas, e, por isso, simplesmente deixou a filha no escuro sobre o próprio corpo. Claro que a garota se assusta com o sangue que sai de seu corpo, e suas colegas de turma, sem a menor ideia do que aconteceu com Carrie em sua casa e também por terem um bode expiratório para suas próprias frustrações e vidas, fazem uma cena grotesca de bullying com a garota, jogando absorventes nela. Até mesmo a professora Rita Desjardin, que chega durante a cena, não acredita no ataque da garota e dá um tapa em sua cara (se lembre que o ano é 1979), mas depois entende que Carrie está realmente perturbada e não sabe o que está acontecendo. Carrie vai para casa encontrar “Mamãe” (sim, ela chama a mãe assim), que se decepciona ao saber que a filha menstruou – e não parece nem sequer pensar sobre a violência que a garota poderia ter sofrido.
Desjardin então toma para si a difícil missão de tentar punir as garotas que fizeram aquela cena grotesca com Carrie, e entre elas temos duas que se tornam essenciais na trama: Susan “Sue” Snell e Christine “Chris” Hargensen, sendo que uma se arrependeu da situação e a segunda, filha de um advogado, não só liderou toda cena como não sente o menor remorso. Tentando dar uma lição nas garotas, Desjardin consegue com o apoio do diretor da escola, Henry Grayle, que Christine não pudesse participar do baile que ela tanto queria, e Sue, consumida pela culpa, pede para seu namorado, Thomas “Tommy” Ross, levasse Carrie para o baile – sim, isso mesmo que você leu, a namorada pediu pro namorado levar outra garota pro baile de primavera. Obviamente isso não daria certo e se você pensa que vamos para o lado comédia romântica com Tommy se apaixonando por Carrie, você está redondamente enganado, bookstan: Tommy está apaixonado por Sue e está o motivo pelo qual aceita levar Carrie e isso não vai mudar, então se foquem no que nenhuma dessas pessoas sabe sobre garota que tanto desprezam: ela tem um poder imenso em suas mãos.
Carrie sabia vagamente que a Mamãe e o Papai Ralph haviam sido batistas em algum momento, mas abandonaram a igreja quando ficaram convencidos de que os batistas estavam fazendo o trabalho do Anticristo. Desde então, toda adoração tinha passado a acontecer em casa. A Mamãe fazia cultos aos domingos, terças e sextas. Eram chamados de Dias Sagrados. A Mamãe era a pastora, Carrie era a congregação. Os cultos duravam de duas a três horas.
Carrie sabe que é capaz de mover objetos com sua mente, mas nunca se aproveitou disso, nem mesmo nos piores momentos. Claro que seu poder sai de controle alguns momentos, como no horrível dia do bullying no banheiro, que algumas luzes explodiram. Em seu fundo, a garota se sente absurdamente só e tem um desejo desesperador de ser aceita, e é isto que a leva aceitar o convite de Tommy para o baile. Ela não tem sonhos românticos com ele e não espera que a mãe aceite fácil que ela saia um dia a noite, mesmo trabalhando como costureira e comprando com seu próprio dinheiro o tecido para fazer o vestido do baile. Margaret perdeu o marido muito cedo e preferia acreditar que a filha nunca iria se tornar uma mulher no sentido amplo da palavra, e obviamente não reage nada bem quanto Carrie lhe conta que irá sim ao baile.
Já falei mais acima que acredito que Margaret é uma das piores vilãs de King e afirmo isso sem medo algum. Desde cedo ela parecia não aceitar o segundo casamento de sua mãe (já como a comissão sobre a tragédia que se abateu sobre Chamberlain foi investigar o passado da mulher) e conheceu Ralph, que viria a ser seu marido e pai de Carrie, em uma Igreja bastante… rígida, para não usar outro termo. A crendice da mulher era tanto que ela se referia a seios como “almofadinhassujas”, então está mais do que claro que ela jamais iria aceitar bem a filha indo para uma festa pecaminosa dessas – e você vai tendo informações sobre o relacionamento dela com o finado marido e a forma como a mulher acreditava que um relacionamento deveria ser. Ao mesmo tempo que Carrie consegue se impor de uma forma inquietante, vamos lendo que Christine se juntou a seu namorado, Billy Nolan, para tentarem pregar uma peça no dia do baile, já como ela não poderia ir. Mas Billy tem também suas próprias ideias e estas podem ser ainda piores do que Christine tinha em mente, fazendo toda situação escalar em níveis que ninguém, absolutamente ninguém esperava. Ou talvez esperava, como se deixa claro no começo do livro, pelo menos em um nivel subconsciente.
— Mas quase ninguém descobre que suas ações magoam outras pessoas! As pessoas não se tornam melhores, só mais inteligentes. Quando se fica mais inteligente, você não para de arrancar as asas das moscas, só procura motivos melhores para fazer isso. Muita gente diz que tem pena de Carrie White, a maioria garotas, o que é uma piada, mas aposto que nenhuma entende como é ser Carrie White, todos os segundos de todos os dias. E elas não se importam.
Não quero deixar de falar também que fica claro nesse livro o quanto o estilo da escrita de King mudou ao longo dos anos, o que é bastante esperado. Ainda temos aqui o começo de sua vontade interminável de descrever lugares físicos com parágrafos longos demais, mas em quantidades bem menores em comparação a outros livros (“Love”, estou olhando para você!). Para quem está acostumado a ler os livros do autor, pode haver uma certa estranheza, e para quem vai começar a ler é um ponto positivo, já como vi várias pessoas reclamando da “divagação” do autor em diversos trechos de suas narrações. Aqui temos uma trama mais enxuta e mais direta, então se você nunca leu nada do grande mestre do terror e suspense, aqui pode ser um ótimo livro de introdução porque não há passagens tão pesadas como outros livros dele mas entendam bem o que estou falando: falo em comparação com outros livros do mesmo autor porque em “Carrie” há sim temas sensíveis e menções a bullying, agressões e violência.
Claro que não vou encerrar essa resenha sem falar da edição nada menos do que PERFEITA (em caps e negrito) de “Carrie” na Biblioteca Stephen King. Sétimo título do autor a sair na coleção de luxo, com capas duras emborrachadas e material extra, temos aqui um livro que é essencial para qualquer leitor e que vai se tornando mais e mais preciosa e ainda conta com uma introdução escrita pelo próprio autor com menção a uma passagem de sua própria vida, na qual ele conta sobre suas antigas colegas Tina White e Sandra Irving (obviamente não são nomes reais), que sofreram com bullying. Toda introdução é incrível de se ler, saber mais sobre quando o livro foi escrito e a importância de sua esposa, Tabitha, em sua vida, além de ver um lado mais humano de King. É incrível. E ah, a Editora Suma retirou o subtitulo “A Estranha” porque a pobre Carrie já sofreu demais e não vamos perpetuar seu sofrimento, certo? Sou suspeita pra falar, a Suma é mesmo meu selo favorito da minha Editora Favorita, então o que eu posso falar além de que se você for fã do King como eu sou, pode começar a juntar suas moedinhas para comprar esses exemplares (e não, eles não estão mais tão acima da média do que os livros estão sendo cobrados agora, infelizmente. Se você juntar alguns cupons, você vai conseguir vários com desconto, pode acreditar – eu mesma completei minha coleção com algumas edições passadas assim). Os livros da coleção, agora com “Carrie”, são: “O Iluminado”, “Cujo”, “Metade Sombria”, “A Hora do Lobisomem”, “A Incendiária” e “Trocas Macabras”.
Ela não sabia se seu dom vinha do senhor da luz ou das trevas e, agora que finalmente entendia que não fazia diferença, ela foi tomada de um alívio quase indescritível, como se um peso enorme, carregado havia muito tempo, tivesse saído dos seus ombros.
No final das contas, o que deixo claro para você, bookstan que está lendo esta resenha, é que se você deseja conhecer mais sobre King e sua mente, você pode e deve começar por “Carrie”, não por ser o primeiro livro dele, mas sim por ser um livro que mostra os verdadeiros horrores que pessoas comuns, como eu e você podemos fazer, seja por aceitação, seja por seremos rejeitados. Não há limites para a criatividade de King, mas também temos certeza de que não há limites para a crueldade humana, e ele mostra isso com maestria nesse livro que poderia ter sido escrito nos dias atuais. Mesmo com aquele final tão triste e dolorido, eu acho que a personagem principal conseguia o que queria: ela foi aceita. Carrie merece que você a conheça e a ame.
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