Resenha: O dia escuro – Várias autoras
“O dia escuro: Contos inquietantes de autoras brasileiras”
Amara Moira, Ana Rüsche, Andréa del Fuego, Carola Saavedra, Cidinha da Silva, Dia Nobre, Eliana Alves Cruz, Fabiane Guimarães, Flavia Stefani, Jarid Arraes, Laís Romero, Lygia Fagundes Telles, Marcela Dantés, Maria Valéria Rezende, Mariana Salomão Carrara, Micheliny Verunschk, Natalia Borges Polesso, Natércia Pontes, Socorro Acioli, Trudruá Dorrico.
Compiladoras: Fabiane Secches e Socorro Acioli
Arte de capa: Luciana Facchini
Companhia das Letras – 2024 – 232 páginas
“Será que é possível escrever um conto de terror quando a realidade parece um conto de terror?”, é o que pergunta a narradora de Carola Saavedra em um dos vinte textos reunidos nesta coletânea de histórias sombrias.
Uma mulher acha um dedo na praia. Um homem em situação de rua agoniza na calçada. Uma menina tem certeza de que sua mãe foi trocada por outra. Um herdeiro escravocrata enlouquece com espíritos do passado. Uma criança brinca com a amiga sem saber que já morreu.
Essas são algumas das inquietantes histórias contidas nesta coletânea organizada por Fabiane Secches e Socorro Acioli para levar o debate sobre terror latino-americano a um novo patamar. São textos que causam medo, angústia, repulsa ou assombro, e têm como único ponto comum o fato de terem sido escritos por mulheres.
Ao reunir contos de vinte autoras brasileiras de diferentes regiões do país, familiarizadas ou não com a literatura do gênero, O dia escuro tenta responder à pergunta: “O que nos aterroriza hoje?”.
Não me lembro de ter lido algo algo nos últimos anos que me deixou tão inquieta como alguns contos específicos desta coletânea me deixaram, mas não deveria esperar diferente ao ler os nomes das autoras, algumas bastante conhecidas – e que inclusive já resenhei diversas para o site, entre elas Natércia Pontes, a qual resenhei “Os Tais Caquinhos” (leia sem spoilers clicando AQUI). Temos ainda um conto de Micheliny Verunschk, que a Ju já resenhou dois livros “O Som do Rugido da Onça” e “Caminhando com os mortos” (leia sem spoilers clicando AQUI). Natalia Borges Polesso também se faz presente e dela já resenhei 2 livros, “Corpos Secos” e “Condições ideais de navegação para iniciantes” (leia sem spoilers clicando AQUI). Temos ainda Fabiane Guimarães, que é uma autora que particularmente gosto bastante e já resenhei dois de seus livros, “Apague a luz se for chorar” e “Como se fosse um monstro” (leia minhas resenhas sem spoilers clicando AQUI). Marcela Dantés conheci este ano com “Vento Vazio” (leia minha resenha sem spoilers clicando AQUI) e, por fim, temos a resenha de “Redemoinho em dia quente”, de Jarid Arraes (e você pode ler minha resenha sem spoilers clicando AQUI) – tudo isso para te dizer que são autoras que conheço, gosto e consumo, algumas nem resenhadas, todas juntas em um dos meus gêneros favoritos, o terror, entregando pequenas peças capazes de provocar questionamentos e medo real.
Como todo livro de contos, há diferenças gigantescas entre o modo de escrita, o tom, o tamanho e a motivação de cada conto, mas me permita deixar claro que cada um dos 20 contos de “O Dia Escuro” é realmente assustador em seu gênero, porque sim, também há mudança de gênero entre eles. Fica claro também que o tamanho dos contos são curtos, já como o livro tem 230 páginas físicas e ainda conta com uma apresentação escrita por Fabiane Secches, que se intitula “Luz e Sombra”, atestado algo sobre os contos que posso afirmar que não poderia ser mais verdade: “Os contos aqui reunidos são bem diferentes entre si”, mas, mais do que isso, é nos lembrarmos que são todos escritos por mulheres, grandes nomes atuais da literatura nacional, então a pergunta principal que será respondida aqui é justamente o que nos assusta nos tempos atuais. O que te assusta, você que me lê e é mulher. Eu não sei a resposta disso, mas posso afirmar que a resposta provavelmente estará presente em alguns dos contos a seguir, dos quais falarei individualmente.
Tentei pedir ajuda. Aos dezesseis anos, cheguei a ir à delegacia, onde um escrivão cansado escutou a história e me despachou sem cerimônia, como se eu estivesse de fato louca. Curiosamente, todas as testemunhas da existência de minha mãe haviam desaparecido no anonimato. Nós não tínhamos familiares, amigos antigos, pessoas que pudessem atestar que ela havia sido substituída. Minha memória era a única prova. O grande problema das lembranças é que elas só existem dentro da gente.
O conto que abre o livro se chama “O dedo” e é escrito por Lygia Fagundes Telles, trazendo uma mulher que encontra um dedo em um dia na praia, a mistura de algo extremamente mundano com algo aterrorizante em uma leitura rápida com o ritmo que a autora por nos proporcionar. O conto a seguir é escrito pela incrível Micheliny Verunschk e se chama “O reino lá de fora”, que é um dos melhores desta seleção por misturar o luto, o sobrenatural e o desespero em poucas páginas capazes de acertar o leitor com tudo: Alice perdeu a irmã Karen em um atropelamento, e os pais, tentando manter a segurança da filha, se mudam para uma casa afastada, onde a garota começa uma amizade com uma garotinha que parece que não ter casa e diz conhecer sua irmã. O final ainda me assombra – parabéns, Micheliny. Em “Melhor nada saber”, de Maria Valéria Rezende, somos apresentados a Maria Flor, uma garota que termina se perdendo em seus próprios desejos e as expectativas colocadas sobre seus ombros. Já “Roma”, de Andréa Del Fuego, temos os gêmeos Alcides e Alcebíades, apresentando uma trama tão curta, impactante e sinistra em um amor pelo fogo que me pegou desprevenida.
“Chorona”, de Natércia Pontes, foi realmente o conto que mais entrou em meus ossos. Em um conto curto sobre uma mulher que assiste um filme sobre a lenda da Chorona (sim, aquela do filme do universo dos filmes “Invocação do Mal”) e que se questiona o que poderia acontecer para uma mãe matar os filhos, até chegar a se imaginar naquele lugar – arrepiador demais. Então temos o conto de Fabiane Guimarães, uma autora nacional que já tem minha atenção total, que se chama “A troca” – e para quem leu a sinopse, sabe que o conto no qual a filha acredita que trocaram a sua mãe. Flertando com a psicose, a protagonista Luciana tem certeza de que a mulher que mora em sua casa, mãe da sua irmã e esposa do seu pai, não é a mesma mãe que ela teve e conheceu, e confesso que queria poder perguntar a ela milhares de coisas que terminei o conto me questionando, mas, se querem spoiler, pra mim, fica bem claro no final a resposta da pergunta da personagem em um dos melhores contos para mim. “Profundeza”, de Eliana Alves Cruz, traz Enrico Oiro Terceiro, um herdeiro de uma família que explorava minas, enlouquecendo com o peso de toda exploração e mortes nas costas de sua família, no mais puro clima de terror e um tanto de gore.
A minha mãe, quando eu nasci, caiu de cama. Foi o que o meu pai me disse. Depressão pós-parto, esse mal comum, não era culpa dela, muito menos culpa minha, eram os hormônios, um desequilíbrio químico, uma coisa que não se controlava. Uma coisa que não era bonita de ver, mas uma coisa que passou. Não sei como, ninguém sabe direito, esses negócios que ninguém explica, que o mundo dá mas depois cobra de volta. Eu quis saber tudo e perguntei muitas vezes para ela, que sempre desconversou. Não gosto de falar disso, filha, também nem foi nada sério, e a gente tá bem. Não tá? Eu perguntei uma vez só para o meu pai, que me sentou no sofá lá pelos nove anos e disse tudo, dos gritos, dos arranhões na pele, da camisa de força que ele chamou de contenção, essa palavra que eu ainda não tinha escutado mas que a internet me mostrou que era uma camisa de força, as mangas brancas compridas amarradas nas costas. As fotos dos loucos com cara de loucos babando berrando e a contenção, isso ele não contou, mas eu vi. A cara da minha mãe tem qualquer coisa de louca. Ele contou do dia que ela disse que queria morrer, que queria que eu morresse, que todo mundo morresse, e talvez isso ele não precisasse ter me contado. Contou.
“Coração da aurora”, de Ana Rüsche, é um conto quase lirico sobre uma garota e sua família que mora à beira do mar, o relacionamento tóxico entre mãe e filha, pais ausentes, irmãos omissos e um final agridoce, mesmo sendo lindíssimo. Agora temos o o conto que mais me assustou pelo terror e pela realidade que nós, mulheres, sofremos: “Cão dos infernos”, de Laís Romero, trouxe uma analogia que qualquer uma de nós será capaz de entender e desde que comecei a ler o livro, eu já esperava um conto de terror com alguma analogia a este tema, e confesso que Laís superou minhas expectativas: claustrofóbico, sem nada explicito (mas claro o suficiente para entendermos muito bem) e chocante, temos uma garota de 10 anos recebendo uma visita de um cão dos infernos, visita esta que a acompanha por muitos anos em sua vida personificada em sua personalidade arredia. Não preciso falar muito mais, só dizer que vocês me entenderão – e o final é uma explosão de tristeza com loucura, muito como acontece ai fora. “Pintinho verde”, da já consagrada Jarid Arraes, traz uma protagonista deveras peculiar – tão peculiar que nos faz questionar se ela tem algum problema de personalidade em um conto de terror muito bem executado.
Entrando também no meu top de melhores contos, temos “Os pássaros”, de Natalia Borges Polesso, com Claúdia, nossa protagonista que viaja com amigas para tentar se divertir depois da doença do pai, mas está sendo atormentada por pássaros – que talvez não sejam pássaros exatamente. Este conto é um dos melhores exemplos de se usar o terror para externalizar emoções e traumas que são quase impossíveis de se conviver com. “A água me contou um segredo”, escrito por Cidinha da Silva, é um lembrete que nenhum terror superará a realidade: um corpo carbonizado e uma das mais vergonhosas passagens nacionais que estampa a desigualdade e falta de empatia que sofremos como sociedade em poucos para grafos. Marcela Dantés é a autora do próximo conto, “Gilda”, nome da protagonista que está completando 16 anos no conto mais inesperado e chocante desta seleção. “Aonde tem vento eu vou”, de Trudruá Dorrico, brinca com um futuro tecnológico, IA e um tipo de terror que muitos acreditam que pode acontecer realmente, sendo, sem sombras de dúvidas, o conto mais diferente de todos em um terror especulativo dentre histórias de terror clássico e metáforas.
Será que é possível escrever um conto de terror quando a realidade parece um conto de terror? Olho pela janela, a paisagem é a mesma de sempre, mas algo, algo se infiltra entre as flores do jardim. Talvez a nuvem que joga sua sombra inesperada, ou um movimento que não consigo precisar de onde vem. Fecho a cortina e vou até a biblioteca buscar inspiração no dicionário, mas quando passo pelo corredor, me olho no espelho e algo me chama a atenção, algo que não reconheço, no meu rosto, no meu olhar. Me aproximo da imagem, e sinto como se em meus olhos se desenhasse a forma de outros olhos, e de dentro de mim alguém me observasse. Um arrepio me percorre a espinha, ajeito o robe de chambre, aliso o bigode e sigo a passos firmes até a biblioteca. Após acender o candelabro, vou até a estante e tiro de lá o dicionário. Descubro que a palavra “terror” vem do latim terreo, e se refere a algo que faz a terra tremer. Terror é quando a terra treme sob nossos pés, anoto num caderno com a minha pluma, tremor, terremoto.
As mudanças que a sociedade aceita para recolocar os homens como sendo o padrão de tudo está presente em “Ginecomastos”, de Amara Moira, em uma sociedade na qual os homens começam a desenvolver a condição que dá nome ao conto. “Época de milagres”, de Mariana Salomão Carrara, traz uma única mulher trabalhando em uma empresa – e foi um soco pra mim, uma ideia simples e um tanto quanto assustadora, mesmo com o final. “Coma antes que esfrie”, de Flávia Stefani, Júlia vai a um jantar na casa do patrão do seu marido e vê diante de si como não reconhece o homem com quem é casada em suas escolhas e atitudes no conto mais vertiginoso e claustrofóbico de todos nesta antologia. Já “Neon”, de Carola Saavedra, apresenta uma metalinguagem sensacional: a autora se questiona sobre o que escrever e seus personagens se misturam em uma história sobre estranhos familiares e a falta de (ou total) inspiração.
“Paixão de santidade”, de Dia Nobre, é também um conto chocante sobre uma beata chamada Madalena, que chega aos extremos por sua fé, envolvendo Igreja, mortes e como a fé é capaz de deixar qualquer pessoa louca. Literalmente. E fechamos com “São Paulo é como um mundo todo”, de Socorro Acioli – e digo que eu estava bastante ansiosa para ler porque bem, é a Socorro. Para meu deleite, o conto é tudo que pensei que realmente seria: Sofia, nordestina, viaja a trabalho para São Paulo. Tentando impressionar, compra uma roupa em um brechô, mas talvez essa roupa não venha sozinha. Definitivamente, se você gosta de terror, você precisa ler este conto porque a forma como ele é escrito, sem informação demais ou menos do que deveria ter é exemplar, do tipo que te deixa amando mais ainda livros e contos.
Chegaria mais cedo, passaria no banheiro, daria um jeito no cabelo com gel, mais gel, muito gel, e estaria com a roupa nova. Comprada em São Paulo, pois assim não teria mais de ouvir que nordestinos não sabem como se vestir no frio. Uma roupa não nordestina me ajudaria a sobreviver ao treinamento com a equipe nacional de Moças do Marketing.
E o cabelo colado no couro, disso eu fazia questão. A moça disse que meu cabelo bagunçado e queimado de praia dava gatilho nela, vontade de voltar pra minha terra. Ela foi a Salvador. Eu moro no Ceará. Em São Paulo, devem usar outro mapa, eu que sou ignorante.
Todos os contos aqui presentes são curtos, o que claramente acelera a leitura, que é rápida mesmo com a mudança de tema e escrita, que se torna claro a cada conto. Mulheres sempre são extremamente plurais e esta coletânea de contos deixa isso bastante claro, com as ideias colocadas em papel, contos tão dispares entre si com uma única perfeita a todas as autoras já citadas acima.
Falei rapidamente sobre cada um dos contos para deixar claro a diferença do clima e ambientação de cada um deles, completamente diferentes entre si, mas, de alguma forma, é justamente isso que faz este livro tão completo assim, com claridade as respostas da pergunta sobre o que nos assusta tanto. Sei que livros que não me prende me assustam muito, e saio assustada de ler “O Dia Escuro” – mas deixo claro que não por este motivo.
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