Resenha: Grande sertão: veredas – João Guimarães Rosa
“Grande sertão: veredas”
João Guimarães Rosa
Arte de capa: Alceu Chiesorin Nunes
Companhia de Bolso – 2021 – 504 páginas
Publicado originalmente em 1956, Grande sertão: veredas é uma das obras mais apaixonantes da literatura brasileira. Ao narrar o mundo através dos olhos de Riobaldo, Guimarães Rosa constrói um romance fascinante, que mescla sofrimento, luta, alegria, violência, amor e morte em uma prosa extremamente inventiva. Neste clássico arrebatador, as paisagens percorridas pelos jagunços ganham uma dimensão universal e profundamente humana. “Sertão: é dentro da gente.”
Esta edição, de bolso, conta com posfácio de Davi Arrigucci Jr., cronologia do autor e sugestões de leitura.
Não pense que esse texto é uma resenha, porque não é. Há “resenha” no título porque preciso colocá-lo em uma tag no site, mas não tenho a menor pretensão de parecer ter condições de resenhar um livro do quilate de “Grande Sertão: Veredas” porque não tenho. Não sou conhecedora da vida, não tenho conhecimento de português e sequer qualificação para falar sobre a estrutura de uma obra-prima. Sou somente uma pessoa que respirou livros a maior parte de sua vida e que agora tem a missão de falar sobre um dos maiores livros da literatura brasileira.
Publicado em 1956 por João Guimarães Rosa, mineiro, diplomata, marido de Aracy (a qual este livro é dedicado), poliglota, membro da Academia Brasileira de Letras e considerado um dos maiores escritores brasileiros, com a maior parte de seus livros e contos se passando no sertão, o imortal transformou a vida de jagunços em uma verdadeira história clássica de vida, amor, coragem, morte e tragédias, transportando o leitor para um mundo real e também imaginário, sofrendo e torcendo por personagens tão reais e complicados que provocam amor e raiva, tudo ao mesmo tempo, em uma única leitura. O tipo de coisa que só gênios conseguem fazer.
O senhor… Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas — mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro — dá gosto! A força dele, quando quer — moço! — me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho — assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza. A pois: um dia, num curtume, a faquinha minha que eu tinha caiu dentro dum tanque, só caldo de casca de curtir, barbatimão, angico, lá sei. — “Amanhã eu tiro…” — falei, comigo. Porque era de noite, luz nenhuma eu não disputava. Ah, então, saiba: no outro dia, cedo, a faca, o ferro dela, estava sido roído, quase por metade, por aquela aguinha escura, toda quieta. Deixei, para mais ver. Estala, espoleta! Sabe o que foi? Pois, nessa mesma da tarde, aí: da faquinha só se achava o cabo… O cabo — por não ser de frio metal, mas de chifre de galheiro. Aí está: Deus… Bem, o senhor ouviu, o que ouviu sabe, o que sabe me entende…
“Grande Sertão: Veredas” é uma narrativa conduzida e contada pelos olhos de Riobaldo, homem já velho, um monologo para um ouvinte que não se revela e não participa da trama, vamos conhecendo a vida do homem de forma não linear, indo para a época na qual ele se juntou a um grupo de jagunços e em passagens mais adiante na trama quando ele conheceu um garoto que viria a ser muito importante em sua vida, depois retornando ao tempo da narrativa principal. Tendo como cenários lugares fictícios e outros não, alguns ficam certos pela menção aos Rios Urucuia e São Francisco nos Estados de Minas Gerais, Goiás e Bahia durante a Velha República, época na qual o coronelismo imperou no Brasil.
Permeado por um medo constante de seus sentimentos crescentes pelo também jagunço Diadorim, Riobaldo tenta mascara o que sente e sufocar tudo, tendo certeza de que o meio machista e violento que vivem jamais aceitaria aquele relacionamento, a insegurança contrastando com sua coragem em combate. E assim vamos aprendendo mais sobre a história de amor entre Riobaldo e Diadorim, que é, definitivamente, uma das maiores histórias de amor na literatura nacional.
Do ódio, sendo. Acho que, às vezes, é até com ajuda do ódio que se tem a uma pessoa que o amor tido a outra aumenta mais forte. Coração cresce de todo lado. Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas. Coração mistura amores. Tudo cabe. Conforme contei ao senhor, quando Otacília comecei a conhecer, nas serras dos gerais, Buritís Altos, nascente de vereda, Fazenda Santa Catarina. Que quando só vislumbrei graça de carinha e riso e boca, e os compridos cabelos, num enquadro de janela, por o mal acêso de uma lamparina. Mas logo fomos para acomodar, numa rebaixa de engenho-de-pilões, lá pernoitamos. Eu, com Diadorim, Alaripe, João Vaqueiro e Jesualdo, e o Fafafa. No que repontávamos de dura viagem: tudo o que era corpo era bom cansaço. Mas eu dormi com dois anjos-da-guarda.
Os dois estão em busca da vingança pela morte de Joca Ramiro, jagunço chefe pai de Diadorim que foi morto em uma traição dos também jagunços Hermógenes e Ricardão, tudo em uma saga de sangue e coragem. Fica claro que há um paralelo entre a vastidão dos sertões e uma vereda que vai se estreitando, culminando em exatamente um caminho estreito feito por escolhas, exatamente como a vida.
Mas há diversos outros elementos na trama, como um possível pacto com o diabo – não direi de quem – e o segredo que Diadorim carrega por toda trama e somente é revelado no final, transformando a historia em uma tragedia repleta de nuances. Estudei o livro na escola, como quase todos nordestinos, e naquela época já amava o livro. Relendo para esta resenha, pude ter certeza absoluta de que é tudo que me lembrava, se não mais, a prosa quase hipnótica nos apresentando um sertão que parece que não ter fim, capaz de carregar as maiores e mais complexas histórias.
Mas estes versos não cantei para ninguém ouvir, não valesse a pena. Nem eles me deram refrigério. Acho que porque eu mesmo tinha inventado o inteiro deles. A virtude que tivessem de ter, deu de se recolher de novo em mim, a modo que o truso dum gado mal saído, que em sustos se revolta para o curral, e na estreitez da porteira embola e rela. Sentimento que não espairo; pois eu mesmo nem acerto com o mote disso — o que queria e o que não queria, estória sem final. O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito — por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia.
Como falei, esse texto não é uma resenha, é uma indicação para ler uma obra que mostra a amplidão da literatura brasileira, de como há beleza em momentos difíceis e até mesmo na vastidão do sertão marcado por rios que cortam terras e que podem ser traiçoeiros, exatamente como nossos sentimentos. Por mais abertos que os caminhos se mostrem, você devera escolher um caminho que pode se transformar em um labirinto – e o que se encontra no final, somente vivendo se saberá.
A edição que tenho é de bolso sem orelhas, mas ainda assim contem material extra, já especificados na sinopse acima. Um filme foi produzido agora chamado “Grande Sertão”, adaptando a história para os tempos atuais, dirigido por Guel Arraes e com os atores Caio Blat, Luísa Arraes, Eduardo Sterblitch, Rodrigo Lombardi e Luis Miranda, mas infelizmente não pude assisti-lo porque ficou somente uma semana em cartaz na minha cidade, não me dando oportunidade de assistir. Sobre o livro, o que tenho de afirmar é que se você ainda não leu este livro, leia. Não há como se perder em nenhum labirinto assim.
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