14.06


“Vento Vazio”
Marcela Dantés
Arte de capa: Alceu Chiesorin Nunes
Companhia das Letras – 2024 – 224 páginas

Não fosse a querida Teodora, Miguel Sem-Fim não teria encontrado um lar na Quina da Capivara, lugar em que chegou desnorteado, o corpo coberto de queimaduras. Também foi graças à amiga que conseguiu o trabalho de vigia na usina eolioelétrica. Ele parecia ter achado o prumo, mas, quando fecharam-na sem explicação, um abismo se abriu em sua consciência, trazendo à tona lembranças terríveis, que o levam ao limite da sanidade.

Nesta terra desolada, as pessoas sabem que não se deve sair quando sopra o enlouquecedor vento Vazio. Cícera o teme, mas prefere ficar no quintal quando ele chega, obstinada em cavar um buraco infinito ao redor da casa, enquanto cuida da filha ainda bebê. Já Alma não leva a sério a crendice, e a órfã Maura, menina de comportamento impulsivo e fala desconexa, requer atenção especial, com ou sem vento.

Um tríptico narrado a quatro vozes, Vento Vazio desdobra a vida desses moradores, ligados tanto pelo espaço que partilham quanto pelos fantasmas que os acompanham. Pensamentos recorrentes e lembranças que não podem ser apagadas se movem ao sabor do vento neste romance único de Marcela Dantés, no qual sentimentos represados são um convite para perder o juízo.

A literatura brasileira passa por uma fase absurdamente boa. Não conhecia a autora e assumo, mas, assim que terminei de ler este livro tive a sensação de que se passava aqui no meu Nordeste, mas não, Marcela Dantés é mineira, da capital. Fiquei pensativa porque falar sobre “Vento Vazio” vai ser um trabalho difícil porque o livro é, em sua essência, uma ideia. A ideia de que o Vento é capaz de coisas e aqui entra a minha própria vivência como nordestina do interior porque sim, já ouvi frases com “Cuidado com o vento porque ele pode…“, e se você já ouviu, acho que já entendeu onde a ideia do “Vento Vazio” pode levar a pessoa.

No pequeno vilarejo de Quina da Capivara há 8 casas e 4 personagens fortes que conhecemos de formas diferentes nesta trama. Situado a beira de uma parede de pedras, o lugar recebeu uma Usina de Ventos, ou melhor, uma Usina Eolioelétrica Experimental com somente 4 Torres brancas. Talvez tenha sido por isso que associei ao Nordeste, já como no livro não há citação explícita a nenhum estado, mas a Bahia e o Rio Grande do Norte são os grandes produtores deste tipo de energia em nosso país – e se você não sabe do que eu estou falando, você pode clicar AQUI e ler mais sobre.

É uma história boba a minha, é uma vida boba. Sou um ve­lho de quase cem anos e acho que nem tanta coisa assim me aconteceu, só um dia impossível e tudo o que veio depois. Isso já faz mais de vinte anos e a pior parte foi que eu sobrevivi.
Aqui é a Quina da Capivara, é esse o nome de um lugar que talvez nem exista. Um fim de mundo esquisito, porque quase nada acontece, mas também tudo. Porque do lado de dentro, quando a gente mora nessas casas que são tão escondidas, enfiadas nesse paredão de pedra, fica parecendo que não tem mundo lá fora. Porque a pedra, o paredão, eles protegem a gente do outro, mas é a mesma pedra imensa que não deixa o Vento Vazio ir embora e quem é que vai proteger a gente da gente?

Acho justo explicar que “Vento Vazio” é dividido em 3 partes: “O livro do Miguel”, “O livro das outras” e “O Livro da Maura”. “O livro do Miguel”, como vocês podem imaginar, é a parte que conta a história dele, de como aquele homem preto com um pouco mais de 70 anos chegou ao pequeno lugar repleto de queimaduras, gritando e atormentado pelo fogo que queimou sua casa. Foi acolhido por Teodora, mulher bondosa que sempre acolhia as pessoas que passavam pelo lugar de alguma forma. Miguel mora na Quina da Capivara há mais de 20 anos e se tornou vigia da Usina de Ventos e já está velho a ponto de se confundir com sua própria idade, em alguns momentos falando que tem menos ou mais anos, mas talvez seja a passagem do tempo – ou talvez pareça haver algo de não confiável nele, deixando o julgamento final para quem lê.

Vamos aprendendo sobre o homem de sua infância, desde sua infância e adolescência até seu casamento tardio com Tereza e o nascimento de Dalila, filha única do casal. Quando o Livro de Miguel termina, entendemos o que o levou até o lugar onde, já tão idoso, mora agora, mas não entendemos algumas motivações justamente porque ele esconde do leitor ou talvez o vento nele já soprasse há muito mais tempo do que pensávamos. O meu julgamento sobre Miguel não foi leve, que terminou condenado em meu tribunal.

Sempre te achei um pouco minha filha, mas a verdade é que você nunca foi, você nunca foi filha de ninguém, nem minha, nem da sua mãe, nem do seu pai. Uma vez ele me disse que você era filha do vento, eu não entendi nada mas sorri como se tivesse entendido, como se tivesse achado bonito, como se fosse verdade. Deus é que me livre de ser filha do Vento, esse maldito, acaba-vida, que consome as nossas noites e que deixa todo mundo exausto sem nem saber por quê. Deus te livre, também, Alma. A verdade é que acho que você é filha da terra, mas veio sem raiz. E planta sem raiz é igual bicho com asa, pássaro bonito e bicudo: voa. Sou Cícera, Alma, e só queria dizer algumas coisas antes de você voar, é o que eu vou tentar fazer aqui, eu prometo que não vai doer. Ou, pelo menos, não tanto quanto doeu em mim. Paciência, é só isso que eu te peço. E, se você for ficar, que arrumem a porta, sem demora,

Mas foi em “O livro das outras” que me apeguei a história. Com cartas escritas de Cícera para Alma, que também mostra sua visão de algumas coisas. Todas duas personagens já foram mencionadas antes na narração de Miguel, já como Cícera é vizinha dele e Alma está namorando Paulo, morador de Quina da Capivara. Cícera tem uma história forte que ressoa em muitas mulheres: não nascida no vilarejo e sim na cidade de Candeia, conhece Éder, se casa cedo e sofre uma agressão tão forte do homem que perde um olho. Como a própria personagem diz, sem o brilho da bondade de viver e querendo só se esconder, vai para o pequeno lugar, encontrando o amor de uma forma inesperada, rendendo duas filhas: Meuri e Laura. Suas cartas para Alma são a explicação de como este amor aconteceu e os motivos pelos quais ela está fazendo um grande buraco ao redor de sua casa – acredite em mim, quando você entender os motivos, você sente aquele velho ressentimento de todos seres humanos e como eles podem ser ruins. E o vento? O vento aqui aparece corroendo a mulher de dentro pra fora em uma das suas piores formas: o luto.

Eu não tenho rancor, é um sentimento pesado demais pra se carregar por aí, eu prefiro não. Mas há algum tempo eu aceitei que existem outras concepções de família, que família a gente pode escolher, que não é preciso, e muitas vezes nem é saudável, amar o pai e a mãe incondicionalmente. Porque o pai e a mãe são pessoas, também, e pessoas que podem errar, pessoas que podem ser cruéis, pessoas que podem ser incorrigivelmente o oposto de você. É o meu caso com o Sebastião e a Olga, a gente ocupa outros espaços nesse mundo. Já viram o tamanho da minha cozinha? Ela é menor que a cozinha que a Olga fez pra mim no meu quarto de brinquedos quando eu tinha uns oito anos e isso diz muito sobre a minha mãe, não diz? (Eu me lembro dela penteando os meus cabelos e dizendo Alma, você precisa continuar linda, mas você vai ter que aprender a falar um pouquinho mais baixo, mocinha — e isso diz muito sobre nós duas, eu acho).

Já a voz de Alma é a mais limpa. Mesmo atestado ser afetada e seu pai até mesmo acreditando que ela seja filha do vento, aqui temos uma personagem que vê no relacionamento com seus pais, Sebastião (grande figurão da região que Quina da Capivara fica) e Olga, um motivo de intensa frustração. Alma não se vê nos dois de forma alguma, tomando algumas decisões que até mesmo me deixaram surpresa pela radicalidade, mas a personagem me lembrou algo que é muito certo: não é porque nascemos de alguém que vamos ser amados ou amaremos aquelas pessoas. Algumas famílias não vem do sangue, vem do coração e de afinidade. É doloroso, mas simples assim.

Esse lugar onde eu moro tem cheiro estranho, cheiro de podre, cheiro de gente que já morreu. Eu moro aqui desde que nasci, ou talvez antes, já não me lembro. A usina também mora aqui desde que eu nasci, ou antes, e as pessoas que trabalham na usina são todas feias e todas fedem e dia desses eu vi aquele homem barbudo importante lá na cachoeira. Eu falei e ninguém acreditou. Ninguém me acredita.
Mas ele pulou.

Fechando o livro, temos “O livro da Maura”, que foi o mais difícil de ler, pelo menos para mim. Errática e um tanto quanto obsessiva, a personagem é tido como “doida” pela maior parte dos personagens, aparentemente incapaz de cuidar de si mesma, mesmo sendo somente uma adolescente de 14 anos, o que é complicado de entender. Sua história completa lacunas que existiam nas histórias de Miguel, Cícera e Alma, deixando claro que as ações que cada um toma em suas próprias vidas pode afetar a vida de outras pessoas em um lugar tão pequeno assim, até quando não era a intenção.

O livro ainda se encontra em pré-venda e será lançado dia 18 próximo. Tive o prazer de conversar com a autora Marcela Dantés e definitivamente vou procurar os outros livros da autora, já como este mostrou do que ela é capaz.”Vento Vazio” é o tipo de livro que você precisa investir seu tempo e confiar na narrativa porque sim, tudo irá se encaixar, como falei acima. Todas personagens têm motivos e formas de serem afetados pelo vento do título. Espero que você, ao ler, também seja.

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