“Quem vai te ouvir gritar: Uma antologia de horror negro”
Jordan Peele, John Joseph Adams e vários autores
Tradução: Carolina Cândido, Gabriela Araújo, Jim Anotsu, Thaís Britto
Suma – 2024 – 328 páginas
Jordan Peele, o visionário diretor de Corra!, Não! Não Olhe! e Nós , é curador desta antologia, um best-seller internacional. Quem vai te ouvir gritar é uma coletânea inovadora que reúne histórias de horror negro para pensar não apenas os terrores do sobrenatural, mas a realidade assombrosa das injustiças e desigualdades que nos assolam.
Um policial começa a enxergar, no lugar dos faróis dos carros, olhos enormes que lhe dizem quem deve ser parado no trânsito. Dois passageiros fazem uma viagem de ônibus que os deixa presos em uma estrada no Alabama, onde grandes perturbações os aguardam. Uma jovem mergulha nas profundezas da Terra em busca do demônio que matou seus pais. Esses são apenas alguns dos mundos presentes em Quem vai te ouvir gritar, antologia de contos editada por Jordan Peele e John Joseph Adams.
Todas as histórias reunidas neste volume surpreendem pela vivacidade imaginativa de seus universos e, ao mesmo tempo, chocam e incomodam por serem profundamente baseadas na realidade brutal do racismo e da desigualdade social.
Com introdução de Peele e uma lista admirável de escritores (incluindo N. K. Jemisin, P. Djèlí Clark, Nnedi Okorafor, Nalo Hopkinson e muitos outros), a coletânea é uma aula sobre terror que reformula e ressignifica os conceitos de horror e medo.
Com textos de:
Jordan Peele, N. K. Jemisin, Rebecca Roanhorse, Cadwell Turnbull, Lesley Nneka Arimah, Violet Allen, Erin E. Adams, Tananarive Due, Justin C. Key, Ezra Claytan Daniels, Nnedi Okorafor, L. D. Lewis, Nalo Hopkinson, Maurice Broaddus, Rion Amilcar Scott, Nicole D. Sconiers, Chesya Burke, Terence Taylor, P. Djèlí Clark e Tochi Onyebuchi.
Quem acompanha o site e nossas resenhas, sabe que eu sou a mulher do terror/fantasia/scifi da equipe, então surpresa zero quando surtei com o anúncio de que Jordan Peele, o sensacional roteirista (não podemos esquecer disto) e diretor de “Corra!” e “Us” iria fazer a compilação de um livro de contos, e surtei mais ainda quando soube que o livro viria pro Brasil pela minha Editora favorita, a Suma. A única certeza que tinha era de que iria ler este livro e traria uma resenha pra vocês porque sei que muitos ai fora também gostam do terror. A Editora Suma me mandou o exemplar e junto com ele vieram este pôster maravilhoso e adesivos desenhados por Lucas Owl Sheepe com personagens e símbolos das tramas. O livro está sendo publicado hoje no Brasil, então você ainda pode correr para garantir o seu também.
Mas também sabia que muitos seriam atraídos por este livro levando-se em conta os nomes atrelados a ele: o próprio Jordan Peele, mas também N. K. Jemisin e P. Djèlí Clark, entre outros grandes autores pretos. O que fica claro é que temos autores pretos com personagens pretos no centro, mostrando bem mais do que somente o terror sobrenatural em histórias assustadoras. Claro que também estava muito ciente de que um livro de conto com autores desse nível seriam incríveis e prenderiam a atenção, mas também sabia que as questões raciais estariam na trama de todos, permeando suas narrativas, seja no centro, seja como o próprio terror porque vamos ser sinceros: quem é capaz de fazer as maiores atrocidades existentes, entre elas o racismo? Estamos cansados de saber a resposta – os seres humanos. Como já falei em outras resenhas, o ser humano é mais assustador do que qualquer demônio e monstro e aqui também temos alguns humanos bem moralmente duvidosos. Se há um problema nestes contos, é que são todos curtos, realmente curtos, mas se você gosta de contos que vão direto ao ponto e que não se estendem, este livro definitivamente é pra você. Já eu, prolixa que sou, fiquei com o gosto de querer mais, muito mais, em diversos contos, que são 19 no total. Vou tentar falar rapidamente sobre todos, mas irei me ater a alguns que foram deliciosos de lerem. E se você se questiona sobre o nível de medo que senti lendo os contos, já digo que nenhum me tirou o sono pelo terror, mas sim pelas implicações e peso que nos faz pensar na sociedade e a forma que tratamos nossos semelhantes diferentes. Mas chega de divagar, vamos aos contos!
— O sindicato já está interferindo — diz. — O advogado dela falou com a imprensa antes de conversar com a gente; estão, obviamente, querendo uma bolada. Mas vou ter que te colocar de licença não remunerada até isso tudo passar.
Ele é bem direto. E Carl é bem direto ao entregar a sua pistola e a sua arma de choque. Não é a primeira vez que ele é obrigado a fazer serviço burocrático ou tirar licença por alguma coisa do tipo, por isso sabe que vai ficar tudo bem. A “vovozinha” não é jovem, bonita ou branca o suficiente para manter a atenção do público por muito tempo.
O prefácio é escrito por Jordan Peele e entrega a obsessão do autor por masmorras oubliettes (e para entender, você terá de ler), mas há uma fala que uso para falar sobre terror com todas as pessoas com as converso sobre: “Vejo o terror como uma catarse por meio do entretenimento.”. É exatamente assim que vejo o terror, uma forma de arte onde expressamos nossos maiores medos e traumas e muitos filmes de terror atualmente fazem metáforas com saúde mental ou culpa em formato sobrenatural – mas isso é assunto para outro post. Então somos apresentados a Carl, protagonista do conto “Olho imprudente”, de ninguém menos do que N. K. Jemisin. Policial corrupto, o homem acredita que pode passar impune obtendo vantagens em seu trabalho e escolhendo quem punirá vendo um par de olhos nos automóveis, já como está servindo como guarda de trânsito, fiscalizando a velocidade dos carros. Claro que o protagonista, um homem preto em um departamento repleto de brancos, está tendo problemas de ordem mental, mas a moralidade (ou falta dela, como mostra a quote acima) é o que realmente o guia em uma crescente de loucura que arrasta o leitor com. Um primeiro conto que mostra o que esta coletânea fará com o leitor, com a escrita excelente da autora.
O segundo conto é da autora Rebecca Roanhorse, de quem eu já tinha lido um conto em “Vampiros nunca envelhecem” e que trouxe um dos meus contos favoritos aqui. “Olho e dente” traz uma caçadora de monstros e seu irmão em uma viagem para um trabalho – e é só isso que você precisa saber sobre o conto mais cinematográfico desta seleção. Já “Diabo errante“, de Cadwell Turnbull, é o conto mais metafórico e mais psicológico de todos, contanto a história de Freddy, que está em um momento crucial de sua vida: a escolha de ir morar com sua namorada ou não. Mas a vida dele foi permeada por abandonos e a ênfase neles, dando ao homem a sensação de não pertencimento, até que começa a sentir a presença de algo sobrenatural – acho que preciso só deixar claro que este conto merecia uma resenha só pra ele e todo seu peso e espero, espero muito, que alguém ai leia e venha conversar comigo sobre. Em “Invasão dos ladrões de bebê“, de Lesley Nneka Arimah, temos uma complexa invasão alienígena entre nós, com gravidezes que são quase impossíveis de notar que não são humanas, culminando em um final que deixa o leitor querendo saber o que acontecerá a partir daquele momento. A autora já foi publicada aqui no Brasil, mas nunca havia tido contato com seu trabalho. Então temos “A outra“, de Violet Allen, traz Angela, uma mulher que viveu um verdadeiro inferno em um jogo psicológico com seu namorado ministrado por ele até que uma noite manda uma mensagem de texto, recebendo uma resposta da suposta nova namorada do tal ex, o que na verdade termina se transformando em um suposto caso de sequestro que termina em analogias sobre permanecer em um relacionamento no qual seu coração pode ser arrancado fora do peito ou talvez você tenha que arrancar o coração do outro.
Dois policiais magros chegaram, como o zelador dissera, e olharam feio para elas enquanto saíam da viatura, apesar de Pat e Priscilla nem terem tido tempo de fazer sinais de protesto. É, aqueles policiais as reconheciam. Elas sempre usavam vestidos bonitos nas manifestações — e os homens vestiam ternos e gravatas —, mas tudo que os brancos viam era a pele negra. Talvez a maioria fosse ver apenas isso para sempre.
“Lasirèn“, o conto de Erin E. Adams, conta a história de Wideline e suas irmãs Lovelie e Marie, sendo que uma é levada pelo mar. Com diversas palavras em crioulo haitiano, já como a também atriz é do Haiti, é um conto quase etéreo, uma história para crianças, mas de terror, com o titulo querendo dizer exatamente o que pensamos. Na sequência temos “O viajante”, de Tananarive Due, que se passa em Maio de 1961, em meio a segregação racial tão violenta imposta nos Estados Unidos com duas irmãs indo participar de protestos. É revoltante e enauseante a forma como a separação física se dava nos Estados Unidos em um tempo nem tão longe assim – estamos falando de 60 anos atrás – lembrando ao leitor que precisávamos aprender com o passado para nunca mais repetirmos os mesmos erros (spoiler: não estamos melhorando como sociedade como deveríamos). O terror da vida real foi maior do que qualquer outro terror que poderiam apresentar, mas, ainda assim, a autora consegue entregar uma figura misteriosa que é capaz de ajudar as irmãs quando elas caem em uma emboscada em um dos melhores contos do livro. Este conto poderia facilmente ser um livro e pesquisando sobre a autora, fiquei surpresa com a lista de títulos publicados por ela, infelizmente a maior parte não disponíveis em português.
Em “O esteta“, de Justin C. Key, temos um conto de ficção cientifica com um personagem principal que é uma Obra de Arte – uma especie de ciborgue ou robô com aparência humana. Ao longo de muitos anos, acompanhamos trechos da vida do ser em uma sociedade que transmite suas vidas em lives, aceitando comentários e pagamentos por isso – talvez não estejamos tão distante de um possível futuro assim, pensando bem. “Sob pressão“, de Ezra Claytan Daniels, também roteirista e tendo seu primeiro conto publicado, traz uma reunião de família do personagem principal com os 2 primos de sua geração, Katy e Andrew. Apelidados pela família como “Bondade, Maldade e Feiura”, fica claro para o leitor o preconceito da própria família branca com nosso protagonista miscigenado, com um até mesmo Andrew sendo racista com ele de uma forma dolorosa quando crianças, contado através de um flashback. A pressão do titulo se dá através da pressão auricular que nosso protagonista está sentindo depois de viajar de avião, mas também na forma da ansiedade de lidar com a família, de encontrar depois de anos com pessoas que ele ama, como Katy, e pessoas que ele quer distancia, como Andrew. Mas parece haver uma ameaça lá fora, culminando em uma explosão de terror não identificada e confesso que se houvessem mais explicações, provavelmente seria meu conto favorito. Temos então “Casa escura”, de Nnedi Okorafor, o conto que mais tive raiva lendo porque a protagonista faz todas as escolhas erradas – e erradas mesmo. Sofrendo com a morte do pai, tendo sido criada só por ele, já como a mãe morreu com ainda pequena, Nwokolo, leva o corpo do pai para ser enterrado na Nigéria, país natal do pai. Mas ela resolve enfrentar alguns espíritos antigos e levar consigo de volta para os Estados Unidos um anel do pai – e claro que isso não é nada inteligente. A autora é conhecida por aqui pela série “Bruxa Akata”.
Tecnologia é tecnologia. É tão capaz de ser afetada e manipulada pelo… misterioso quanto qualquer outro objeto. A tecnologia funciona com eletricidade, ondas de rádio e energia. Tudo é energia, certo? É aí que está a conexão. Os cães podem ver e sentir coisas que o olho humano não consegue. Eu sabia, desde que voltei para os Estados Unidos, que não estava sozinha. Nunca houve um momento em que eu tenha ido para a Nigéria, para as terras ancestrais dos meus pais, e voltado a mesma pessoa que era quando parti.
“Cintilação”, de L. D. Lewis, é um conto sobre o apocalipse e suas formas: aqui a personagem principal Kamara vê sua visão “falhar” por alguns segundos, a medida que o mundo entra em colapso e as “falhas” demora mais a passar e sua visão voltar. O tipico apocalipse de tentar correr para algum lugar e se salvar se inicia quando um desastre acontece, mas sabemos bem como histórias assim terminam. “A mulher Obia mais forte do mundo”, de Nalo Hopkinson (autora de graphic novels já lançadas aqui que se passam no universo de “Sandman”), é o conto com maior mitologia de todos: contando como Yenderil, uma jovem que treinou e lutou contra o famoso demônio da gruta que havia matado seus pais, há um pequeno plot twist nesta trama que me agradou bastante, com seu gore acontecendo na parte final e a força de uma garota que faz o inesperados.
Em “O problema de Norwood”, de Maurice Broaddus, é um conto tão absurdamente lirico e lindo em seu formato que é capaz de inspirar qualquer pessoa – mas não se engane, a história aqui é assustadora em todos sentidos, como mostra o quote logo mais abaixo. O medo que o pai da pequena Flora a inflige não é somente para fazê-la obedecer: é uma forma de sobrevivência em uma época na qual pessoas pretas não podiam andar e nem frequentar lugares que pessoas brancas frequentavam, época já revista nestes contos, como já mencionei acima. Quanto tudo começa a dar mortalmente errado, a família da garota irá precisar da ajuda dos espíritos protetores para conseguirem sobreviver. “O luto dos mortos”, de Rion Amilcar Scott, é um conto forte em uma metáfora sobre o luto – ou talvez seja somente uma ideia sobre zumbis e a morte de pessoas que amamos, a interpretação fica ao cargo do leitor, logicamente. Já “Um pássaro canta próximo à árvore entalhada”, de Nicole D. Sconiers, é um conto sobre uma garota morta em um acidente de carro que ficou presa na estrada na qual o acidente aconteceu. Durante anos ela joga um jogo com sua amiga também fantasma para ver quem mais mata pessoas pela estrada, um jogo sádico mas que parece ser a única coisa a se fazer para dois espíritos presos pela eternidade em um espaço restrito, causando uma certa claustrofobia no leitor.
Eles nos achavam novos demais para entender, mas as crianças sempre sabem. Aprendemos a lição logo cedo, sentimos em nossos ossos: dentre todas as ferramentas de opressão, o medo era a mais cruel. Havia uma história que não contávamos e que precisava ser compartilhada antes que o último de nós morresse e não restasse ninguém para lembrar.
— Onde você foi? — perguntou papai. Sua voz era severa, mas não chegava a ser um grito; ele era um homem calado, mas também uma rocha que nunca recuava diante de qualquer ameaça à sua família. Era muito alto, com pernas que pareciam troncos de árvores, e elegante demais em seu colete. Ficava parado com postura de soldado, como se seu corpo não conseguisse esquecer aquela única forma de ficar de pé.
“Uma fábula americana“, de Chesya Burke, é o que conto que se você chegar até ele sem chorar, aqui você irá. Com um soldado chamado Noble no centro da história que se passa em 1918 e que lutou pelos Estados Unidos, vemos o quão racista o país podia ser (ainda pode) em uma história cheia de desilusões e expectativas quebradas, com a ajuda de uma garota que escolhe uma família – mas essa garota não é “só” uma garotinha. Em “Seu lugar feliz“, de Terence Taylor, somos jogados em um conto de ficção onde um preso se oferece para participar de uma experiência radical de reforma nas prisões. Parece ser insano demais quando você começa a ler, mas quando lembramos que a IA está ai, já convivendo conosco, não se torna tão absurda assim. Então temos “Esconde-esconde“, de P. Djèlí Clark (autor de “O Mester dos Djins”, o qual resenhei e você pode ler sem spoilers clicando AQUI), que é o melhor conto em minha opinião. Dois irmãos de doze e seis anos, Jacob e Jamie, vivem coma mãe na antiga casa da família materna, o pai já falecido. Os garotos têm uma mãe branca e um pai preto, com Jamie tendo os olhos verdes do pai, mas Jacob tem os olhos escuros do lado materno da família, com o avô aceitando a família da filha de volta por que bem, o que se poderia fazer? Com a morte do avô, que era um notório feiticeiro, a mãe se torna uma viciada – mas em lixo de magia e não em drogas. Acredite em mim quando te afirmo que este é o melhor conto porque é um belo conto sobre como nossos piores medos podem morar em nossas casas, tudo misturado com o sobrenatural – quando termina, o leitor só quer mais. Encerrando o livro, temos “História de origem“, de Tochi Onyebuchi, com 4 garotos brancos conversando sobre pessoas não brancas. O conto mais diferente, em um formato de roteiro, temos quase as imagens em nossa imaginação a medida que vamos ficando nauseados com a ideia que passam pela cabeça dos adolescentes.
As reflexões que todos esses contos trazem são válidas e, principalmente, de cunho social, a metáfora que Jordan fala no prefácio: a utilização de histórias de terror para falar sobre a cultura preta que muitos ainda não conhecem, que chega na forma de ajuda, mas também cenas explicitas de terror, racismo e violência, principalmente nos contos em tempos passados, mostrando o horror real que estar pessoas já enfrentaram. E é assim que quando você termina o livro, sua mente está repleta do mais puro medo: medo do escuro, medo do desconhecido, medo do que há depois da vida (para aqueles que acreditam – ou também quem não acredita), e, principalmente, medo dos humanos. Sinceramente, tenha medo ao gritar porque a resposta pode vir em formato pior do que o silêncio: você pode ouvir uma resposta.
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