23.12


“A Longa Marcha”
Stephen King como Richard Bachman
Tradução: Regiane Winarski
Arte da capa: Estúdio Nono
Suma – 2023 – 288 páginas

Um livro impossível de largar, A Longa Marcha é uma narrativa distópica sobre uma competição em que os participantes não têm mais nada a perder, além da própria vida. O romance inaugura a nova coleção da Suma que reúne os livros de Richard Bachman, pseudônimo que Stephen King usou para assinar histórias angustiantes e surpreendentes.

Contrariando a vontade da mãe, o jovem Ray Garraty está prestes a participar da famosa prova de resistência conhecida como A Longa Marcha, que presenteia o vencedor com “O Prêmio” ― qualquer coisa que ele desejar, pelo resto da vida.

No percurso anual que reúne milhares de espectadores, cem garotos devem caminhar por rodovias e estradas dos Estados Unidos acima de uma velocidade mínima estabelecida. Para se manter na disputa, eles não podem diminuir o ritmo nem parar. Cada infração às regras do jogo lhes confere uma advertência. Ao acumular mais de três penalidades, o competidor é eliminado ― de forma “permanente”. E não há linha de chegada: o último a continuar de pé vence.

Quando você entende a história da publicação dos livros de King com o pseudônimo de Rchard Bachman, tudo fica mais interessante ainda, então senta que lá vem história: No final dos anos 1970, King escrevia tão rápido e tinha tantas ideias que conseguiria lançar mais de um livro por ano. Sua Editora, acreditando que os leitores de King não se interessariam a ponto de ler dois livros do mesmo autor basicamente ao mesmo tempo, negou as publicações – e King, sendo o Rei que é, criou seu pseudônimo. Como Richard Bachman, publicou 5 livros entre os anos de 1977 à 1984: “Rage, “A Longa Marcha”, “Roadwork”, “The Running Man” e “Thinner”, sendo que os dois primeiros foram escritos antes mesmo de “Carrie”.

Tudo parecia correr sem problema algum até que um belo dia, um homem chamado Steve Brown, leitor de King e Bachman, encontrou semelhanças entre as obras dos autores. Pesquisando, confirmou que Bachman na verdade era King e conseguiu contato com o homem. O que veio a partir dai foi a inspiração para mais um livro do King porque tudo na vida deste homem se torna inspiração: quando o leitor entra na narrativa de “A Metade Sombria”, vê se claramente que uma parte do que aconteceu na vida real do autor fora colocada na trama (inclusive já resenhei o livro e você pode ler minha resenha clicando AQUI). Depois disto, King ainda viria a publicar mais 2 livros com o pseudônimo: “The Regulators” e “Blaze”, respectivamente nos anos de 1996 e 2007. O resto, como dizem, é história.

Era culpa, culpa assumindo cara de ansiedade. Apesar de ter apenas dezesseis anos, Ray Garraty entendia um pouco de culpa. Ela achava que tinha sido seca demais, cansada demais ou talvez apenas absorta demais com as dores antigas para impedir a loucura do filho em seu estágio inicial — para impedi-la antes que o maquinário pesado do Estado já tivesse assumido o controle, com seus guardas de cáqui e computadores, prendendo-o mais rigidamente ao todo insensato do sistema a cada dia que passava, até o dia anterior, quando a tampa se fechara com um estrondo final.

Agora o meu selo favorito da minha Editora favorita traz estes livros para o Brasil como “Os livros de Bachman”, sendo “A longa marcha” o primeiro publicado, e eu não poderia estar mais feliz com isso porque claro que vem com a qualidade que tanto falo em minhas resenhas em uma edição esteticamente linda, como vocês podem ver pela foto a seguir da divisão das partes do livro:

Em um futuro distópico no qual os Estados Unidos se tornou um estado militarizado, “A longa marcha” traz uma trama forte e é um livro visceral. “Visceral” é a melhor palavra que consigo pensar para descrever este livro. Não há como não pensar em visceral a medida que você vai lendo a história de Raymonte “Ray” Davis Garraty, o protagonista de 16 anos que irá participar da marcha e é através dos seus olhos vamos vendo o desenrolar de tudo. A trama não demora nada para acontecer: já de cara temos a mãe do personagem principal o deixando na porta do quartel de onde a marcha sairá. Por um breve momento, temos um vislumbre do relacionamento dos dois, mas logo Ray precisa sair do carro para se juntar aos outros 99 que participarão do evento – todos, assim como ele, adolescentes representados por um número.

O major saiu do jipe. Era um homem alto e ereto com um bronzeado de deserto que combinava com o uniforme cáqui simples. Levava uma pistola presa ao cinto e estava usando óculos de sol espelhados. Diziam que os olhos do major eram extremamente fotossensíveis e que ele nunca era visto em publico sem os óculos escuros.
Sentem-se, garotos – disse ele. – Mantenham a Dica 13 em mente. – A Dica 13 era “Preserve energia sempre que possível.”

A marcha não tem um ponto final, apesar de obviamente ter um ponto inicial: ganha quem ficar em pé por último entre os 100 participantes, ou seja, eles deverão caminhar até a exaustão total – até a morte. Passando por cidades, planícies, ladeiras, chuva, sol, noite e dia: nada importa, somente a caminhada que deve continuar entre Ray e seus colegas até o mais forte ganhar. Entre os personagens de destaques na trama, aponto ainda Peter McVries, que se torna uma espécie de melhor amigo de Ray, e que por diversos momentos, é a força que o protagonista precisa. Ainda temos Stebbins, o personagem no qual o leitor precisa ficar de olho porque pode roubar a cena. Ou outras coisas. E, claro, o Major, presença maior do Estado e a quem todos devem obedecer durante a marcha, a presença física do Estado naquela loucura.

Quando a marcha se inicia, todos acreditam e tem a esperança de vencer e conseguir domar o corpo além do limite possível, mas, assim como a trama vai levando o leitor naquela caminhada sem fim, insana e sem aparente sentido, vamos acompanhando não só o emocional de Ray se deteriorar, assim como dos outros próximos a ele. Alguns falam sobre suas vidas e o que os levaram até ali, a tentar desesperadamente ganhar toda e qualquer coisa que se deseja – sim, este o prêmio para o vencedor. É um prêmio amplo e que passa um certo tom vazio com um proposito, já como este prêmio é diferente para cada um que está marchando.

Quando chegou a vez dele, o major lhe deu o número 47 e disse:
Boa sorte.

Apesar de alguns se aproximarem, a maior parte desses jovens não deseja fazer amizade e tem um motivo a mais para colocar sua vida em risco – sim, é claro que 99 morrerão, ou vocês pensam que pode simplesmente desistir da marcha no meio do caminho? Todos precisam caminhar a no mínimo 6 quilômetros e meio por hora sem parar, ou seja, quase correndo, e se a velocidade diminui, toma-se uma advertência. Você pode tomar até 3 advertências, mas não mais, porque depois da 3°, aquele competidor receberá um bilhete azul, que não, não é um bilhete azul literalmente: é sim a desclassificação da marcha, e com ela, a morte por fuzilamento pelas mãos dos soldados que os acompanham pelo longo caminho.

Tudo que acontece na trama do livro é durante a marcha: assim como não se demora para sermos jogados na longa caminhada que os todos iniciam, também não somos levados a outros ambientes, conhecendo mais sobre os participantes a medida que eles contam sobre si, mesmo que contra sua vontade – até mesmo Ray não gosta de falar sobre si. É também durante a marcha que vamos vendo todos caírem em seu próprio desespero com a falência de suas forças porque mesmo com os soldados que os acompanham entregando água e algumas provisões, é, sem sombras de dúvidas, mais do que qualquer corpo aguenta, principalmente quando se passa 48 horas caminhando sem parar. Tênis são deixados para trás, feridas nos pés vão se abrindo, mortes truculentas – tudo isso vai acontecendo aos olhos dos participantes e de quem mais estiver assistindo.

Garraty tirou um tênis com um movimento de chute e ao calçado foi rolando até quase a turba, onde ficou caído como um filhotinho de cachorro aleijado. As mãos da Multidão tatearam com avidez para pegá-lo. Uma pessoa o agarrou, outra o tirou das mãos da primeira, e houve uma luta violenta e confusa pelo tênis. O outro não saiu com um chute, e o pé de Garraty tinha inchado e estava espremido dentro. Ele se joelhou, recebeu a advertência, desamarrou o calçado e o arrancou. Considerou jogá-lo para a multidão, mas o deixou caído no chão. Uma onda enorme e irracional de desespero tomou conte dele de repente e ele pensou: Eu perdi meus sapatos. Eu perdi meus sapatos.

A natureza humana está presente aqui, mas isso não deve ser nem mesmo remotamente novidade para qualquer um que lê os livros de King, que sempre tem nos humanos os seus maiores vilões. Somos capazes das maiores atrocidades e também das maiores bondades, sempre tudo muito claro nas histórias que o autor deseja contar, e aqui não poderia ser diferente, por mais que ele tenha usado outro nome para a assinar a principio. Há dificuldade de se apegar a Ray, assim como temos dificuldade de nos apegarmos a quase todos personagens porque estamos vendo o mais humano de cada um, o pior e o desesperador – o mais visceral e não só de quem está caminhando, mas também daqueles que vão para as estradas assistirem a marcha quando esta se aproxima das cidades porque bem, somos humanos e gostamos de assistir um belo show, mesmo que seja a morte de um participante. A medida que alguns vão caindo de formas horrendas, seja com plateia ou sem, as torcidas pelos participantes vão se agrupando (porque claro que há torcidas!) enquanto o drama entre os que caminham vai se acentuando. A narrativa vai ficando mais e mais claustrofóbica e nervosa, causando incomodo no leitor enquanto a incerteza de como aquilo tudo terminará e se ainda há vida para os personagens fora daquela estrada.

A Longa Marcha” apresenta um final controverso – mas, obviamente, não falarei sobre, somente direi que cabe a cada um interpretar o que acontece ali. Eu não sou fã deste tipo de recurso, gosto de saber o final e como foi, mas, para um livro que consegue criar uma trama em uma estrada, sem nunca sair desse ambiente (por mais que vejamos sonhos e flashbacks dos personagens), consigo entender que o final deve mesmo ser igual ao prêmio: o que cada um quiser e conseguir colocar da forma como for. E é exatamente o que temos aqui com uma narrativa densa que entrega exatamente o que eu leitor quer. Seja qual prêmio desejado for.

Para comprar “A Longa Marcha”, basta clicar no nome da livraria:

Amazon.
Submarino.

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