“Corpos secos: Um romance”
Luisa Geisler, Marcelo Ferroni, Natalia Borges Polesso e Samir Machado de Machado
Alfaguara – 2020 – 192 páginas
Uma doença fatal assola o Brasil e o transforma em uma terra pós-apocalíptica: sem governo, sem leis e sem esperanças. Os sobreviventes tentam cruzar o país em busca de um porto seguro.
Primeiro, o uso de novos agrotóxicos sem os devidos testes. Depois, a reação inesperada com as larvas que eles deveriam dizimar. Não se sabe quem foi o primeiro infectado, apenas que o surto começou no Mato Grosso do Sul. São os chamados corpos secos: espectros humanos que não possuem mais atividade cerebral. Mas seus corpos ainda funcionam e anseiam por sangue.
Seis meses depois, há poucos sobreviventes. Um jovem aparentemente imune à doença está sendo estudado por uma equipe médica e precisa ser protegido a qualquer custo; uma dona de casa vive em uma fazenda no interior do Brasil e se encontra sozinha precisando reagir para sair de seu isolamento; uma criança vê a mãe tentar de tudo para salvar a família e fugir do contágio; uma engenheira de alimentos percebe que seus conhecimentos técnicos talvez não sejam suficientes para explicar o terror que assola o país. Juntos, eles vão narrar suas jornadas, em busca do último refúgio ao sul do país.
Escrito em conjunto por quatro autores, Corpos secos não é só um thriller, nem um romance-catástrofe. É uma narrativa sobre os limites da maldade humana, e as chances de redenção em meio ao caos.
Quando um livro nos chama atenção por sua sinopse, parece que o amor surge imediatamente enquanto você ainda a lê. É assim comigo e, definitivamente, deve ser assim com outros leitores também – e foi bem assim mesmo que “Corpos Secos” me atingiu. Me comprometi em ler mais livros nacionais e soube que queria ler este livro assim que li a sinopse, e ainda participando do Festival Na Janela de Ficção da Companhia das Letras e assistindo a mesa da autora Luisa Geisler, tive mais certeza ainda. E olha só: fiz muito, muito bem ao lê-lo.
Li o livro completo em uma única tarde. Com sua narrativa acelerada e direta, toda estória se desenvolve de uma forma bastante simples. Não há demora para sermos introduzidos e jogados no meio a um cenário onde está acontecendo um verdadeiro apocalipse aqui no Brasil, e, como vocês podem imaginar, está tudo ruindo. É intenso, é angustiante, é nervoso e é bastante direto: “Corpos Secos” entrega exatamente o que promete.
No princípio era o caos e a urgência; vieram então as semanas do medo, mergulhando aos poucos num silêncio moribundo; reina agora a paz da cidade morta. Da janela de seu quarto no hospital, Mateus olha São Paulo pensando que, no fundo, a cidade foi feita para se tornar ruína. Há beleza nisso.
Como vocês podem ler na sinopse, o livro é escrito à 8 mãos: os 4 autores se dividem, cada um ficando responsável por um pequeno núcleo de personagens na narrativa. Mateus é o primeiro ponto de vista do livro e se encontra em São Paulo, internado em um hospital por meses depois de ser infectado pelo vírus que provoca os corpos secos e não apresentar sintomas – sim, Mateus aparentemente é imune ao que está acontecendo e são seus anticorpos que precisam ser estudados para tentar se levar a salvação de todos. Logo aprendemos um pouco mais sobre ele, descobrimos que ele está tendo um romance com um policial federal que está lá para cuidar de sua segurança e que parte de sua família sucumbiu aos corpos secos: sua mãe faleceu 2 anos antes, mas seu irmão, esposa e sobrinhos foram levados pelos mortos, sendo que ele ainda tem outro meio-irmão, Murilo. Logo o hospital no qual Mateus está internado começa a sofrer uma espécie de ataque com um carro de som com uma voz que pede para Mateus sair do lugar, o que o assusta profundamente (como a pessoa poderia saber seu nome?), mas, além disso, a pessoa dentro do carro blindado parece conseguir, de alguma forma, “comandar” os corpos secos, o que faz com o que tanto Murilo, quanto o grupo de médicos pesquisadores e policiais, tenha de deixar o hospital para um lugar seguro, o qual falarei mais adiante. E assim começamos a viajar com este grupo.
Também somos apresentados a Murilo, o irmão de Mateus. Ainda criança, Murilo realmente não entende o que está acontecendo no começo. Morando na base militar em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, com sua mãe, padrasto e duas meias-irmãs, o garotinho ficou de cuidar do peixe do irmão e mantêm essa promessa por toda narrativa. Sei que muitos podem ficar confuso do motivo de ter uma narração de criança no meio de um apocalipse, mas, a medida que vamos lendo a transformação de Murilo de uma criança inocente em uma criança que viu de perto a morte e coisas que jamais deveria ver, vamos entendendo o peso de seu ponto de vista, a confusão, a dor, a jornada de viajar de sua cidade original até o ponto seguro que todos estão indo e, principalmente, o apego – e é isso que um autor quer, que a gente se apegue aos personagens e sofra por eles, não é? Então pronto, objetivo alcançado.
O ser humano é muito idiota mesmo. Sempre pensei que o mundo fosse acabar. Sempre acreditei naquelas profecias, em grandes catástrofes, calendário Maia, Nostradamus, até no Hercóbulus eu botei fé, aquelas merdas me assombravam de verdade. Mas nunca me ocorreu que o que acabaria seria a humanidade, essa praga. Era tão óbvio. O planeta continua. O planeta é maravilhoso, inteligente, vai se recuperar muito bem. A gente se mata. Caralho como a gente pode ser tão podre?
Ainda temos Regina, casada e morando no interior do Mato Grosso, que começa a ver os primeiros corpos em uma cena horrível de ler, quase que uma cena de um filme se materializando em nossa cabeça. Aparentemente tão centrada em si mesma, Regina é jogada em uma fuga desesperada pela sua própria sobrevivência, saindo de sua zona de conforto e vida bastante confortável para cair na estrada com duas crianças que não são suas e passando por um desespero quase palpável e perdida, até que uma transmissão do governo lhe dá um norte para onde ir – o mesmo destino para onde Mateus e Murilo também estamos indo.
Por fim, temos os irmãos Constância e Conrado, os dois no Rio Grande do Sul, que começam a jornada com o pai, o qual perdem em mais um ataque dos corpos secos. O relacionamento dos irmãos é o meu favorito, claro: os dois se apoiam e estão juntos na mesma jornada que estamos lendo sobre e com todos os outros personagens. Os dois são pessoas reais, que você lê e se relaciona, e mais uma vez, você simplesmente se apega aos personagens e torce por eles, e um ponto imensamente positivo na narrativa para o nome drag de Conrado (eu amei, adorei e achei maravilhoso demais!). Constância é lésbica e ainda pensa bastante na ex-namorada – alias, o livro é repleto de representatividade, ponto mais do que positivo para a trama.
Você já deve estar se perguntando para onde todos os personagens estão indo, e agora eu respondo: para uma base militar em Florianópolis, porque a cidade é uma ilha e estão tentando manter todos corpos secos distantes de lá. A outra cidade que também está sendo usada como cidade como ponto seguro é São Luís, no Maranhão, que também é uma ilha – Vitória, no Espirito Santo, caiu antes que fosse isolada. As cenas de destruição pelo Rio de Janeiro são impactantes, sem contar toda descrição da Avenida Paulista no meio de tanta desolação. É estranho ler tudo isso no meio do nosso isolamento social, sem contar que trechos que nos remetem a exatamente ao que estamos passando com fake news sobre a mortalidade e alcance do covid-19. É a ficção e a realidade se misturando de uma forma bastante forte e intensa em nossas vidas, chegando a parecer uma premonição muito, muito bizarra. Adorei.
… o governo brasileiro está trabalhando por você. Se você não está contaminado pela doença do corpo seco, venha para Florianópolis. Repito: quem não está contaminado pelo corpo seco, venha para Florianópolis. Toda ajuda é necessária, e todos os cidadãos brasileiros saudáveis serão recebidos após passarem pela triagem…
— O que é isso, Augusto?
— Xiu.
… embarcações civis não devem se aproximar da ilha, ou serão afundadas pela Marinha…
Mais estática. Augusto luta para sintonizar a mensagem.
… os seguintes pontos de embarque e triagem foram estabelecidos ao longo da costa: Ilhabela, São Paulo; Escola Naval, Rio de Janeiro; Ilha do Frade, Vitória… E, agora, deixo vocês com a voz de Roberto Carlos.
Quero apontar ao brilhante fator da mistura do real com a fantasia: no livro, é uma mutação no Baculovirus anticarsia, que “é um agente biológico que controla a lagarta da soja, Anticarsia gemmatalis” – sim, é por culpa dos agrotóxicos sim, que começa a síndrome de Matheson-França, a síndrome do corpo seco, a qual obviamente não existe. Ainda há menção ao Cisne Branco, o último navio a vela brasileiro e que ainda completa missões diplomáticas – e também é real e sim, eu pesquisei. Normalmente sempre pesquiso coisas assim e achei incrível a mistura de fatos realmente reais (as cidades e todo cenário que a gente lê, claro) com a fantasia, como um certo autor aparecendo na narrativa, a qual eu não vou contar quem ou como pra vocês terem o mesmo prazer que eu.
Se o livro não ganhou uma nota 5 estrelas para mim, foi somente devido as perguntas que ficaram sem respostas, o que leva a outra pergunta: haverá continuação? Eu acredito que sim. Eu acredito que seja necessário. Acho que todos ficam com muitas perguntas sobre o que está acontecendo, quem é o homem que está atrás de Murilo – se é que um homem realmente – e muitas outras perguntas que somente elas já trariam bastante spoilers pra vocês, então as evitarei. Seja como for, indico “Corpos Secos” fortemente, uma ficção nacional com uma qualidade incrível, personagens cativantes, relacionamentos consolidados e fortes, e sim, capaz de matar sua vontade por um bom e velho apocalipse zumbi, com cenas dignas de um. O que mais me deixa feliz é que depois de ter “Uma Mulher no Escuro”, de Raphael Montes (leia minha resenha clicando AQUI), como um dos melhores livros que li ano passado, as chances de “Corpos Secos” estar na minha lista de melhores de 2020 é muito, muito alta. Palmas pros zumbis e livros nacionais!
Para completar, eu deixo com vocês com uma entrevista da qual eu assisti no dia, ao vivo, com os 4 autores no canal da Companhia das Letras, e deixar vocês mais investidos ainda para ler o livro. Sério, podem confiar em mim e dar play – ou ler o livro primeiro e depois voltar para assistir. A ordem é por sua conta!
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