Resenha: Não pisque – Stephen King
“Não pisque”
Stephen King
Tradução: Regiane Winarski
Suma – 2025 – 448 páginas
Em mais um romance protagonizado por Holly Gibney, Stephen King retorna com uma história que entremeia duas linhas narrativas: a primeira sobre um assassino em busca de vingança, e a segunda sobre um justiceiro cujo alvo é uma celebridade feminista.
Izzy Jaynes é uma investigadora experiente de Buckeye City que, ainda lidando com traumas de ocorrências pregressas, depara-se com uma carta contendo uma grave ameaça: em breve, o texto alerta, pessoas inocentes serão assassinadas. Buscando desvendar o caso e descobrir quem está por trás disso, ela recorre à detetive e amiga Holly Gibney. Em pouco tempo, no entanto, a ameaça se torna real: uma mulher é morta de forma aleatória num parque de subúrbio, e elas têm de correr para que o assassino não execute outras pessoas.
O melhor livro de Stephen King sempre será o próximo – e sei que parece até redundância ao falar isso, mas é a mais pura verdade, e essa é a primeira máxima que quero atestar hoje, e a segunda é que eu queria muito conversar com o King para perguntar a ele se quando ele introduziu Holly Gibney em “Mr. Mercedes” ele pensou que ela tomaria o tamanho, escopo e forma que tem atualmente. Sem dar muitos detalhes, é difícil imaginar que aquela personagem aparentemente coadjuvante apresentada no meio da trama e prima de outra personagem que aparentava ser a principal feminina da trama se tornou a dona de basicamente uma série dentro do Kingverso – ou também não duvido ter sido a intenção de King desde o começo porque, bem, ele é o King. Ele é capaz de enganar quem quiser. E ah, se você quiser ler este livro sem ter lido nenhum outro livro anteriormente, tá liberado. Haverá alguma referência aqui e ali que talvez você não pegue, mas, fora isso, não precisa de nenhuma informação anterior.
Mas King também é um ser extremamente politico. Quem o segue nas redes sociais sabe disso e também sabe de sua posição sobre diversas coisas porque ele nunca se furta de responder quando acha que deve, algo que provavelmente seus 77 anos lhe dão com bastante firmeza. Esta trama é um suspense, sem qualquer menção de terror (ou talvez só uma pequenina menção que não altera em nada a absolutamente em nada a trama, só pra vocês não falarem que não mencionei o sobrenatural por aqui) e repleta de momentos políticos por toda a sua narrativa. Como King consegue fazer personagens pensarem e agirem da forma como ele claramente reprova é algo que só cria personagens pode compreender, se colocar dentro de outra pessoa que profere as coisas mais absurdas possíveis e ainda acha que está certo. Mas um dos principais motivadores de toda trama de “Não pisque” é também o trauma infantil porque – de novo, com força – o pior vilão do homem é o próprio homem. E temos mais uma história provando isso.
O Círculo Reto se reúne no porão da Igreja Metodista da rua Buell todos os dias de semana, das quatro às cinco da tarde. Tecnicamente é uma reunião dos Narcóticos Anônimos, mas também conta com a presença de muitos alcoólatras. O encontro costuma ficar lotado. O calendário marcou o início da primavera há quase uma semana, mas em Buckeye City, às vezes conhecida como Segundo Erro no Lago, sendo Cleveland o primeiro, a primavera de verdade chega atrasada. Quando a reunião termina, tem um chuvisco fraco caindo. Ao anoitecer, vai ganhar intensidade e virar chuva de granizo.
Uns vinte ou trinta frequentadores se reúnem perto do cinzeiro próximo à entrada e acendem cigarros, porque o consumo de nicotina é um de dois vícios que lhes restam e, depois de uma hora no porão, eles precisam de uma trégua. Outros, a maioria, viram para a direita em direção ao Flame, um café que fica a um quarteirão dali. O café é o outro vício ao qual ainda podem se entregar.
Holly continua sua vida com toda calma, trabalhando na Achados e Perdidos, que agora está sob sua total tutela, já como Pete Huntley se aposentou depois dos acontecimentos de “Holly” (e você pode ler nossa resenha sem spoilers clicando AQUI) mas que ainda tem alguma participação nesta trama. Holly manteve também sua amizade desenvolvida com a policial Izzy Jaynes, e aqui o centro é das duas, que logo no começo da trama estão indo almoçarem juntas, tudo em mais um dia normal. Mas antes disso, quem abre a trama é um personagem chamado Trig indo a reunião no AA, já como ele é um alcoólico que não bebe há anos.
A reunião de Trig participa o faz falar somente que está bastante perturbado, mas o reverendo Mike do Livrão vai até ele no final da reunião e consegue arrancar algo mais do homem: a confissão de que perdeu alguém que estava na cadeia. Procurando paz, que só duram 13 dias, Trig logo se vê pensando em seguida como seria fazer algo contra o que quer que o estivesse perturbando – e a decisão que toma é começar a fazer justiça com suas próprias mãos. Uma justiça estranha, deturpada e perversa, mas que faz sentido em sua cabeça. E calma que isso não é spoiler porque a narrativa nunca esconde que Trig decidiu matar pessoas, mas só entrega quem realmente Trig é no quarto final do livro em uma trama tão intricada que te faz só pensar no que diabos está acontecendo aqui.
Izzy e Holly nem sempre foram próximas, mas isso mudou depois que se envolveram com dois professores universitários idosos, Rodney e Emily Harris. Os Harris eram loucos e extremamente perigosos. Seria possível argumentar que Holly ficou com a pior parte por ter de lidar com eles cara a cara, mas foi a detetive Isabelle Jaynes que precisou contatar a maioria dos parentes e entes queridos das vítimas dos Harris. Ela também teve de contar a essas mesmas pessoas o que os Harris tinham feito, o que não foi nada fácil. As duas mulheres carregavam cicatrizes, e quando Izzy ligou para Holly depois que a cobertura dos jornais nacionais e regionais acabou perguntando se ela queria almoçar, Holly aceitou.
“Almoçar” virou uma coisa meio regular, e as duas mulheres formaram um laço cauteloso. No começo, conversavam sobre os Harris, mas isso foi ficando cada vez menos frequente. Izzy falava do trabalho; Holly também. Como Izzy era da polícia e Holly era investigadora particular, as duas tinham áreas de interesse similares, ainda que raramente sobrepostas.
O que Trig está fazendo parece uma vingança sem sentido: ao mandar um e-mail para a chefe de policia Alice Patmore e para o tenente Lewis Warwick, anunciando que mataria 13 inocentes e um culpado e assinando como Bill Wilson, o fundador do AA, Trig declara que fazeria essa “justiça” por Alan Duffrey, homem inocente que foi condenado por pedofilia e foi esfaqueado e morto na cadeia há um mês. Alan terminou condenado depois de ser incriminado por Cary Tolliver, um ex-colega de trabalho que não aceitou ter perdido uma promoção no banco onde ambos trabalhavam, mas diagnosticado com um agressivo câncer de pâncreas, escreveu uma carta confessando tudo que fez ao promotor do caso, o ambicioso assistente de promotoria Doug Allen, mas este, pensando em seu futuro politico, simplesmente ignora a carta e a confissão de Cary, que então procura um podcaster Buckeye Brandon, que então contou a história para toda cidade.
Mortes começam a acontecer, sempre com um papel com um nome de um dos jurados que condenaram sendo colocado na mão do morto, e a polícia começa a investigar o que está realmente acontecendo – e aqui é a primeira junção das tramas, com Izzy contando a Holly o que está investigando. Com o tino (ou intuição, como você quiser chamar) que Holly tem, logo sua atenção é sugada para o caso, mas não tem permissão de investigar, já como ela é uma detetive particular e não foi convidada pela polícia para auxiliar. Tentando ajudar como pode, Holly pede a ajuda de um barman que se tornou seu amigo, John Ackerly, que também faz parte do AA, para conseguir uma pista deixada em um dos crimes. Mas, enquanto isso tudo está acontecendo, há o que parece ser uma trama completamente paralela que não se cruza com esta narrativa: a história da ativista Kate McKay.
Bill Hodges, que fundou a Achados e Perdidos, uma vez disse a Holly que ela tinha empatia demais com as pessoas, e quando Holly respondeu: “Você fala isso como se fosse uma coisa ruim”, Bill disse: “Nesse ramo, pode ser”.
Confesso que demorei para compreender quem Kate era realmente porque o que a mulher basicamente está fazendo é uma tour do lançamento do seu livro, uma ode feminista. A medida que a trama corre, descobrimos mais sobre Kate e o que a levou a se tornar uma ativista tão intensa como é, com diversas fãs que vão desde a porta do hotel para conseguir seu autografo (ou até os que vão para conseguir e vender) até lotar auditórios inteiros, fazendo basicamente um show de humor com os que vão protestar contra ela porque claro que ela é a favor do aborto e sabemos que nos EUA tudo está mais conversador hoje em dia do que anos antes. Kate é uma mulher forte, determinada e também difícil de gostar, que tem uma assistente que trata quase como escrava – Corrie Anderson, que é então atacada na rua, durante as viagens das duas pela turne.
Obrigada a entender que há um stalker querendo lhe machucar de verdade, Kate aceita proteção e depois de uma tentativa frustrada com um segurança masculino, Corrie surge com o nome e a ideia de contratarem Holly para fazerem essa função. Depois de um breve contato entre as 3 mulheres, justamente por já ter lido e saber quem Kate é, Holly aceita o trabalho, acreditando que o valor que iria ganhar seria bom para uma viagem por alguns cidades até voltarem para Buckeye city, a sua idade de origem e onde haveria mais um “show” de Kate no auditório Mingo, o mesmo de “Mr. Mercedes”. Holly não faz ideia no que se meteu.
Embora a turnê seja do livro novo de Kate McKay, O testamento de uma mulher, a editora não teve nada a ver com a definição das datas. Kate tem experiência com planejamento e tira o máximo proveito disso. As datas são mais distantes entre si no começo da turnê, mas depois vão ficar mais próximas e incluir algumas cidades onde elas só vão ficar uma noite. Ela disse para Corrie que é como uma luta de boxe: você sonda o adversário, se aproxima e então começa a atacar.
Enquanto as narrativas vão correndo e não temos a menor ideia de onde ou como irão se chocar, Barbara e Jereme são acrescentados a trama. Os irmãos Robinson estão trilhando a vida e muito bem, obrigada, mas a chegada de Sista Bessie à cidade para o inicio de uma tour comemorativa de sua carreira de anos e anos faz com que Barbara seja convidada a encontrar a mulher, que está encantada com a garota e seu livro de poesias que ganhou um prêmio. Sista Bessie também é convidada para cantar o hino de um jogo de caridade que acontecerá entre a policia e o corpo de bombeiros na cidade, algo tradicional e que mesmo com uma famosa que está sendo perseguida por um stalker indo para a cidade e um serial killer matando na cidade não é cancelado. Sim. Politica, amigos, politica.
Como já falei, toda narrativa é completamente permeada por politica, seja em menções à eventos reais que está acontecendo nos Estados Unidos, seja por opiniões das personagens. A presença de pessoas abusando da fé alheia também se faz presente com bastante força em uma trama completamente mundana e, ao mesmo tempo, chocante porque nos faz perguntar o que fazer quando a justiça falha e o estado parece mais preocupado em manter a aparência de normalidade do que realmente guiar as pessoas as quais deveria proteger, tudo isso embalado por uma mídia personificada em Buckeye Brandon, mais preocupado em dar furos do que em qualquer outra coisa.
— Você está em Iowa City?
— Estou.
— Manda ver — diz Izzy.
— Obrigada.
— Eu estava sendo sarcástica.
— Eu sei — diz Holly. — Eu estaria declarando o óbvio se dissesse que Bill W. está acelerando o trabalho?
— Estaria.
— Pegue-o o mais rápido que puder, Izzy, porque ele realmente pretende seguir em frente com o plano. Que ele deve encarar como missão. Ele é perigoso porque pensa que é são. — Ela faz uma pausa. — Só pra declarar outra coisa óbvia: ele não é.
Enquanto Holly vai lidando como pode com Kate e sua vontade irredutível de não cancelar sua turne mesmo quando o perigo escala, Izzy vai tendo de trabalhar em diversos casos ao mesmo tempo, derrubando personagens odiosos, como Doug Allen, e ainda tendo de aprender a ouvir outros, como o advogado de defesa de Alan, um homem chamado Russell Grinsted, que parece ter alguns segredos que pode ou não importar para a trama. A quantidade de personagens e de tramas que vão se desenrolando é realmente de cair o queixo, mas depois o leitor se lembra que está lendo mais um suspense de King, que depois de conquistar o mundo com seus livros de terror (repletos de metáforas, me permitam assinalar isso) está mostrando que vem muito mais por ai, para nosso favor. Sim, favor, porque ler algo assim é um deleite e até tira seu sono de tanta vontade de só continuar lendo – e olhe que falei somente pontos aleatórios nesta resenha porque são capítulos alternados com seus pontos de vistas em cada subtrama, sem entregar demais e nem mesmo absolutamente NADA do que acontece no terço inteiro do livro, que é quando as narrativas se colidem.
A forma como todas essas narrativas irão se chocar é o grande diferencial deste livro, fazendo a missão de Holly se encontrar diretamente com a investigação de Izzy, com direito a reviravoltas surpreendentes e momentos que só a narrativas de King são capazes de entregar – todos os momentos com as músicas de Sista Bessie são simplesmente um show a parte, com o perdão do trocadilho e sim, todas, absolutamente todas as tramas são interligadas, por mais que o leitor seja levado a acreditar que não há como, até mesmo Jereme com seu bloqueio criativo. Realmente não dá pra hesitar com o Rei, só compre o livro que ele continua te fazendo querer não piscar para não perder as pistas e descobrir o que está acontecendo.
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