21.09


”Casa de família”
Paula Fábrio
Arte da capa: Tereza Bettinardi
Companhia das Letras – 2024 – 296 páginas

O que é uma casa de família? Mais do que o sobrado em São Paulo que abriga o típico arranjo patriarcal da classe média brasileira, a expressão se refere aos locais aonde mulheres de todos os cantos do país, mas sobretudo do Nordeste, vão trabalhar como domésticas, babás, cuidadoras.

Quando Soraia começa a registrar suas recordações, com a aproximação da meia-idade e percebendo as imagens de sua infância se embaralharem na mente, são as vozes dessas mulheres que insistem em ecoar ― aquelas que chegavam e partiam de sua casa em fluxo ininterrupto desde que a mãe ficou acamada por uma doença degenerativa. Somando a elas as memórias do pai, em suas jornadas para fechar as contas, e as do irmão mais velho, fascinado pelo empreendedorismo, Soraia tenta dar sentido às experiências que viveu.

Autora estabelecida na literatura brasileira, com obras premiadas publicadas por diferentes editoras independentes, Paula Fábrio estreia na Companhia das Letras com seu livro mais arrebatador. Casa de família explora questões de classe e gênero com maestria, buscando entender, por meio das pequenas relações encerradas em um ambiente doméstico, grandes temas do Brasil contemporâneo, desde os resquícios da escravidão atéas origens da ideologia de extrema-direita.

Algumas histórias precisam ser contadas para lembrarem a história de nosso passado quanto nação e também as formas como nossa sociedade errava, tudo em prol para que nunca mais cometamos os mesmos erros. É uma questão fundamental: aprender com o passado para sermos melhores no futuro, mas talvez no Brasil não tenha aprendido muito como sociedade. Tratando sobre a forma como muitas funcionárias domésticas eram tratadas sem nenhum direito trabalhista e mandadas embora ao bel prazer dos “chefes”, temos em “Casa de família” o termo exato como muitas destas mulheres se referiam ao seu trabalho: trabalhar em uma casa de família era quase que um atestado de um emprego estável, com boas pessoas – supostamente. Mas será que na prática era assim?

Já falei em outras resenhas que a literatura nacional passa por uma fase genial e plural, e não poderia deixar de incluir a autora Paula Fábrio em seu primeiro livro publicado pela Companhia das Letras, com quem tive o prazer de conversar ontem à noite – mas deixo claro que este não é o primeiro livro da autora, já premiada, e que definitivamente procurei para ler mais títulos de sua autoria. Em uma trama que nos apresenta uma realidade que muitos viveram, seja com suas próprias mães sendo funcionárias na casas de outras famílias, sendo nossas mães as que contratavam essas mulheres, vamos aprendendo que todas essas pessoas podem passar por nossas vidas, mas deixam pequenos pontos que se somam ao retalho de pontos, vírgulas e travessões que compõem nossa vida, sempre se perpetuando, mesmo que nem ao menos saibam. E nesse aspecto, temos uma narrativa magistral.

Insisto. Insisto em compreender, em compreender essa história. Por isso estou sentada nesta velha cadeira de praia, feita de tecido plástico amarelo e branco, com lascas nas pontas do assento. Aos meus pés, o soalho riscado. À minha volta, quatro paredes cobertas de chapisco. Encostado a uma parede, o guarda­-roupa manco; com a cama de armar arriada ao lado; acima da cama, o espelho retangular — nele vejo o rosto de inúmeras mulheres, entre elas eu e minha mãe.
Eu me encontro no antigo quarto de empregada, nos fundos da casa, e algo me diz que não sairei tão cedo daqui.
Ainda há vida neste cômodo, embora seja noite e a lâmpada incandescente de poucas velas empreste ao ambiente um tom alaranjado muito débil, quase esfumaçado, deixando tudo opaco e remoto. Como nas senzalas abandonadas, nas cadeias desativadas, ainda há vida, uma vida que passou diante de mim.
Além do mais, estou perdendo a memória. E sinto medo. Muito medo. Medo de que eu não tenha mais palavras para contar essa história, que estejam fora de alcance.

Como a sinopse traz, aqui temos a história de Soraia, que vive em São Paulo, em 2019, época pré-pandemia. Soraia nasceu em 1970 e agora procura encaixar a peças do seu passado para entender o que poderia tentar salvar no futuro, já como tem medo de perder suas memórias. O ponto aqui é que o passado de Soraia tem vozes e sons e tons – todos dessas mulheres que moraram em sua casa, funcionárias que atuavam na limpeza e cuidado diário de sua mãe.

A vida da mulher, ainda quando jovem e recém-chegada a adolescência aos 13 anos, foi marcada por uma fatídica noite na qual sua mãe adoeceu. Em uma jornada repleta de dificuldades e sensações que entendemos através dos olhos de uma jovenzinha assustada, mas também mimada e protegida por seu mundo, Soraia vai nos apresentando a dor de conviver com alguém de nossa família direta que é possuidora de uma doença crônica autoimune incurável. E foi dilacerante ler sobre porque a família perdeu financeiramente a pouca estabilidade que tinha, mas também perderam parte de sua humanidade ao ver a matriarca se deteriorar diante de seus olhos.

Achávamos que as empregadas é que vinham até nós. Mas, na verdade, era como se mandássemos buscá-las em suas terras, mesmo quando não o fazíamos de fato.
No começo, pensávamos que seria algo temporário. Depois, acreditávamos que elas ficariam conosco para sempre, isto é, pelo menos até a cura da minha mãe.
Por fim, tanto fazia.

Na minha leitura, ocorreu algo que normalmente não acontece com facilidade: dividi a leitura em 3 grandes colunas, por assim dizer. Uma era o passado de Soraia, que acontecia durante 1983 e vai correndo nos anos posteriores, a segunda o presente da personagem e seu medo de perder suas memórias, sua procura por entender seu passado e encontrar sentido em coisas que evita pensar, e a terceira é a doença de sua mãe, que tomou grande parte da narrativa para mim – falarei sobre mais a frente.

Uma coisa que me chamou atenção desde começo é a primeira parte: jovem em um Brasil que sofria uma das maiores inflações do mundo, que o valor de um produto no supermercado não era o mesmo à noite e diversos alimentos simplesmente não eram mais ofertados aos consumidores, que passou pelas eleições de 1990 e pela promulgação da Constituição Federal de 1988 e que viveu a falta que a democracia é capaz de nos fazer, Soraia está começando a temer perder sua memória do seu passado, algo que talvez estejamos passando agora, todos nós, como sociedade. Como podemos esquecer nosso passado? Como abri esta resenha, algumas histórias precisam ser contatas e a contextualização de nosso passado no qual a protagonista vive é simplesmente maravilhosa, uma lembrança que não devemos perder – e nem Soraia deve perder as memorias de sua própria vida.

Quando minha mãe queria me falar algo importante, ela assava um bolo de laranja e me preparava um copo de achocolatado; sentava-se ao meu lado e fingia naturalidade. Foi assim naquela tarde. Estávamos diante desta mesma mesa de madeira: agora você vai para a escola pública e eu preciso te prevenir. Prevenir? Sim, sobre crianças negras. E daí? Daí que não pode maltratar ou fazer piada. Mas eu não vou fazer nada disso. Aonde ela queria chegar?
Eu sei que você não vai, mas outras crianças podem caçoar; não quero que você faça igual.
Não era do meu espírito desdenhar de ninguém; pelo contrário, eu era da turma que apanhava na escola; mas conforme o tempo passou, tornei-me invisível e assim foi melhor.

Já a segunda “parte”, temos o relacionamento complexo e tóxico com Toninho, irmão de Soraia, uma figura central em suas lembranças por sua falta de empatia generalizada e egocentrismo. Acreditando merecer o universo, o irmão mais velho (bem mais velho, mais de 10 anos) de Soraia parece só se preocupar com ele próprio em uma casa que está ruindo. O pai da protagonista parece aceitar o destino que a vida lhe entrega enquanto continua sua obrigação de prover financeiramente a família da forma como pode, providenciando as funcionárias necessárias para o dia a dia continuar acontecendo enquanto começa a se afastar emocionalmente de tudo que vive.

Mas são as vozes já citadas destas mulheres trabalhadores, normalmente idas do meu nordeste para São Paulo, que realmente mostram outro mundo ao leitor. Diversas mulheres com histórias de vida em diferentes formas passam por aquela casa, testemunhando a vida como ela é, os relacionamentos que ali existiam e ajudando a manter a mãe de Soraia com o mínimo de dignidade possível. E todas essas mulheres deixam vontade de saber seus destinos, de conhecermos mais e entender qual caminho trilharão depois que seu tempo naquela casa de família acabou. Há diversas personagens marcantes, e algumas marcadas por apelidos nada gentis – Lourdes gorda por exemplo – e que foram tratadas com menos gentileza ainda. Talvez esse seja o ponto alto do livro: nos fazer pensar sobre nossas atitudes quando não tínhamos ainda noção do mundo ao nosso redor, mas deveríamos ter praticado a gentileza.

Daquele dia em diante, aos poucos, riqueza e pobreza encaixaram-se na ordem do meu mundo. E o mundo as explicou, mesmo quando eu não pedia explicação alguma. Muitas vezes, juntei e separei essas peças, formando arranjos diversos. Meus pais, os professores, o catecismo, todos me ensinaram que éramos iguais: negros, brancos, pobres, ricos. Por um tempo, pensei que tudo estava encaixado. Mas não era verdade.

Já na terceira “parte”, para mim, me leva a lembrar que livros são como pessoas: algumas simplesmente trazem a tona coisas que não queremos ou sabemos lidar, e “Casa de família” fez isso em mim: por também ter uma doença autoimune, foi angustiante ler a forma como a família de Vânia, a mãe de Soraia, passou a tratá-la com o tempo e as complicações de sua doença. Em uma altura da trama, tive de dar um tempo na leitura porque chorei revoltada com uma coisa monstruosa que Toninho faz com sua mãe, uma reflexão para que pensemos onde está a culpa quando nosso corpo começa a falhar – resposta: em ninguém, mas acredite que esse tópico de “culpa” é algo grande para quem vive esta situação.

Apesar de ser minha primeira leitura da autora, gostei do ritmo e da leitura, gostei de como Paula Fábrio estrutura sua trama, entre idas e vindas no tempo contando a vida que estamos sendo apresentadas, as lembranças de Soraia nos mostrando a realidade de sua casa e de sua família em uma casa de família que, no final das contas, retrata muito bem a realidade de muitas casas da classe média, que são casas, mas como toda família é complicada, complexa, fragmentada e, algumas vezes, nada muito familiar.

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