“Búfalos selvagens”
Ana Paula Maia
Arte de capa: Guilherme Xavier
Companhia das Letras– 2024 – 136 páginas
Edgar Wilson, cansado de trabalhar como coletor de cadáveres em estradas, recebe a oportunidade de voltar ao Matadouro do Milo, agora comandado por sua esposa Rosário. Junto aos companheiros Bronco Gil e o ex-padre Tomás, ele passa a cuidar de um rebanho de búfalos. Enquanto o mundo parece se ajustar em meio aos destroços da catástrofe que o levou à beira do precipício, mais uma vez a morte persegue Edgar Wilson.
Ao se deparar com o corpo de um palhaço na beira da estrada, o protagonista é levado a uma trama de conspirações cujo centro é o recém-chegado Circo das Revelações. Prometendo entretenimento e salvação, o Circo arrasta multidões de desamparados em busca de algum tipo de conforto ou direcionamento. No centro do picadeiro está a garota Azalea, uma vidente necromante que parece habitar a fronteira entre o passado e o futuro, a vida e a morte.
Ainda que possa ser lido separadamente, Búfalos selvagens é a conclusão magistral da Trilogia do Fim que se iniciou com Enterre seus mortos, livro vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, e De cada quinhentos uma alma. Combinando romance policial e tramas de horror com investigação psicológica e profecias bíblicas, a autora expande seu universo para abarcar novas perspectivas sobre as relações entre humanos e animais, a exploração da precariedade e a insistência da vida nas ruínas de uma tragédia.
“Búfalos Selevagens” é o terceiro livro da Trilogia do Fim de Ana Paula Maia. Publicada pela Companhia das Letras, a trilogia tem “Enterre seus mortos” e “De cada quinhentos uma alma“, como os dois primeiros volumes respectivamente. Trazendo Edgar Wilson como protagonista de todas tramas, mas não sendo os primeiros livros da autora que o homem aparece, essa resenha se concentrará no último volume dessa trilogia que será publicado agora dia 06 de agosto. Como também preciso deixar claro, haverá pontos dos dois livros anteriores, já como as tramas se completam, mas tentarei o máximo não entregar nenhum spoiler grande demais.
De uma forma bastante direta e crua, Ana Paula Maia nos mostra mais uma vez a capacidade de desenvolver empatia e também a miséria humana, a vulnerabilidade de parte de nossa população e a forma como abraçamos a ideia de que podemos ser salvos por uma força maior quando a infelicidade e a dor batem em nossas portas – ou justamente o oporto total, a falta de credo em qualquer força que seja capaz de ajudar qualquer pessoa, tudo em uma trama que já se anunciava em volumes anteriores, mas mais envolta em elementos sobrenaturais e com o pé no terror.
Edgar Wilson não responde. Tomás se mexe para vol tar à sua unidade e seguir trabalhando. Mas algo incomoda a sua alma como quem cutuca um ninho de vespas. O terror que assolou a Terra por dias ainda segue seus passos. Como a morte que reverbera do chão e do céu, como a boca das profundezas que desertam os homens que caminham debaixo do sol.
Tomás para. Volta‑se para Edgar Wilson e pensa por alguns instantes até dizer:
— Sabe que dia é hoje?
Edgar faz que sim com a cabeça.
— Tenho a sensação de que isso aqui não tá acontecendo — diz Tomás.
— Do que você tá falando?
Tomás estende as mãos indicando tudo à sua volta.
— Isso!
Sinto que falar sobre este livro sem mencionar explicitamente seus personagens seria uma desonestidade. Edgar Wilson é uma construção de todas suas experiências passadas, assim como o Padre excomungado Tomás e Bronco Gil, todos forjados em experiências com a morte. Edgar trabalhou por anos como recolhedor de corpos de animais mortos em estradas e acostamentos, coisa que nunca havia parado para pensar sobre e aposto que a grande parte das pessoas também não, já como carcaças largadas assim podem causar acidentes e também agrupar outros animais, que também causariam acidentes. Parece algo lógico de se precisar, mas são profissões invisíveis, que não recebem a atenção necessária e muito menos o reconhecimento.
Esses corpos e carcaças são levados para um moedor – sim, um moedor de carne, transformado o que antes era carne viva em outra matéria. E se você, que me lê, pensa que Edgar e Tomás se tornaram mais insensíveis ao lidar diariamente com a morte, a resposta é justamente o contrário: quando se lida com a morte e se sente um passo atrás dela (frase dita várias vezes por nosso protagonista), se entende que todo ser merece e precisa de um enterro e de uma despedida porque por trás daquela carne e ossos, havia alguém. Alguém que merece algo que não está tendo. E é justamente o que temos aqui, quando no começo da trama, Edgar encontra na estrada o corpo de um homem fantasiado de palhaço, perto de seu cachorro machucado.
Para eles, tudo o que ocorreu foi a abertura das portas do céu e do inferno. Tudo o que estava no meio, de fato, foi consumido.
Mas não há um inferno debaixo de nossos pés, nem um céu protetor sobre a nossa cabeça. O que existe é o vazio preenchido por nossos pensamentos. Acima e abaixo, o intervalo do espectro ganha formas e contornos para nos fazer acreditar que não somos regidos pelo vazio e pela solidão. Tão vasto quanto o infinito são nossos anseios, tão desprezíveis e amorais, nossas insatisfações. Por fim, são espectros; esses registros fantasmagóricos das nossas projeções. Se vivos, seguimos vivos. Mortos, permaneceremos assim, inertes, debaixo da poeira das estrelas.
Depois dos eventos do segundo livro, “De cada quinhentos uma alma“, que trouxe basicamente o Apocalipse para a Terra, e ainda lidando com as consequências, Edgar Wilson recebe o convite para voltar a trabalhar no abatedouro e com a criação de Búfalos, e claro que chama Tomás para o acompanhar, e é antes de decidir se iria ou não que encontra o corpo do palhaço na estrada. Tomás já acredita que tem algo bastante errado no ar e tudo parece fazer a crença realidade.
O retorno de Bronco Bil chega nessa altura da trama com uma surpresa: ele voltou para o lugar com o Circo das Revelações e conhece o palhaço morto. Tomás, que na minha opinião é o personagem mais multifacetado da trama com seu passado tortuoso, está com sua intuição realmente agitada e não sabe precisar, sentindo que aquele circo ali não faz sentido, já como a trama se passa em lugar incerto no Brasil, mas claramente interior – e ele está certo em ficar com o pé atrás com o Circo, levando a uma trama de suspense que realmente beira o terror.
— Quem é Azalea?
— Ela salvou minha vida. É a criatura mais extraordinária que já vi — conclui Bronco Gil.
— O que ela faz?
— Ela sabe tudo. Conhece os caminhos. Conversa com a morte — responde Bronco Gil ao enfiar um mourão no buraco.
— Uma vidente — fala Tomás enfaticamente.
— Ela é quem escolhe pra quem vai falar. Quando ela te toca, você também vê. As revelações se manifestam — diz Bronco.
— A favor dos vivos, consultam os que falam com os mortos — resmunga Tomás.
O Circo das Revelações é um ambiente que causa arrepios só de imaginar, mas pode ser só minha própria ideia do lugar, já como nunca gostei de circos e nunca me interessei em realmente ir. O lugar é comandado por Mendonça, e sua filha, a garota Azalea, é uma vidente, exatamente como a sinopse diz, mas há mais nessa trama do que somente uma garotinha fazendo previsões sobre o futuro e acertando sobre fatos do passado dos personagens.
Se o leitor se interessar em ler este livro solo, assim poderá, mas perderá referências e momentos que foram plantados nos outros livros com pistas do que acontece aqui, como o menino morto em “De cada quinhentos uma alma” que conversa com Tomás em uma cena maravilhosamente colocada, já nos apontado o que está acontecendo com Azalea, assim como também já há dicas de que os Búfalos eventualmente apareciam desde “Enterre seus mortos“, quando encomendam a carcaça de um para empalharem, por isso indico ler toda Trilogia e aproveitar a escrita de Ana Paula Maia, mais uma autora que merece ser acompanhada neste momento tão alto de nossa literatura nacional. Aproveite sem moderação a criatividade e a forma de escrita da autora.
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