“Mata Doce”
Luciany Aparecida
Arte de Capa: Ale Kalko
Alfaguara – 2023 – 304 páginas
Maria Teresa vive com suas mães num casarão antigo, cheio de histórias de seus antepassados, de frente para um lajedo de pedra. Pelo peitoril, corre um roseiral, apenas com rosas brancas, e, no caminho diante da casa, passam personagens memoráveis: Mané da Gaita, músico e vendedor de doce, e sua cadela Chula; Lai, ex-prostituta e sua madrinha; os gêmeos Cícero e Antônio, filhos do dono da venda; Toni de Maximiliana, vaqueiro matador de gado, filho da sacerdotisa Mãe Maximiliana dos Santos; e Zezito, único filho homem de Luzia, e por quem Maria Teresa se apaixona e planeja se casar.
Ao experimentar o vestido de noiva num sábado de festa, um dia antes do casamento, uma tragédia envolvendo um fazendeiro violento e arbitrário atinge Maria Teresa e muda sua vida para sempre. Narrando o drama que se torna central, ela vai pouco a pouco desvelando ao leitor os sentimentos mais profundos dos que habitam Mata Doce. Surgem então, numa delicada costura narrativa, antigas rixas familiares, segredos do passado, sentimentos clandestinos e muitos mistérios.
Um livro que fala sobre as agruras de uma mulher que viveu toda sua vida em um vilarejo. Uma vida com amor, tragédia, luta, sofrimento, solidão – poderia ser em qualquer lugar do mundo que essa premissa já iria me interessar, mas como se não bastasse, “Mata Doce” se passa no interior da minha Bahia. Um livro com mulheres fortes que fogem de relacionamentos abusivos, mulheres fortes que criam comunidades, mulheres fortes que precisam ser fortes por elas, suas filhas, suas netas. Mulheres fortes que são donas de casa e precisam começar a sustentar suas famílias cansadas de serem espancadas por seus companheiros. Mulheres fortes em uma narrativa forte sobre como somos guiadas por nossos sentimentos e lutando para fazer as gerações que vem depois de nós terem um futuro melhor.
Preciso assinalar de cara um fato da narrativa que foi essencial para a leitura ser tão envolvente e rápida: a história de Maria Tereza, também conhecida como Filinha, é contada de forma temporal não linear e também em terceira e em primeira pessoa. No começo da trama, a vemos já bastante idosa, com mais de 90 anos, na casa na qual cresceu com suas duas mães, a professora Mariinha e Tuninha, uma travesti, olhando a roseira branca. A casa, de frente a um lajedo, é local onde foi tão feliz e onde as mais tragédias de sua vida também aconteceram, começando a pensar em seu passado. Temos, a princípio, a narrativa em terceira pessoa, mas o livro, dividido em 5 partes, traz mais a frente os pensamentos e acontecimentos através dos olhos da personagem – e também de outros, porque a gama de personagens bem construídos e abundantes aqui é imensa. O leitor quer conhecer e saber mais sobre aquele povoado e aquelas pessoas. Ainda aponto para as partes em formato de cartas datilografada que há na narrativa: Maria Teresa se formou e chegou a trabalhar datilografando, antes de sentir a dor que a mudará – e sua profissão também.
O casarão da professora Mariinha era conhecido em Mata Doce. Era casa de peitoril de madeira, coberta por telha vermelha e batente alto na porta, janelas ao redor de toda a casa, que era cercada por um largo terreno, nas laterais e ao fundo. Ali, no casarão do lajedo, moravam as três mulheres da Vazante, Mariinha, Tuninha e Maria Teresa.
Jovem que foi criada por mães que tentaram dar um futuro mais promissor a filha, Filinha estudou em Santa Stella, cidade próxima do vilarejo que mora e leva o nome do livro. As mães da jovem tentaram tanto dar um futuro melhor a filha que até mesmo custearam seu estudo em datilografia – antes dos computadores, existiam as máquinas de datilografia e existiam cursos para aprender a datilografar, o equivalente a digitar. A jovem tentava realmente suprir as expectativas da mãe e de seu noivo, Zezito, único amor de sua vida. Com o casamento marcado e sendo a primeira de sua família a se casar em uma cerimônia assim, tudo parece acontecer na casa destas mulheres, que vai, pouco a pouco, tornando-se uma personagem também.
Mariinha cresceu em Mata Doce também, mas porque Eustáquia da Vazante, sua avó, foi uma das fundadoras do lugar, que se tornou um refúgio para diversas mulheres e pessoas pretas. Por gerações foi assim, até a chegada de um homem branco: Gerônimo Amâncio. Se autointitulando e chamado por vários de “Coronel”, o homem deseja a terra de João Sena, homem casado com Luzia de Sales. A briga escala da pior forma possível e ápos um ato de violência terrível, o casal deixa suas terras para trás, indo morar em Santa Stella, enquanto o homem se apossa das terras e começa a impedir que a população tenha acesso ao Rio Airá.
Mata Doce penava de falta d’água. Era uma tristeza. Aquela gente toda caminhando por outras terras para carrear água com a fartura de água doce que o rio Airá despejava ali. O povo sonhava com ajuntar dinheiro para construir cisternas e comprar água de carro-pipa. Antes não era assim. No tempo de bonança, aquelas terras de acesso ao Airá pertenciam a Manuel Querino e depois passaram a João Sena. Até que Gerônimo Amâncio invadiu e tomou aquele pedaço como seu. O coronel era assassino e invasor de terras alheias, e o mundo todo tinha ciência dessa informação.
Claro que a truculência de Gerônimo vai escalando, prejudicando muito quem precisam do rio para sua sobrevivência. Uma disputa nascida de um ato de violência obviamente está destinada a terminar em tragédia, e é isso que acontece. Sem entregar nada que acontece, só preciso deixar claro (assim como a sinopse) que as atitudes do homem provocam uma forte mudança em Maria Teresa, causando até mesmo que ela mude como deseja que as pessoas a chamem por causa de uma nova profissão adotada. Acredito que uma dor desse tamanho causa sempre um buraco em nossos corações e temos de aprender a conviver com ele – ou a sobreviver. A forma como toda essa intriga e trama se desenrola na trama é quase lirica, tom que permeia por todo livro, que é, sem sombras de dúvidas, muito bem construído em apontar momentos violentos com um dom necessário para não se tornar de forma a sufocar quem lê.
Como já mencionei, há uma gama de personagens coadjuvantes que queremos saber mais sobre e ainda bem que vamos descobrindo sobre. Maria Teresa foi adotada por Mariinha e Tuninha da forma antiga: simplesmente registrada pela professora porque Tuninha não tinha nenhum documento, já como não existia com seu nome social e sua mudança de gênero. O relacionamento das duas mulheres é sólido e repleto de amor, e as duas fizeram da filha uma mulher boa e protegida do mal, coisa que era muito importante para as duas – afinal, elas sabiam a maldade que há aí fora. Temos ainda a madrinha de Maria Teresa, Lai, mulher que tem um grande papel na vida da protagonista e um passado sofrido e cruel, mas que ainda encontra força para, de alguma forma, continuar. Luiza, mãe de Zezito, e tida por muitos como “juíza”, é outro exemplo de mulher forte e que é capaz de sobreviver às maiores dores que podemos enfrentar.
Era da sina de Mata Doce acolher mulheres, como aconteceu com Josefa e os filhos gêmeos Angélica e Thadeu. A mãe fugida chegou ao povoado aos cuidados da professora Mariinha por recomendação da juíza dos Sales. A mulher fugia do espancamento e da tortura. Por ali ficou nos terrenos dos Sales, que a essa altura viviam em Santa Stella. Josefa tinha algumas posses de herança que estavam em seu nome e foi da venda de imóveis que comprou terreno e construiu casa em Mata Doce. Josefa era mestiça e seus meninos seguiam suas feições negras de tons de pele mais claro. O tempo seguia, Angélica e Thadeu cresciam. Mas a verdade é que a tristeza que ela carregava da solidão e do afastamento do marido nunca viu cura.
A autora, Luciany Aparecida, assina um romance com seu nome pela primeira vez. Tendo escrito ainda como Ruth Ducaso o livro “Contos ordinários de melancolia” e outros títulos e ainda poemas, Luciany nasceu aqui na Bahia e acredito que se inspirou em seu local de nascimento, o Vale do Jiquiriçá, para inspirar e compor Mata Doce. Definitivamente ficarei de olho em tudo que ela escrever porque a forma como ela conseguiu transportar o leitor para dentro de sua narrativa foi única. Ainda quero destacar a capa desse livro que é, sem sombras de dúvidas, uma das capas mais lindas que vi em toda minha vida: Ale Kalko se superou em seu trabalho nesta capa que beira a perfeição.
Mas não há a menor chance de encerrar esta resenha sem mencionar a religião que dita muito neste livro. Maria Teresa tem sonhos com suas mães em momentos que o futuro lhe é mostrado, assim como a própria Mariinha foi capaz de prever uma tragédia que aconteceria na vida de Gerônimo. Desde sempre Mariinha e Tuninha sabiam que Maria Teresa era filha de Yemanjá Sabá, a mais velha de todas Yemanjás, e que a jovem carregava a sorte da reserva e da solidão. Aproveito para confessar que o tom místico foi o ponto alto da narrativa para mim. Não há uma explicação ou racionalização: somente há uma fé e poderes acima de nós, que nos guiam. É lindo de ler sobre. “Mata Doce” é um clássico da nova literatura nacional e afirmo isso sem medo algum. Gentil e denso, repleto de sentimentos e tragédias, flores e estrelas, amor e beleza no meio de formas que se levantam com poeira em uma estrada: a vida como ela é no interior da Bahia, em um lugar que habitou o sofrimento e cresceu forte. Uma leitura intensa. E doce.
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