“Nós fazemos o mundo” (Grandes Cidades #2)
N.K. Jemisin
Tradução: Helen Pandolfi
Suma – 2023 – 256 páginas
Na cidade que nunca dorme, as aparências enganam: à primeira vista, é até possível acreditar que tudo vai bem, mas essa não é a verdade.
Já faz três meses que Nova York ganhou vida, e os avatares conseguiram impedir que a Mulher de Branco destruísse seu território. Só que, agora, o inimigo tem poderes mais sutis à disposição: a retórica populista da gentrificação, da xenofobia e das medidas para “manter a lei e a ordem” pode destruir a cidade de dentro para fora. Para impedi-la, os avatares terão de se unir a outras Grandes Cidades para salvar o mundo da destruição iminente.
Em Nós somos a cidade, N. K. Jemisin apresentou uma narrativa original e dinâmica, mostrando como seus personagens se relacionam com as regiões que representam e interagem com os demais. Em Nós fazemos o mundo, volume que encerra a saga, as histórias de cada avatar são desenvolvidas e articuladas com maestria para que, juntos, eles possam lutar por um bem maior.
Essa resenha é sobre “Nós fazemos o mundo”, o segundo livro da duologia “Grandes cidades”, já resenhado – você pode ler minha resenha sem spoilers clicando AQUI. Como vocês podem imaginar, ao contrário da primeira resenha, esta conterá spoilers, mas leves. Tentarei não entrar demais no enredo e sem entregar nenhum elemento chave da trama.
Nova York sempre muda. Nós, que nos tornamos cidades, somos entidades dinâmicas em constante evolução, sempre nos ajustando às necessidades de nossos habitantes, sempre sendo virados do avesso por políticas estatais e pela economia internacional. Ultimamente a gente começou a lidar com política do multiverso, também, mas que seja. A gente dá conta. A gente é Nova York.
N.K. Jemisin é uma das maiores autoras da atualidade. Ponto. Não se discute isso. Sua genialidade não se restringe só nas tramas que prendem ao leitor, mas também na sua capacidade de traduzir tão bem vozes que normalmente não ganham o destaque que merecem. Ganhadora do prêmio Hugo por 3 anos seguidos e de mais prêmios do que posso colocar nesta resenha, a ideia da (agora) duologia “Grandes Cidades” é uma das mais criativas que já vi: cidades estão despertando, possuem alma e estão “possuindo” corpos humanos, se materializando, por assim dizer.
Quando li “Nós somos a cidade”, tomei um choque com a genialidade da ideia de fazer New York, uma das cidades mais cosmopolitas do mundo, despertar e ter alma. Mas como uma cidade desse porte, com pessoas de tantas partes de todo mundo que se perdem em meio a uma multidão que tenta a vida diariamente, poderia ter somente uma alma? Pois então: a cidade tinha 6 personalizações, 6 representações, 6 bairros que, juntos, formavam a alma da cidade. Vibrei a cada página, a cada personagem e suas personalidades tão distintas. Isso foi em 2021, quando o livro foi publicado aqui no Brasil, e desde então espero pela continuação. Até que chegou. E foi… Frustrante.
Há conflitos em qualquer grande metrópole, faz parte da vida urbana. Ainda assim, o resumo da ópera é que Nova York está apreensiva, e sua inquietude reverbera pelo multiverso de maneiras estranhas. A sensação é difícil de explicar — algo entre a terrível suspeita de estar sendo observado e a impressão de estar caindo.
Voltemos um pouco no tempo para tentar explicar tudo: a ideia de “Grandes Cidades” veio de um conto da autora chamado “The City Born Great”, de 2016. O primeiro livro, “Nós somos a cidade”, foi publicado lá fora em 2020, mais precisamente em 24 de março daquele ano, basicamente quando a pandemia realmente explodiu (Prometo que essa informação será importante). Como já teci elogios suficientes, o livro foi comemorado como uma das maiores fantasias dos últimos anos e chegou os prêmios Hugo, Nebula e Locus. Era impossível não se render a trama.
Quando pesquisei para minha resenha, falei que seria uma trilogia – porque estava programado para ser. Como vocês podem entender, o segundo livro, “Nós somos o Mundo”, foi escrito durante a pandemia, na sequência da publicação do primeiro livro. E isso teve um efeito na trama e na própria autora, que deixa claro em seus agradecimentos no final do livro, onde ela fala exatamente a sensação que tive ao ler este livro – e é frustrante, bem como falei, tanto pela forma como as coisas se encaminham quanto pela sensação de que tudo está acelerado demais. Nas próprias palavras de Jemisin, nos agradecimentos do livro: “A trilogia Grandes Cidades que eu havia planejado inicialmente acabou se tornando uma duologia porque percebi que minha energia criativa estava evaporando sob o peso massacrante da realidade, e que eu não daria conta de escrever três livros nesse clima. Na verdade, cheguei muitíssimo perto de encerrar as coisas no primeiro livro, mas detesto deixar minhas histórias sem fim (e decepcionar os leitores!) depois que as começo, então concluí esta história na força do ódio e da teimosia.” Sim, era uma trilogia e se transformou em uma duologia, então a trama teve essa sensação de pressa, mais do que deveria. E deixo claro que o livro não é de forma alguma, nem mesmo remotamente, ruim. Ele só não é o que poderia ser. Talvez se eu não tivesse amado tanto o primeiro livro, teria aproveitado mais o segundo.
Brooklyn se considera uma historiadora amadora. A parte amadora é por nunca ter estudado história de maneira formal. A parte historiadora é porque Clyde Thomason não colocou uma filha ingênua no mundo, e ela descobriu muito cedo que a história sendo ensinada nas escolas era parcial, falaciosa e completamente incorreta em muitos aspectos. Como foi com o Massacre de Greenwood, em Tulsa, em 1921. Hoje em dia o caso faz parte da cultura popular, mas, quando Brooklyn era criança, não passava de uma lenda tratada a sério apenas por jornais negros e militantes do afrocentrismo. Às vezes Brooklyn pensa em como deve ter sido a vida de seus antepassados que sobreviveram a esses pogroms americanos, como deve ter sido construir a vida do zero repetidas vezes apenas para ter tudo linchado e arruinado diante dos próprios olhos. Será que ouviram as turbas se aproximando? Será que houve avisos antes do desastre — sussurros, mudanças de comportamento, oficiais solidários que alertaram empregados ou até mesmo amantes para que se preparassem para o ataque? Mas o que poderiam fazer? Eram pessoas orgulhosas, porém completamente desamparadas em um país onde nenhuma lei as protegia e onde não podiam contar sequer com o mínimo de decência humana. E para onde deveriam ir, sem um lar ancestral para onde pudessem voltar e sem ninguém em quem confiar a não ser em si mesmos?
Talvez ela estivesse começando a fazer ideia.
Como já falei acima, a sensação de celeridade é constante. Começando aqui 3 meses depois da grande batalhe que encerra “Nós somos a cidade”. A narrativa parece estar cada vez mais rápida, contando como Manny tem tomado as rédeas financeiras do grupo e como está apaixonado por Neek, que parece mais irritante, grosseiro e impaciente do que nunca. Padmini termina representando muito todos imigrantes com seu núcleo familiar e enfrentando seu maior medo logo no começo do livro, enquanto Brooklyn está lidando com a política, afinal, ela é uma vereadora – que vai se candidatar a prefeita. E durante a evolução dos personagens e seus relacionamentos, se passa mais um mês na trama. Acho que você já entendeu meu ponto.
Não consigo explicar como me sentia frustrada lá pelo meio da trama porque a sensação de que tudo estava radicalmente corrido era insana, então chegava em algum momento chave – um ataque da mulher de branco, R’lyeh, ou a revelação do passado de Manny – e tinha certeza de que a mesma N.K. Jemisin estava lá, com toda sua capacidade de desenvolver tramas inesperadas e da forma como prende qualquer leitor ávido por uma boa história. E na sequência tudo voltava a correr e a frustração me inundava novamente com muita força. Pra ser sincera, já terminei de ler há 4 dias e não parei de me perguntar o que aconteceu aqui. Talvez o problema seja esta leitora que é muito detalhista e até mesmo em suas resenhas escreve demais, e gosta de ler a evolução dos personagens. Não descarto essa hipótese de forma alguma.
Recuando por instinto aos macropassos, Padmini aterrissa em seu quarto com tanta força que quase tropeça; isso acontece, em parte, porque tem pressa para chegar até sua mesa. Com as mãos tremendo, ela pega uma folha própria para gráficos; quando quer ter certeza de uma coisa, Padmini prefere o conforto dos cálculos feitos à mão. Há algumas variáveis que sabe que deveria incluir, como o impacto das crenças das pessoas e se os diferentes patamares da árvore existem em condições diversas das quais ela conhece, mas até que alguém — bom, nesse caso, ela — descubra como codificar toda aquela maluquice de forma quantificável, tudo o que pode fazer é começar a mapear as coordenadas da cidade em relação ao seu ponto de origem…
O gráfico faz uma curva.
A cidade está em movimento, e o movimento está ficando mais rápido com o tempo. A cidade está caindo, indo em direção ao tronco da árvore e ao brilho insuportável das raízes.
O livro tem momentos altíssimos e um bom desenvolvimento de personagens, além da participação de outras cidades e do nosso já conhecido Paulo e ainda a percepção de que há muito do nosso mundo atual aqui, coisa que a autora faz com um brilhantismo tão grande que não podemos deixar de plaudir – Os Homens com Orgulho é o principal exemplo. Como já falei, temos N.K. Jemisin escrevendo, o que nos prepara para esperar e receber momentos de brilhantismo e originalidade, mas o modo como ela transforma um dos grandes vilões aqui em basicamente uma corporação imobiliária (sem spoiler!) me deixou quase confusa porque sim, sabemos que os predadores imobiliários podem ser vilões em cidades (imaginem em uma cidade grande como NY!), mas estamos falando de uma força capaz de andar entre mundos e que não aceita o nascimento desta cidade. Entendo o ponto da autora, só terminou sendo repentino demais. E não me peçam para falar sobre o final porque tive tanta decepção com a forma como tudo é resolvido que só posso dizer que ao ler os agradecimentos, me senti melhor ao me sentir traída porque há uma confissão ali.
Acho que o que precisava falar realmente é o que já disse: se eu não tivesse amado tanto o primeiro livro, talvez eu tivesse aproveitado melhor o segundo. Acredito nisso. E sei que parece que odiei o livro, mas não, não é assim: as cores que New York, a sensação de ler algo de Fantasia tão bem bolado a princípio, a representatividade forte, tudo isso tem a assinatura da N.K. Jemisin a ponto de não ter me feito abandonar este livro. Se você leu “Nós somos a cidade”, te indico ler “Nós fazemos o mundo” – leia e venha conversar comigo porque sua percepção da história talvez seja outra, de que o livro teve o que precisava e assim encerrou. Talvez eu entenda que, como a minha própria cidade, estou velha e rabugenta, querendo consertar coisas que não posso e não olhando pro futuro, que é muito mais célere do que jamais serei – e talvez precisasse ser para aproveitar esta narrativa como merecia.
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