“Nós somos a cidade”(Grandes Cidades #1)
N.K. Jemisin
Tradutora: Helen Pandolfi
Suma – 2021 – 410 páginas
Toda cidade tem alma. Mas toda cidade também tem um lado obscuro. Um mal antigo espreitando sob a terra, esperando pelo momento certo para atacar.
E quando Nova York desperta, corporificada na figura de um franzino garoto de rua, o ataque que se segue é brutal. O jovem, avatar da metrópole, fica em um coma mágico, e a cidade corre perigo com o mal que infesta ruas e pessoas, ameaçando destruí-la.
É então que outros cinco avatares são chamados à luta.
Em Manhattan, um jovem universitário sente o pulsar da metrópole e compreende seu poder. No Bronx, a diretora lenape de uma galeria de arte descobre estranhos grafites que a atraem de maneira irresistível. No Brooklyn, uma antiga MC que entrou para a carreira política consegue ouvir a música da cidade. No Queens, uma imigrante indiana com um visto de estudante não entende como pode se tornar parte de um lugar que mal a reconhece como cidadã. E em Staten Island, a filha oprimida de um policial violento sente o resto da cidade chamando por ela.
Enquanto isso, o avatar de Nova York dorme, esperando que seus distritos consigam se unir e expulsar de uma vez por todas o invasor monstruoso à caça deles.
Acredito que para ser justa, preciso começar essa resenha deixado claro que “Nós somos a cidade” é o livro mais criativo e instigante que li nos últimos anos. A Fantasia é meu gênero literário favorito, mas às vezes sinto que o gênero está a beira da exaustão, o que me deixa triste – de verdade, e, por isso, toda novidade é bem-vinda. Mas aqui não temos somente “umma novidade”: temos uma narrativa completamente inovadora e criada do zero, construída de uma forma tão única e tão completa que no meio da trama me peguei transportada para dentro do enredo tão original e tão bem traçado que eu não consegui desapegar, e entendi o sucesso que este livro fez lá fora: indicado a vários prêmios e aclamado, “Nós somos a cidade” se passa na cidade de Nova York, que está ganhando vida. Se eu fosse resumir o livro em uma única linha, seria isso, mas ele é muito, muito mais do que isso.
Também preciso preparar você, caro leitor, que também está ansioso para ler esta obra, que é do estilo da autora deixar vários elementos sem resposta no começo da trama, e aqui não é diferente. No começo você irá sim, se sentir perdide e confuse a ponto de se questionar o bom e velho: “O que está acontecendo aqui mesmo?” porque a trama é complexa, mas não jeito que causa desinteresse no leitor, e sim justamente o contrário: faz com que não possamos deixar o livro de lado para que possamos entender tudo que está acontecer. E aqui a autora faz exatamente isso. Você só precisa ter fé e continuar sua leitura, mesmo que ainda se sinta um pouco perdide.
A grande lição é: cidades grandes, como todas as outras coisas vivas, nascem, crescem, definham e morrem quando chega a hora.
Dã, né? Isso é óbvio. Todo mundo que já esteve em uma cidade de verdade consegue perceber isso, de uma forma ou de outra. Todas aquelas pessoas do interior que odeiam a cidade grande têm motivo; cidades realmente são diferentes.
Elas têm peso no mundo, criam um rasgo no tecido da realidade, como… como buracos negros, talvez. É. (Às vezes eu vou a museus. Por dentro eles são legais, e o Neil deGrasse Tyson é gostoso.) Conforme mais e mais pessoas chegam e acrescentam suas peculiaridades e vão embora e são substituídas por outras, o rasgo aumenta. Com o tempo, ele se torna tão profundo que se transforma em um bolsão, conectado apenas pelo fio mais tênue de… algo… a… alguma outra coisa.
A coisa de que as cidades são feitas.
Mas a separação inicia um processo e, nesse bolsão, diversas partes da cidade começam a se multiplicar e a se tornar cada vez mais diferentes entre si. Seus esgotos se expandem até lugares onde não há necessidade de água. Brotam dentes nas favelas; garras em seus centros culturais. Coisas normais dentro da cidade, como o trânsito, construções e coisas assim, começam a ter um ritmo parecido com uma pulsação, se você grava seus sons e ouve ao contrário. A cidade… desperta.
Manny logo se encontra sendo atacado por uma mulher que ele nem ao menos entende quem é ou o que faz, tudo isso no meio das ruas da cidade. New York aqui é uma personagem e vamos sendo apresentados tanto a sua diversidade cultural quanto aos seus problemas – e logo de cara temos uma cena que me impactou bastante com a xenofobia e racismo. Se há algo que eu também preciso enaltecer no livro é a forma como a autora inseriu tão, tão naturalmente problemas que vivemos todos os dias em nossa sociedade, com cenas que chegam a doer o coração de tão reais que são. Não é porque estamos no genêro da fantasia que podemos esconder nossos problemas como seres humanos, e entre eles temos o racismo, a homofobia, corrupção policial e muito mais. Essa naturalidade é toda crédito da autora N.K. Jemisin, que realmente é um dos maiores nomes atuais da fantasia e muito, muito merecidamente. Obviamente ao ver esses elementos, eu já estava mais do que vendida ao livro, mas ainda tinha bastante duvidas sobre a trama central do livro.
Tudo o que Paulo me contou é verdade. Em algum lugar além da cidade, o Inimigo está acordando. Ele enviou seus arautos e eles falharam, mas ele macula a cidade, se espalhando com cada carro que passa sobre cada pedacinho de substância do Megapolicial, e isso cria uma base. O Inimigo a usa como âncora para emergir da escuridão em direção ao mundo, em direção ao calor e à luz, em direção à resistência que sou eu, em direção à perfeição explosiva que é a minha cidade. Esse ataque é só parte de um todo, claro. O que vem é apenas a menor das frações do mal ancestral do Inimigo — mas que deve ser mais do que suficiente para aniquilar um mero moleque exaurido que nem mesmo tem uma cidade de verdade para protegê-lo.
O grupo é claramente bastante diferente entre si, com personalidades completamente distintas, e aqui preciso assinalar a história de Aislyn, uma mulher que teve toda sua vida ditada pelo que seu pai, um policial racista e prepotente, tudo escolhido dele para ela. De longe foi minha personagem favorita e acho que quase todas as mulheres encontraram algo para se espelharem na personagem e o arco da personagem na narrativa foi muito, muito convincente e tocante. Além de suas personagens bastante diferentes, há também a diferença de raças, sexualidade e também de idade, coisa que me agradou demais. É um grupo completamente diverso e também temos só que agradecer a autora ao mostrar suas experiências de vida tão opostas e como, de alguma forma, eles se tornam uma espécie de família – disfuncional, mas uma família.
Como se tivesse sido conjurada, de repente a Nova York que todos enxergam aparece na Nova York que apenas ele vê. Na verdade, ambas estão presentes, uma sobreposta à outra, e elas piscam, aparecendo e desaparecendo, antes de finalmente se estabilizarem em uma estranha realidade duplicada. Diante de Manny estão duas Sétimas Avenidas. É fácil distingui-las porque têm tons e atmosferas diferentes. Em uma delas, há centenas de pessoas, vários carros e pelo menos seis lojas de departamento que ele é capaz de reconhecer. É a Nova York normal.
A outra está vazia e parece ter sido atingida por um inexplicável desastre. Não há corpos à vista ou nada ameaçador; simplesmente não há ninguém ali. Não dá para dizer se um dia já existiram pessoas naquele lugar. Talvez os prédios ali tenham apenas aparecido, brotado dos alicerces já completos, em vez de terem sido construídos. O mesmo pode ser dito das ruas, que estão vazias e esburacadas.
Ainda não há como não mencionar a parte de como cada personagem reflete tão bem o seu bairro e a forma como o representa. Houve muita, muita mesmo, construção de personagens e ambientação nesse livro, muito mais do que a maioria dos livros de fantasia que estamos acostumados, mesmo sendo no subgênero de “Fantasia Urbana” na qual ele se encaixa. Sinceramente, lendo esse livro e a forma como os personagens começam a correr para salvar sua cidade (e eles mesmo) me fez ir para New York e aprender mais sobre a cidade, tudo em um feito que não acredito que seria possível se tivesse sido escrito por outra mão. Eu estava em New York ontem à noite enquanto lia esse livro, e não posso agradecer o suficiente a N.K. Jemisin por isso.
— Então, ouçam — diz ela. — Todas essas coisas são reais. Todos os outros mundos em que os humanos acreditam, seja por mitos de um povo ou visitas espirituais ou até mesmo imaginação, se ela for fértil o suficiente. Eles existem. Imaginar um mundo torna ele real, caso ele já não exista. Esse é o grande segredo da existência: ela é supersensível ao pensamento. Decisões, desejos, mentiras, é tudo o que você precisa para criar um universo. Todos os seres humanos neste planeta criam milhares de universos desde o nascimento até a morte, embora algo na forma como nossa mente funciona nos impeça de perceber que isso acontece. A todo momento, estamos constantemente nos movendo em múltiplas dimensões. Achamos que estamos parados, mas estamos na verdade caindo de um universo para outro e para outro, tão rápido que todas as coisas se misturam, como… como uma animação. Só que tem muito mais do que apenas imagens correndo.
A ideia de que somos parte da cidade que moramos, assim como ela é parte de quem somos, me pegou com bastante força, me fazendo pensar sobre os lugares que já morei e a forma como estes lugares impactaram minha vida e estão em mim até hoje. Lugares que visitamos, ruas pelas quais passamos, aquela mercado que passamos, aqueles vizinhos que sempre cumprimentamos com um singelo “Bom dia”, tudo isso faz parte do caminho que trilhamos até aqui. E sim, consigo entender a mensagem de problemas atuais e viscerais que vivemos (racismo, xenofobia, misoginia e muito, muito mais) misturado a uma fantasia que espelha todos esses problemas. No final, sim, nós somos a cidade que moramos, e parte dela fala por nós. Só precisamos escolher como e, principalmente, o que desejamos falar.
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