16.06


“Como se fosse um monstro”
Fabiane Guimarães
Arte de capa: Alles Blau
Alfaguara – 2023 – 160 páginas

Brasília, décadas de 1980 e 1990. Uma jovem sai do interior para trabalhar como empregada doméstica na casa de um casal rico na cidade grande. Lá, enquanto tenta entender a dinâmica diária dos dois, ela começa a ver algumas meninas passando diariamente para algum tipo de entrevista a portas fechadas. Depois de meses sem achar a escolhida, o casal finalmente faz a proposta a Damiana (apesar de acharem o tom da sua pele um pouco mais escuro do que gostariam): que ela seja barriga de aluguel para eles.

Damiana aceita sem entender muito bem, passa por uma inseminação artificial caseira e um quase cárcere privado de nove meses. Depois que o bebê nasce, ela conhece Moreno, um “especialista” nesse tipo de negócios que explica quão inconsequente foi aquela decisão e sugere que os dois passem a trabalhar juntos.

A história de Damiana ― uma das barrigas de aluguel mais produtivas da década ― e sua relação com a maternidade, o próprio corpo, as vidas que impacta e a rede clandestina de produção de bebês é contada a uma jornalista quando ela já está idosa, vivendo novamente no campo.

Um romance envolvente sobre o que significa tomar decisões e como elas impactam a vida dos outros, Como se fosse um monstro é uma reflexão única sobre a maternidade, a culpa e o direito de escolher.

Antes de começar a falar de “Como se fosse um monstro”, tenho de falar de “Apague a luz se for chorar”, o primeiro livro de Fabiane Guimarães. Quando o li, em 2021, gostei muito da trama, muito mesmo (você pode ler minha resenha SEM SPOILERS clicando AQUI). Mas também foi um livro que cresceu em mim, e quanto mais pensava sobre, mais gostava – ao ponto de colocá-lo atualmente em linha lista de 10 livros nacionais favoritos de todos tempos. Então claro que quando vi sobre a publicação de “Como Se fosse um Monstro”, soube que ia lê-lo, sem a menor sombra de dúvidas.

Minhas expectativas estavam no alto e, para meu deletei, este livro as superou. Uma história sobre mulheres, escrita por uma mulher, falando sobre tráficos de bebês que aconteceu em Brasília na década de 1990 (sei que para muito de vocês, parece ter sido há muito tempo) e que quase ninguém se fala sobre atualmente. A própria Fabiane deu uma entrevista e falou sobre o livro e sua inspiração (você pode ler a entrevista clicando AQUI) e que completou a minha leitura de sua mais nova obra. E agora aqui estou, apaixonada por um livro feito pra mim – e para todas outras mulheres aí fora.

A jornalista foi explicando que fariam a entrevista em duas partes. Naquela primeira conversa, usaria apenas um gravador e anotaria algumas coisas. Depois, nos próximos encontros, refinariam o depoimento. “O que eu quero, Damiana, é ouvir a sua história com o máximo de detalhes possível”, resumiu, como tinha feito ao telefone. “Quero saber de tudo.
Você não quer saber de tudo, fia. Você não tem estômago — Damiana respondeu.

Ser mulher. Ser mãe. Duas coisas distintas que parecem estar profundamente ligadas, intrínsecas. Será que toda mulher que pode ser, deseja ser mãe? Será que toda mulher que pode ser, deve ser mãe? Será que esse instinto materno realmente nasce junto com vísceras? Toda mulher realmente precisa desejar e ansiar ser mãe? São tantas perguntas que algumas mulheres se fazem em determinada altura de suas vidas que não há como começar a enumerar, e é assim que “Como se fosse um monstro” ressoou em mim: expectativas sobre o papel de uma mãe e a realidade de que algumas mulheres podem ser mães, mas não desejam ser.

Não há como se falar sobre este livro sem dizer que a autora, Fabiane Guimarães, conseguiu falar sobre o universo materno e o papel da mulher (o esperado e o real) de uma forma tão delicadeza que me espantou, mesmo em uma história tão visceral e real. Em uma narrativa que realmente prende o leitor e o cativa desde o começo, conhecemos Gabriela, uma jornalista Argentina que mora no Brasil há anos e que está prestes a começar a entrevistar Damiana, mulher que veio ainda muito nova do interior do Goiás para a capital Brasília. Nesta entrevista que demorará alguns dias, Gabriela procura saber mais sobre a vida da mulher mais velha, sem ainda entregar ao leitor qual realmente é seu intuito – e você, que lê, sabe que há algo mais por trás daquela conversa.

Rose foi embora sem revelar a que veio, no fim das contas, mas não por muito tempo. A mãe não se opôs à ideia quando, algumas semanas depois, a prima voltou para avisar que tinha conseguido uma oferta de trabalho numa casa de família. Um trabalho para Damiana. Eram tempos duros, a morte do pai causava atropelos e uma escassez que as consumia até os ossos. Já fazia vários dias que só comiam um ralo mingau de milho e as irmãs berravam de dor e frustração.
Você vai — a mãe decretou, quase feliz, embalando as roupas em trouxinhas de pano. — Vai e ganha um dinheiro pra nós.
Com a orientação de Rose e o medo crescendo em calos na barriga, Damiana foi.

Damiana veio do interior, de uma família repleta de filhas e um pai assassinado, jogando a família em uma pobreza avassaladora. É assim que Rosimara, mais conhecida como Rose, uma prima, vem de Brasília até a família e leva Damiana para ser doméstica de um casal – e aqui fica a vergonha de algo assim ter sido considerado uma prática “comum” em nosso país. Crianças, pré-adolescentes, adolescentes e jovens mulheres deixavam a vida que conheciam em cidades pequenas, em roças e fazendas, para tentar fugir da miséria através de empregos como domésticas em cidades maiores. Atraídas por promessas, grande parte dessas mulheres nunca sequer chegaram a ter uma chance de conseguirem juntar o dinheiro que acreditavam que conseguiriam. Com diversos desfechos, algumas dessas mulheres se casaram e tiveram filhos, outras se tornaram reféns de famílias e vemos na televisão serem resgatadas hoje em dia.

Mas, no caso específico de Damiana, assim que chega a grande casa dos seus patrões Daniela e Érico, ela entende que o casal está a procura de algo mais: mulheres entram e saem sendo entrevistadas, uma colocação que parece nunca ser preenchida. Até que um dia os patrões oferecem a jovem o que realmente desejam e estão dispostos a pagar quanto for: um filho. Damiana pode ser a barriga de aluguel do casal.

Tem gente que vive para ser protagonista da vida, e tem quem seja arrastado por ela. Damiana tinha duas certezas: uma era de que pertencia ao segundo grupo, a outra, de que Rosimara era indefectivelmente do primeiro. A prima solucionadora de conflitos logo começou a envolver a rotina da casa com seus tentáculos de influência, comandando por iniciativa própria a contabilidade que agora cobria a família de luxos nunca imaginados, como o forno elétrico e a escola particular para as meninas mais novas, com uniforme e transporte até a cidade, sem falar na geladeira novinha onde sobravam refrigerantes e guloseimas. Depois, arranjou muitas viagens para garantir que Damiana enterrasse em definitivo seus mortos imaginários.

Em um mundo onde sempre querem colocar as mulheres em um lugar pré-definido, Damiana navega por uma gravidez que não desejava, mas aceita procurando melhores condições de vida pra ela e para sua mãe e irmãs que ficaram no interior. A escolha pareceu fácil para a jovem, mas a verdade é que passar por uma gravidez trouxe muito mais do que esperava, como, por exemplo, a proximidade com o casal que, quando a olhava, vê o filho que ainda não nasceu. Enquanto Damiana vai contando sua vida e a experiência desta primeira gestação, vamos também conhecendo mais Gabriela, a ouvinte da mulher. Criada por dois pais amorosos e tendo uma vida financeiramente estável, se mudou para o Brasil atrás de respostas que procurava sobre seu passado. Agora, por volta dos 30 anos, Gabriela se encontra em um lugar de sua vida no qual se permite fazer uma escolha significativa sobre seu futuro e o que deseja para sua própria vida.

Voltando para a história de Damiana, após da entrega do bebê, termina conhecendo Moreno também através de sua prima. Homem intrigante e com um certo “que” de mistério, Moreno procura mulheres para trabalharem como barriga de aluguel em um esquema muito mais sofisticado do que o que Érico e Daniela ofereceram a Damiana. Levada pelo término do dinheiro que lhe fora dado como pagamento de sua primeira experiência, a mulher decide aceitar mais uma gravidez – e uma terceira, quarta, quinta e sexta, quando sua vida muda drasticamente ao conhecer um determinado homem. Joaquim era um motorista de Moreno que toca em lugares que Damiana sequer sabia ter – ou esperava ter.

Volto a reforçar que nunca me arrependi, e a culpa que senti foi completamente involuntária. Procurar Damiana foi parte de uma vontade de aliviar essa culpa, esse substantivo tão feminino, tão próprio da mulher.

A forma como a narrativa nos mostra que não há uma fórmula femina para cada mulher beira a perfeição. Claro que falando assim, parece óbvio que cada mulher tem uma experiência com o desejo de ser mãe ou com sua gravidez, ou até mesmo a falta deste desejo de ser mãe, mas, também é óbvio que não é isto que esperam das mulheres em um geral. Sempre há uma cobrança sobre quando os filhos virão ou se estamos ficando velhas demais para gerarmos ou adotarmos uma criança – sempre há uma pressão sobre as mulheres no quesito maternidade, e normalmente as mulheres já são mais cobradas do que os homens. Sempre.

Damiana e Gabriela são mulheres. Mulheres diferentes, com passados familiares diferentes, com expectativas de vida diferentes, mas, ainda assim, seus caminhos se cruzam para se conhecerem e terem algumas respostas sobre suas vidas. Duas mulheres tão diferentes e com sentimentos tão parecidos em alguns pontos, capazes de fazer o leitor se afeiçoar as duas de uma forma enternecedora, e quando, a certa altura da trama, Damiana pede a Gabriela que não a descreva como um monstro, você a compreende e também deseja que Gabriela não a veja como um porque Damiana não é um Monstro. Gabriela não é um monstro. É ninguém pode julgá-las como um.

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