“Porém Bruxa”
Carol Chiovatto
Arte de capa: Bruno Romão
Suma – 2023 – 296 páginas
Romance de estreia de Carol Chiovatto, autora finalista do Prêmio Jabuti 2021, Porém Bruxa é uma fantasia urbana impossível de largar. A nova edição da Suma contém uma carta inédita aos leitores, além de dois contos extras.
Ísis Rossetti é uma bruxa. Como monitora responsável por atividades sobrenaturais na cidade de São Paulo, ela sabe que não pode intervir em questões humanas. Porém, no cotidiano urbano, as pessoas estão sempre em perigo e é impossível não tentar ajudar.
Quando Ísis recebe a missão de uma divindade, em meio a casos policiais estranhamente similares e investigações extraoficiais, ela precisará revisitar traumas do passado para proteger os comuns e enfrentar o temido Corregedor.
Sempre acho complicado resenhar livros que amei, como é o caso “Porém Bruxa”: tenho a irritante mania de falar e escrever demais, mas não tenho como falar pouco desta trama e de uma autora que tenho o prazer de acompanhar, não só por ser uma mulher inteligentíssima, mas também por ter entregue outra fantasia urbana ambientada em São Paulo que gostei bastante – “Árvore Inexplicável” (você pode ler minha resenha clicando AQUI). Eu já estava realmente vendida a ideia de ler tudo da Carol simplesmente porque sim, mas confesso que não esperava gostar tanto assim dessa trama que traz tudo que gosto: magia, fantasia, um romance lento e bem construído, personagens que mostram a que vieram, diversidade e ainda uma escrita rápida que te prende.
Aqui temos Ísis, que é uma bruxa que trabalha como monitora das atividades mágicas na cidade, mas o livro não se trata “só” de magia: com uma personagem feminina forte no centro que sofre de transtorno de estresse pós-traumático e com amigos “comuns” (como são chamados os que não tem magia) que tem personalidades maravilhosas (alô, Helena, te amo!), a trama te transporta para um universo que pode e deve enriquecer no próximo livro. Aqui a magia aqui é uma mistura de tudo que você já viu e pode conhecer, uma coisa bem brasileira. Não espere palavras em latim para a realização de feitiços, não espere só dividades gregas – aqui temos algo novo, criado e que me encantou de todas as formas.
Somos as filhas de todas as bruxas que vocês não conseguiram queimar. Bem poderia ser verdade: a Inquisição nunca conseguiu queimar uma bruxa sequer, então a descendência das legítimas é extensa. Sei disso de fonte segura: sou uma delas, afinal.
É assim, com esta quote, que o 1º capitulo do livro começa (antes há o prologo!) e confesso que foi ai que a trama me ganhou, simples assim. Como se não bastasse, já havia sido apresentada a Ísis no prólogo e já deu pra entender que ela tem quase tolerância zero e uma personalidade bastante sarcástica, o que também me ganhou. Apesar de claramente ser uma pessoa forte, não demora para você entender que há muito mais por baixo da força e personalidade que a mulher usa como escudo – e ah, um aviso aqui: é um livro adulto, com assuntos adultos e também com a personagem principal agindo como tal. Muito é discutido e não há nenhuma cena gráfica aqui, e não há como esperar um comportamento diferente da bruxa porque ela é uma adulta e mesmo com escolhas erradas, ela aceita e se impõe como tal. Mantenha isso em mente.
Não foi nada difícil começar a trama já envolvida assim com a personagem principal, mas também a trama acelera e logo de cara Ísis está envolvida em 3 casos de uma única vez: atendendo um chamado de sua amiga Fernanda, onde recebe um recado de Exú, já como um terreiro foi destruído; há também o caso de Valentina, uma criança sequestrada na porta do colégio que ativou a intuição de Ísis de que havia magia envolvida e ainda um jovem adolescente chamado Pedro que denuncia o desaparecimento de sua mãe, indicando que a culpa pode ser de seu padrasto, caso qual se envolve a pedido de sua amiga Helena. Tudo a princípio parece muito disperso e nada ligado – e quando é somente assunto dos “comuns”, sem nada mágico, Ísis sabe que não pode se envolver, apesar de nem sempre seguir esta regra. Só que a medida que a trama vai andando, vamos entendemos que sim, está tudo ligado em uma trama muito maior do que esperado, tanto pela personagem quanto pelo leitor.
Acordei no meio da madrugada com aquele formigamento no peito. Em outras pessoas, a intuição não passava de uma forma subconsciente da inteligência racional. Em mim, era um poder considerado místico e sobrenatural tanto pelas diversas religiões quanto pela sociedade cientificista. Tem coisas que eu simplesmente sei. Sei porque tenho de saber. Porque a Terra quer assim.
Enquanto vai investigando tudo e tentando juntar o quebra-cabeças que claramente é bastante intrínseco, Ísis vai contando com a ajuda de seus amigos comuns – e aqui eu abro um parêntese para falar sobre cada um: Temos Helena, uma delegada responsável por uma Delegacia da Mulher e que já contou com a ajuda da bruxa em outros casos; Murilo, o amigo advogado que ajuda em pesquisa, suporte emocional para Ísis e está em um relacionamento aberto; Fernanda, uma doutoranda que cresceu com a religião de matiz africana e que é uma das melhores amigas de Ísis, mais do que disposta a ajudar; e, por fim, mas não menos importante, Dulce, uma assistente social travesti maravilhosa que se preocupa em ajudar toda a população em situação de rua, nem que coloque a sua própria vida em risco. O grupo é eclético e quando se juntam, o leitor tem a certeza de que a rede de apoio que Ísis tem é real e forte, tudo que ela precisava, principalmente entendendo o trauma do qual ela tenta se recuperar, mesmo que seja fingindo que não está lidando com aquilo. Cada um vai ajudando como pode, entregando as pequenas peças na mão da bruxa, que vai juntando e encaixando tudo, ainda mais com a chegada de seu Corregedor, Victor Spencer.
E aqui preciso falar do Victor. Como explicar Victor Spencer? Eu realmente gostei do personagem, de sua integridade e da forma como lidou ao descobrir o trauma de Ísis: ele simplesmente foi sincero. Deixou claro que ajudaria a bruxa pelos motivos certos e que havia algo mais que precisava contar para que ela não pensasse no futuro que ele a ajudou por este motivo – acho que você já deve estar desconfiando o tal motivo dele. Confesso que ver um relacionamento ser construído em verdades é algo que atualmente me agrada muito, e aqui temos tudo com calma, respeitando o tempo e os traumas de Ísis, sem nada corrido somente para entregar algo para o leitor, até porque o foco do livro é realmente a investigação e resolução da trama magica que está acontecendo em São Paulo, que vai escalando de forma forte a cada desenvolvimento e descoberta.
Crença é diferente de louvor. E, para fins de influência divina, só a crença importa.
O grande trunfo de “Porém Bruxa” é realmente apresentar uma trama nacional de magia, uma fantasia com cara e selo nacional, com momentos que sabemos que acontece em uma grande metrópole como São Paulo, mas com pitadas de todas as pessoas que estão presentes em nosso país, assim como todo tipo de fé existente – e o vilão, ah, o vilão! Carol construiu uma trama que mistura fantasia e realidade, com crimes que estão presentes no cotidiano do brasileiro (como violência doméstica e contra pessoas em situação de rua), além de mostrar mais do bem e do mal que há dentro de nós. Há uma passagem de ação na trama, em um prédio em chamas, que foi de prender a atenção de qualquer leitor, principalmente quando entendemos que alguns personagens estão dispostos a perderem a vida por algo que acreditam que é o certo e o que precisavam fazer. É sempre bom entender que mesmo no meio de tanta gente, há pessoas dispostas a lutar pelo corretor – e se você me falar que isto foi na ficção e não na vida real, eu te respondo que a vida imita a arte.
O momento no qual entendemos o que aconteceu com Ísis no passado e o motivo dela ter tanto medo de enfrentar o “novo” Corregedor é de partir o coração. Não quero e não vou dar spoilers nenhum, mas acho que toda mulher adulta que já passou por algum tipo de momento envolvendo abuso fica com o coração apertado com a trama. E, por mais que Ísis esteja enfrentando isso em uma trama de fantasia, sabemos que muitas mulheres passam por momentos de abuso com seus chefes em diversos formatos. Gostaria de falar bem mais sobre toda situação, mas qualquer coisa que eu fale a partir daqui será, sem sombras de dúvidas, spoiler, então me limito a dar os parabéns a Carol pela forma com a qual tratou o tema: sem esconder nada e com a delicadeza necessária.
Aqui talvez caiba uma nota sobre as muitas naturezas da bruxaria, porque variam bastante conforme o lugar e a época. A parte histórica em si fica para outra hora, mas hoje em dia existem basicamente dois grandes grupos: os bruxos cujo poder vem da Terra, através da genética ou de um despertar tardio (neste, estamos eu, outros monitores, corregedores, o Conselho, a Cidade dos Nobres toda), e aqueles que, como a História narra, firmam pactos com demônios. Estes são umas baratas radioativas, uma nódoa cancerosa no equilíbrio das coisas.
Não vou dizer que não gostaria de mais detalhes sobre a Cidade dos Nobres – a cidade onde parte dos bruxos de classe “mais alta” moram ou ainda sobre os próprios limites e criação da magia que o universo pede e exige e que acho uma falha da trama não apresentar mais de tudo isso, mas, como falei no começo desta resenha, tenho certeza absoluta que muito mais vem ai neste universo, já como a continuação é esperada. E aqui assinalo que esta é a segunda Edição de “Porém Bruxa”, agora sendo publicado pela Editora Suma, com uma edição com 2 contos: um inédito, “Agora Diplomata”, e também “Apesar de telepata”, já enviado pela newsletter da Carol, sendo que os dois são pelo ponto de vista de Victor. O primeiro conto se passa após os eventos do livro e o segundo mostra o que Victor fez enquanto estava sumido dentro da narrativa do livro, acompanhando suas ações para tentar ajudar Ísis.
Entre tantos elogios que teci aqui a trama e aos personagens do livro, não deixo de assinalar a escolha do nome da protagonista – Ísis, uma divindade do Egito Antigo que aqui se materializa em é uma mulher forte, independente e moderna, porém bruxa, que nos apresenta uma trama incrível e que merece ser lida por você, portanto, bookstan.
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