“Conversas entre amigos”
Sally Rooney
Tradução: Débora Landsberg
Companhia das Letras – 2022 – 320 páginas
Frances, uma estudante de 21 anos que vive em Dublin, é escritora e apresenta em público suas peças de poesia com Bobbi, sua ex-namorada e melhor amiga. Ela é tímida, austera e distante; Bobbi é mais comunicativa e de fácil trato. Quando Melissa, uma notável fotógrafa e ensaísta, se aproxima de ambas para oferecer um perfil em uma renomada revista, elas aceitam com entusiasmo. Enquanto o encanto de Bobbi por Melissa aumenta, Frances se aproxima pouco a pouco de Nick, o marido-ator não muito bem-sucedido, e a relação de poder que se estabelece entre os quatro se torna cada vez mais complexa.
Escrito com precisão e inteligência, Conversas entre amigos é um relato impressionante das paixões e perigos da juventude. Neste romance de estreia, Sally Rooney consegue conciliar vulnerabilidade e força em um mundo que não tem nada de trivial.
Ok, vamos organizar meus pensamentos antes de começar a falar de “Conversas entre amigos”, o 1º livro escrito por Sally Rooney (a autora de “Pessoas Normais” e “Belo mundo, onde você está”, que já resenhei e você pode ler clicando AQUI). O livro ganhou uma série homônima estrelada por Joe Alwyn, Alison Oliver, Jemima Kirke e Sasha Lane, depois do sucesso estrondoso de “Pessoas Normais” e sua série de TV. “Conversas entre amigos” ganhou nova edição aqui no Brasil com uma nova capa e a Editora gentilmente me enviou um exemplar, me deixando poder afirmar para vocês que agora já li os 3 livros da Sally Rooney. E, sinceramente, essa autora mexe comigo, isso eu posso afirmar com todas letras.
Enquanto Sally escrevia este livro, teve a ideia para “Pessoas Normais”. Seu terceiro livro foi justamente Belo mundo, onde você está”, então, como vocês podem ver, li tudo fora de ordem, mas o que importa é que li e tenho muitos, muitos sentimentos e pensamentos sobres estes livros, principalmente este. Todos os livros de Sally parecem tratar de relacionamentos tóxicos, que não funcionam, mas que, por algum motivo, as personagens continuam insistindo em fazer dar certo – e então você se dá conta que é assim na vida real também. Você quer ser amada e por mais que esteja procurando o amor no lugar errado, você insiste porque é da natureza humana não deixar alguém que ama para trás. Mas, eventualmente, você precisa. Ou não. Ou mais ou menos. E temos todas essas alternativas nos 3 livros da autora. Eu sei, estou analisando todos os livros dela de uma vez só e vou parar com isso agora e me concentrar em “Conversas entre amigos” a partir de agora.
Bobbi e eu conhecemos Melissa em um recital de poesia, em uma noite na cidade, onde nos apresentaríamos juntas. Melissa tirou uma foto nossa lá fora, Bobbi fumando e eu sem saber o que fazer, segurando meu braço esquerdo com a mão direita, como se tivesse medo de que ele fugisse de mim. Melissa usava uma grande câmera profissional e guardava muitas lentes diferentes numa bolsinha especial. Batia papo e fumava enquanto tirava as fotos. Ela falava da nossa apresentação e nós, do trabalho dela, que havíamos descoberto na internet. O bar fechou por volta da meia-noite. Estava começando a chover quando Melissa nos convidou para irmos à casa dela para um drinque.
Frances é a personagem principal e condutora da narrativa. Ela tem 21 anos e está na faculdade, tem um estágio não remunerado porque não precisa, já como seu pai lhe dá uma mesada para ajudar nas despesas. Cursando letras e se apresentando à noite, recitando seus poemas autorais, junto com sua ex-namorada e melhor (e única) amiga Bobbi, Frances tem diversos problemas e quase todos com ela própria. Vindo de uma família bastante desestruturada, vendo o casamento dos pais se desintegrar diante de seus olhos, ela se duvida como pessoa e a maior parte do tempo acredita que não agrada as pessoas e por isso mantem esse ar blasé, como não se importasse, enquanto, na verdade, se importa demais. Por diversas vezes, em várias passagens diferentes, a jovem parece perdida, sem rumo, não confortável em sua própria pele, e logo em seguida, todos os seus pensamentos confirmam isso. É uma história sobre Frances, sendo a mocinha – e também a vilã de sua própria narrativa.
Assim que a trama começa, Frances e Bobbi conhecem Melissa, uma fotograva mais velha que chamou muito a atenção de Bobbi. O relacionamento de Frances com sua ex-namorada é intrínseco e bastante codependente, já como acredita que não consegue fazer novas amizades e por isso se apega a outra com uma ferocidade intensa. Ao mesmo tempo que tem ciúmes da ex-namorada e da proximidade com a fotografa, Frances sente que precisa dar espaço para elas, mesmo que queira odiar Melissa e sua vida, já como terminam indo para a casa da mulher em um after e lá conhece o marido dela. Nick é mais novo que Melissa, mas 11 anos mais velho do que Frances, é ator e bonito, muito bonito, o tipo de beleza que chama atenção. Mas, mais do que isso, ele e Frances parecem atraídos pela personalidade um do outro: ele pela inteligência e sagacidade dela, ela pela distancia que ele parece manter de tudo e todos e pela ideia de que alguém como ele se interessar por ela.
Bobbi e eu nos conhecemos no ensino médio. Na época, Bobbi era cheia das opiniões e sempre passava um tempo de castigo por ofensas comportamentais que a nossa escola chamava de “perturbação do ensino e do aprendizado”. Quando tínhamos dezesseis anos, pôs um piercing no nariz e começou a fumar. Ninguém gostava dela. Uma vez foi temporariamente suspensa por escrever “foda-se o patriarcado” na parede ao lado de uma imagem de gesso de Jesus crucificado. Não houve nenhum sentimento de solidariedade em torno do incidente. Bobbi era considerada exibicionista. Até eu tive de admitir que o ensino e o aprendizado fluíram muito melhor na semana em que ela não estava.
Claro que o flerte entre Frances e Nick começa a evoluir através de trocas de e-mails e uma ida da jovem à peça que Nick está apresentando, tudo envolto em um tom de romance que o leitor sabe que não vai terminar bem porque Frances não se ama o suficiente e não tem dimensão de onde está colocando seus sentimentos e esforços. Não estou tirando a responsabilidade dela, afinal, ela tem 21 anos e tem que arcar com as responsabilidades de suas escolhas, mas também preciso deixar claro que o compasso moral da jovem não é o melhor. Como comecei falando, tendo crescido em uma casa assistindo o casamento falido dos pais e vitima de agressões do pai, Frances não se sente merecedora de nada, e sente tanta dor interna que chega a extravasar se machucando, em cenas que são difíceis de ler, apesar de não detalhadas – enquanto fica aqui o aviso de gatilho. Ao mesmo tempo que vamos sabendo mais sobre o passado da personagem principal através de passagens em flashback que se misturam na narrativa do presente, vamos entendendo mais e mais como Frances funciona. E não é fácil.
Mas não é só o relacionamento com Nick que é tóxico e exige muito de Frances: seu relacionamento com Bobbi é também errado, cheio de maneirismos estúpidos e escolhas erradas, provocações que machucam e momentos que parecem prender as duas em um relacionamento já aparentemente falido. Parece que as duas estão caminhando de mãos dadas para um precipício e a sensação só se agrava porque vemos claramente que Frances tem ciúmes de Bobbi com Melissa, mas também vemos que ela deseja machucar a ex-namorada. Se você está pensando que o problema todo é como Frances deixa as pessoas entrarem em sua vida, lhe manipularem e a usarem, você está certíssimo. Então você se lembra que a personagem só tem 21 anos e não tem a maturidade necessária para aprender a se amar e entender que o problema de grande parte das cicatrizes que carrega não é dela.
Melissa inclinou a cabeça para o lado e soltou uma espécie de risada.
Está bem, qual das duas está mentindo? ela perguntou.
Eu estava mentindo. Exceto no sentido de enriquecer minha vida, Bobbi não me ajudava a escrever poesia. Até onde eu sabia, ela nunca tinha escrito nada criativo. Gostava de apresentar monólogos dramáticos e cantar baladas contra a guerra. No palco, era a intérprete superior e eu volta e meia a encarava com angústia para lembrar do que deveria fazer.
Preciso apontar ainda Melissa, a quarta ponta desse retângulo amoroso que confesso que é minha personagem menos favorita porque já se pode esperar algum tipo de estabilidade emocional e maturidade dela, mas não temos. É a personagem mais difícil de se entender de toda trama, e olha que está enfrentando a competição de Frances. Não consigo entender exatamente a personagem porque não temos um vislumbre real da personalidade dela, apesar de certa altura ela confessa que seu pai também era alcoólico, então ficamos só com as suposições neste caso. Franca e fraca, tudo ao mesmo tempo, Melissa parece também ser codependente do seu marido e, ainda assim, não se priva de tentar provocar reações em Nick, sem aceitar que o mesmo aconteça inversamente. É uma personagem que causa desgosto e pena, uma mistura que não faz muito sentido, pelo menos para mim, mas é como me sinto.
Ainda preciso apontar que foi o primeiro livro que li que a personagem principal tem endometriose, descobrindo e começando o tratamento durante a narrativa. Foi um tanto quanto impactante para mim porque apesar de não ser o tema do livro e nem abordar com profundidade, fica claro que Frances não lida bem com o diagnóstico de uma doença crônica incurável, e como pessoal que já esteve neste lugar, posso afirmar que a reação vai por esse caminho: se você não falar, não se torna real, mas é. E ah, a personagem que aqui também se chama Marianne, apesar de ter pontos em comum com a Marianne de “Pessoas Normais”, não é a mesma – pelo menos essa é a minha opinião.
Acho que estou sobrando, declarei.
Nick olhou para a estufa, onde Bobbi mexia no cabelo.
Você acha que a Melissa está dando preferência a ela? ele perguntou. Posso falar com ela se você quiser.
Tudo bem. Todo mundo prefere a Bobbi.
Sério? Tenho de admitir que fui mais com a sua cara.
Nos olhamos. Dava para perceber que ele tinha entrado no meu jogo, portanto sorri.
É, eu senti uma afinidade natural entre nós, respondi.
Os tipos poéticos me atraem.
Pois é. Tenho uma vida interior muito interessante, acredite.
Uma altura dessas, vocês já devem ter entendido que claro que há uma trama maior acontecendo aqui, relacionamentos desestruturados que provocam e movem a trama, mas, o grande motor de “Conversas entre amigos” são as personagens que criam todo drama que acontece por toda narrativa. E é difícil gostar de qualquer dessas pessoas porque elas são tão falhas e complicadas que fazem com que o leitor tenha problemas de se apegar, até que a compreensão do que está acontecendo chega: é exatamente isso que a autora deseja, através de uma trama que qualquer um pode se identificar por ser uma personagem complicada e complexa. E é isso que temos aqui, uma trama no qual os personagens conversam entre si e com o leitor, mas não exatamente da forma como você desejaria.
Claro que a junção dessas 4 pessoas com personalidades tão distintas e, ao mesmo tempo, tão dependentes uma das outras (em algumas direções, não em todas) é o caminho inevitável para o fracasso. Há tantas, mas tantas decisões erradas que levam os personagens para o que você acreditar ser uma conclusão desastrosa que parece inevitável, mas o que se apresenta ao leitor é o que acontece no dia a dia: a vida, pura e simples. Não há como falar sobre tudo que li aqui sem dizer que é justamente essa sensação que tenho, de que li a passagem da vida de uma jovem mulher que poderia ser minha amiga, em uma situação que se coloca e que continua se machucando por escolha própria, sem pensar nas consequências futuras, e tudo que senti ao terminar foi que queria realmente conversar com essa minha amiga e tentar ajudá-la. Mesmo que ela não deseje. Mesmo que essa conversa seja difícil e que doa. Mesmo que algumas conversas entre amigos sejam difíceis, muito difíceis.
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