21.10


“Conto de fadas”
Stephen King
Tradução: Regiane Winarski
Arte de capa: Ale Kalko
Suma – 2022 – 560 páginas

Aos dezessete anos de idade, Charlie Reade parece ser um garoto comum: pratica esportes, é um filho atencioso e aluno de desempenho razoável. Suas lembranças, entretanto, não são feitas apenas de momentos felizes. Após perder a mãe em um grave acidente quando tinha apenas dez anos, Charlie precisou aprender a cuidar de si e do pai, que, enlutado com a perda da esposa, buscou refúgio na bebida.

Certo dia, ao pedalar pela rua de casa, Charlie atende um pedido de socorro vindo do quintal de um dos vizinhos: Howard Bowditch. O homem recluso e rabugento, que amedrontava as crianças do bairro, cai de uma escada e se machuca gravemente. O chamado por ajuda veio de Radar, a fiel pastor alemão, tão idosa quanto seu dono.

Enquanto Bowditch se recupera, Charlie passa a ajudar o vizinho com tarefas domésticas e com o cuidado de Radar, e assim o rapaz faz duas grandes amizades. Quando Howard morre, Charlie se depara com uma fita cassete que revela um segredo inimaginável: um portal para outro mundo.

Antes de começar a falar do livro em si, preciso deixar claro duas coisas que você, que me lê, também precisa saber. A primeira é que este não é um livro de terror: isto mesmo, é do Stephen King e não, não é terror, é FANTASIA. “Conto de Fadas” é uma fantasia clássica, com uma jornada do herói, uma trama com elementos de alta fantasia e um mundo aonde o Mal está em guerra contra o Bem na forma de um governo tirano. Muitas pessoas acreditem que King só escreve terror, mas o autor já chegou em um patamar que pode (e deve) escrever o gênero que quiser, e entre seus livros não-terror mais conhecidos temos “A Espera de um milagre” (que inspirou o filme homônimo) e também “Misery”, que também inspirou um filme chamado “Louca Obsessão”, e ainda o mais recente “Billy Summers”, que resenhei sem spoilers e você pode ler clicando AQUI. Acho que já está claro que King é o rei do terror mas não se restringe ao gênero, e se você tem medo e não quer ler nada assustador, tem muito King pra você se jogar – e pode começar por este livro que você não vai se arrepender.

A segunda coisa que preciso deixar claro pra vocês é que “Conto de Fadas” é uma carta de amor aos livros, porque King prova aqui que além de ser o autor que ele é, ele nada mais é do que gente como a gente e um belo de um bookstan. A quantidade de menções à livros, tantos clássicos quanto menos conhecidos, e, claro, a todos contos de fadas, é capaz de deixar qualquer coração quentinho de amor. É uma homenagem perfeita para todos que leem, todos que o acompanham e todos que tem os livros como algo caro. Perdi as contas de quantas menções existem neste livro e acho que King resolveu escrever uma fantasia para chamar de sua, uma fantasia que possa se enquadrar em clássica, com todas suas características – e eu aposto que daqui alguns anos, é lá que “Conto de Fadas” estará.

Tenho certeza de que consigo contar essa história. Também tenho certeza de que ninguém vai acreditar nela. Por mim, tudo bem. Contar vai ser o suficiente. Meu problema (e sei que muitos escritores têm o mesmo, não só os novatos como eu) é decidir por onde começar.
Minha primeira ideia foi começar com o barracão, porque foi lá que as minhas aventuras de fato começaram, mas aí percebi que antes eu teria que falar do sr. Bowditch e de como nos aproximamos. Só que isso nunca teria acontecido se não fosse pelo milagre que houve com o meu pai. Um milagre bem comum, pode-se dizer, que aconteceu com muitos milhares de homens e mulheres desde 1935, mas pareceu um grande milagre para uma criança.

O enredo do livro é exatamente o que tem na sinopse: Charlie é um adolescente que está tentando ser o melhor possível porque ele acredita que presenciou um milagre, que, na verdade (e ele sabe disto) não é bem um milagre, mas foi algo que mudou sua vida: a ida do pai ao Alcoólicos Anônimos. Depois da morte por atropelamento da mãe do garoto, seu pai George ficou tão perdido que se entregou a bebida. Foi um tempo sombrio para o pequeno Charlie, ainda criança, a ponto dele implorar à Deus por um milagre. Depois que seu pai recuperou a sobriedade, nosso protagonista se dedicou a cumprir sua parte da barganha feita com Deus em troca do seu milagre e se tornou um garoto comportado, estudioso e com boas intenções. Tendo feito isso ainda criança, é bastante fácil do leitor compreender todas as atitudes que um adolescente Charlie toma, tudo em prol de ser uma pessoa melhor.

E é justamente por se tornando essa boa pessoa, que tenta fazer o bem, que Charlie atende os latidos de Radar, a velha cadela do senhor Howard Bowditch, que mora próximo ao garoto e que tem uma casa que lembra a casa de Norman Bates (lembra que eu te falei a quantidade de menções a livros que tem nesta narrativa? Pois bem, não é só a livros e também à diversos filmes) e todos no bairro tem medo do senhor idoso, assim como de Radar, que em outros tempos costumava aterrorizar as crianças que moravam por ali. Tendo salvo um idoso de uma queda feia aonde quebrou o quadril e outros ossos, Charlie se sente responsável pelo homem e se apega imensamente à Radar, e é assim, em uma dupla jovem-e-idoso que King tão bem desenvolve, que temos um dos principais relacionamentos deste livro, o qual começa de uma forma muito crível e atrelada a realidade: um jovem que quer ser bom porque acredita que o destino (ou Deus) lhe deu um milagre e que decide ajudar um idoso sozinho que precisa se recuperar de uma cirurgia com uma cadela que também está envelhecida. Até aqui, não temos sequer uma ideia do que está por vir, todo esse relacionamento sendo construído e contado em forma de flashback, já como Charlie deixa claro desde o começo que se tornou um escritor e essa história é sobre o que aconteceu com ele em 2013.

E nunca esqueci o acordo que fiz com Deus. Se você fizer isso por mim, eu faço alguma coisa por você, eu tinha dito. De joelhos. É só me mostrar o que quer que eu faço. Eu juro. Foi a oração de uma criança, muito pensamento mágico, mas uma parte de mim (a maior parte de mim) não acreditava nisso. Não acredita agora. Eu achava que a minha oração tinha sido atendida, como em um daqueles filmes bregas do canal Lifetime exibidos entre o Dia de Ação de Graças e o Natal. O que significava que eu tinha que cumprir a minha parte. Eu achava que, se não cumprisse, Deus tiraria o milagre e meu pai voltaria a beber. É preciso ter em mente que, por maiores que sejam os garotos, ou por mais bonitas que sejam as garotas, por dentro, os jovens do ensino médio ainda são crianças.

Até por volta da página 200 da narrativa, temos toda essa construção que já comentei, com clara demonstração de quem Charlie é na escola e em seus relacionamentos, sendo o principal com seu pai, o qual o jovem ama profundamente. Mas, quando esse terço inicial do livro é completo, temos a virada na trama que vem na sinopse do livro: a morte de Howard, de uma forma inesperada depois de tudo que ele passou. Charlie tem dificuldade de lidar com isso, se tornando tutor de Radar, mas ver também o quanto a cadela está velha o atinge. Ele acredita que não tem muito mais tempo com o animal que tanto se afeiçoou, e, além disso, há muito mais: George, o pai de Charlie, já havia contando ao filho as suspeitas de que Howard não era exatamente quem dizia ser, e isso, somado ao fato de que o idoso precisou aprender a confiar no adolescente para cuidar de sua casa e de Radar até que a conta do hospital chega e ele precisava conseguir dinheiro para quitas as dividas. É ai que Howard surpreende Charlie, indicando o lugar em sua casa no qual tinha “bolotas” de ouro, então pedindo ao garoto para trocar e conseguir dinheiro para quitar a dívida e também pagar ao próprio Charlie, o qual contratou como seu “faz tudo” naqueles tempos.

Claro que Charlie fica bastante desconfiado de como Howard poderia ter aquele tanto de ouro, mas, depois da morte do homem, tudo que ele quer fazer é cuidar da casa. Só que claro que não vamos parar por ai, porque mais alguém sabe do ouro que Howard tinha e invade a casa. Mas temos um protagonista que não é nada, nada bobo e já esperava que algo assim poderia acontecer – mas o que não esperava era a fita que Howard lhe deixou, explicando o que há em um barracão no fundo da casa (e de onde Charlie já tinha ouvido sons inexplicáveis!) e ai sim, temos o começo da trama de fantasia por um motivo muito nobre: Charlie está tentando salvar alguém.

Ele estava ocupado demais bebendo para pensar nisso, lembrei. Quase todos os meus antigos ressentimentos tinham passado, mas não totalmente. O medo e a perda deixam resíduos.

Ao ter acesso a este outro mundo, o qual se chama Empis, Charlie segue exatamente as indicações de Howard e logo descobre uma doença que se abate sobre os moradores do lugar, mas há muito mais com uma trama de um tirano , trama esta capaz de colocar sua própria vida em perigo enquanto vemos que o jovem aprender sobre amizade, lealdade e amor em uma grande aventura que pode resultar na recompensa que ele tanto deseja. E eu não vou te entregar nada, absolutamente mais sobre a jornada do herói que acompanhamos com Charlie.

A medida que a trama se desenrola, vamos vendo a construção de King, que não está escrevendo um conto de fadas: ele está reescrevendo, a sua forma e semelhança, os contos de fadas que conhecemos e que também sabemos que não é tão lá contos de fadas assim. “João e o pé de feijão”, “Mágico de Oz”, “A pequena sereia” e muito, muito mais, são sim, misturadas em um caldeirão de contos de fadas com o toque de King. Sinto que eu estou me repetindo, mas não tem como não deixar claro que King fez o seu próprio conto de fada com sua visão, que sabemos ser sombria, do que imaginamos e do que esperamos com um “final feliz” através de Charlie Read, que fala diretamente com o leitor enquanto vai narrando sua jornada, nos instigando e mostrando mais e mais de seu caminho em Empis.

Você pode já estar com um sentimento bom sobre o jovem Charles Reade a essa altura, eu acho, tipo um herói daqueles livros de aventura para jovens. Eu sou o garoto que ficou com o pai quando ele estava bebendo, limpou o vômito dele, rezou pela recuperação dele (de joelhos!) e conseguiu o que pediu na oração. Eu sou o garoto que salvou um homem idoso quando ele caiu de uma escada tentando limpar as calhas. O garoto que foi visitá-lo no hospital e cuidou dele quando ele voltou para casa. Que se apaixonou pela cadela fiel do homem, e a cadela fiel se apaixonou por ele. Eu peguei uma .45 e encarei um corredor escuro (sem mencionar as formas de vida gigantescas nele) e saí em outro mundo, onde fiz amizade com uma senhora com rosto desfigurado que colecionava sapatos. Eu sou o garoto que dominou o assassino do sr. Heinrich derramando bolinhas de ouro por todo o piso, para que ele perdesse o equilíbrio e caísse. Caramba, eu até competia em esportes! Forte e alto, sem acne! Perfeito, né?
Só que eu também era o garoto que botava bombinhas em caixas de correspondência e explodia o que poderia ter sido a correspondência importante de alguém. Eu era o garoto que tinha esfregado merda de cachorro no para-brisa do carro do sr. Franklin e jogado cola no buraco da ignição do Ford Wagon velho da sra. Kendrick quando Bertie e eu o encontramos destrancado. Eu derrubei lápides. Furtei de lojas. Bertie Bird estava comigo em todas essas aventuras, e foi ele quem ligou para fazer a ameaça de bomba, mas eu não o impedi. Houve outras coisas que não vou contar porque tenho vergonha. Só digo que nós assustamos tanto algumas criancinhas que elas choraram e se mijaram.
Não tão legal, né?

Alias, caso você não tenha entendido o quão uma carta de amor este livro é ao leitor e aos livros, o sobrenome do personagem principal é Read, ou seja, Ler. Não há como não entender isso a medida que a aventura de Charlie vai se tornando mais perigosa e mais profunda nas terras até então desconhecidas, seja por todas referências, seja pelo simples fato de que você entende que King está se divertindo ao escrever este livro de um jeito até mesmo leve – atenção> leve para os padrões King, é claro! Porque há algumas passagens sombrias, com deformidades em seres, bichos grandes, monstros, anões, gigantes e até mesmo duas luas (“Star Wars” também ganha sua referência aqui em forma de duas luas e não dois sóis!), tudo tendo papel em uma história que definitivamente é capaz de conquistar todos os corações. E para quem está acostumado a livros de Fantasia se tornarem séries de livros, aqui temos uma trama redondinha, sem necessidade de continuação, mas que deixa ainda espaço para isto acontecer, se King quiser. Quem sabe o que pode acontecer? E ah, claro que os direitos de adaptação já foram comprados pelo cineasta Paul Greengrass e você pode ler a noticia em inglês clicando AQUI.

Como fã de Fantasia, meu gênero literário favorito, e também fã do autor, eu não poderia estar mais feliz com esse livro, o qual definitivamente entrou na minha lista de melhores do ano. Não só por Charlie conversar comigo e me levar por sua história e ser um personagem que deixa muito claro suas motivações e quem ele é. Não só pela amizade de Charlie com Howard ou o amor de um filho por seu pai ou ainda o amor deste rapaz por Radar, é também por alguém que é capaz de fazer o necessário quando precisa e não tenta maquiar suas intenções. É por Charlie ter se tornado um amigo querido meu e por ter me contado o que viveu em seu próprio Conto de Fadas.

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