“Pequena coreografia do adeus”
Aline Bei
Companhia das Letras – 2021 – 264 páginas
Julia é filha de pais separados: sua mãe não suporta a ideia de ter sido abandonada pelo marido, enquanto seu pai não suporta a ideia de ter sido casado. Sufocada por uma atmosfera de brigas constantes e falta de afeto, a jovem escritora tenta reconhecer sua individualidade e dar sentido à sua história, tentando se desvencilhar dos traumas familiares.
Entre lembranças da infância e da adolescência, e sonhos para o futuro, Julia encontra personagens essenciais para enfrentar a solidão ao mesmo tempo que ensaia sua própria coreografia, numa sequência de movimentos de aproximação e afastamento de seus pais que lhe traz marcas indeléveis.
Escrito com a prosa original que fez de Aline Bei uma das grandes revelações da literatura brasileira contemporânea, Pequena coreografia do adeus é um romance emocionante que mostra como nossas relações moldam quem somos.
Sinceramente, não sei por onde começar falando sobre este livro porque sequer tenho a pretensão de falar que irei resenhá-lo: a obra é muito, muito maior do que eu seria capaz de colocar em palavras para vocês. É uma felicidade poder ler e falar pra vocês o quão forte um livro é, e me encontro neste lugar agora. Estou ainda em estado de graça de ter lido e conhecido a história de Julia, que começa com ela criança, ainda tentando encontrar seu lugar em um mundo fragmentado: seu pai, Sérgio, e sua mãe, Vera, se separam, deixando a garota com a certeza de que não era desejada realmente por ninguém ou sequer tinha um lugar e espaço na vida de seus pais.
As experiências de Julia vão sendo permeadas por essa sensação de rejeição, de ser incompleta, de precisar colocar para fora todas essas sensações mesmo que não saiba como, e, por isso, ela chega a ser violenta com uma coleguinha, o que lhe acarreta uma grande surra de sua mãe, coisa que parece se repetir mais vezes do que a garota realmente merecia. Privada de sua infância, Julia não entende porque não tem o carinho que tanto procura, sendo muitas vezes lançada em um espiral de carência que a faz aceitar migalhas de atenção de sua mãe e de seu pai.
quando o divórcio chegou, finalmente
algo se rompeu
também em mim.
aos poucos fui percebendo
que nenhuma relação que eu estabelecesse no futuro
viria sem esta conta
da quebra
da inocência, quando as pessoas se casam elas não ficam juntas para todo o sempre?
então não há segurança
com nada e com ninguém?
ao longo dos anos
e por trás de cada relação que eu estabelecesse
me assombrava a certeza de que
as pessoas
se Abandonam
muitas nem se amam, se casam por medo
da Solidão e
têm filhos
pelos mesmos motivos.
Nessa altura de minha leitura, eu me lembrava com precisão de algo que vemos muito na faculdade de direito: muitos pais e mãe, ao se separarem, acreditam que estão se separando dos filhos também, o que não poderia estar mais longe da verdade. Julia está exposta, ferida e precisando se agarrar em algo que não tem e não encontra, enquanto sua mãe parece não parar de pensar em sua própria dor de um casamento falido e seu pai não para de se agarrar a sensação de que agora, solteiro, pode enfim aproveitar a vida em sua totalidade, esquecendo que uma criança, no meio de uma situação dessas, carregará consigo as marcas da sensação de se sentir deslocada em sua própria casa, em sua própria família e em sua própria pele.
Julia precisa começar a colocar tudo para fora, toda aquela dor que nem ela mesma entende como sente, e sua saída é começar a escrever um diário. Em sua pouca consciência do que escreve, a pequena começa a se apegar a escrita e a forma como precisa colocar para fora o amor e o ódio que sente pelo pai em um único dia, seja através de um afago do homem até uma negativa a um pedido. Enquanto a mãe fica como uma figura rígida, de mulher que não superou um casamento fracassado e a responsabilidade de criar uma criança, o pai de Julia ficou com o bônus de ser o pai legal, aquele que aparece uma vez por semana para se divertir com a filha, mas que, ainda assim, consegue não ser tudo que ela precisava.
me sentia um verdadeiro Pêndulo: ora caminhando
solenemente para a presença materna, ora fugindo
de qualquer possibilidade de mãe.
ora correndo
para o pequeno afeto que o meu pai me dava
ora odiando o fato
de tê-lo
em casa, fechando os olhos
toda vez que ele se aproximava de mim.
O livro é divido em somente 3 capítulos: Julia, Terra e Escritora, o que foi um grande trocadilho aqui, já como são o nome, sobrenome e a pretensa profissão que a protagonista almeja. Claro que cada parte da narrativa conta uma fase da vida de Julia, e o lirismo está presente em cada parte da narrativa. Não esperem parágrafos demarcados, uma narrativa crescente – não espere um romance em uma forma habitual, por mais que “Pequena Coreografia do Adeus” esteja marcado como um. Há um que de poesia na forma como a autora vai mostrando a jornada de uma garota que vai se tornando adolescente e depois uma jovem mulher neste mundo caótico e fora do lugar.
Já em sua idade adulta, Julia escreve sua dor em um livro que fala justamente sobre o sofrimento de um personagem que está se sentindo só enquanto apanha de um tio feroz, fazendo um paralelo com sua própria dor e criando outro personagem para sua história: o livro que escreve. Ao mesmo tempo, vamos tendo a música bastante presente como uma crescente – tão crescente que a própria autora faz uma playlist para o livro (e que você pode saber como ouvir e mais clicando AQUI).
quando terminou estava Exausta.
mandou eu limpar
toda aquela merda
para que eu compreendesse, enfim
que quebrar uma coisa
sempre tem as suas consequências
e eu pensei: Depende.
Depende
de quem você é.
Li o livro em uma participação de uma cabine de leitura com a autora, e quero também falar um pouco sobre a Aline Bei porque estou profundamente encantada com esta mulher: vinda do meio artístico, Aline tem uma áurea que entrega tanto de uma pessoa com a sensibilidade aflorada que ela é capaz de te hipnotizar só falando. Algumas pessoas possuem dons e Aline definitivamente é uma dessas pessoas, dotada de uma calma que transborda a tela e as páginas que escreve, mesmo que estas contenham as mais duras frases, constatações e diálogos. Definitivamente é alguém que todos deveriam ler as obras e acompanhar. Eu sei que eu irei.
Já faz alguns dias que li “Pequena Coreografia do Adeus” e ainda me pego pensando em certos trechos e passagens do livro, principalmente no final. Já falei em outras resenhas que muito do que sentimos ao ler um livro vai de encontro as nossas vivências pessoais e também o que estamos enfrentando quando lemos aquele título – mas aqui preciso confessar para vocês que não passei pelo que Julia passou: meus pais não se separaram, eu não senti o abandono da forma como a personagem principal passa, e o que me atingiu nela foi mesmo a forma como Aline Bei escreveu esse livro, a forma como ela tão delicadamente falou sobre a dor de Julia e sobre como ela não se sentia suficiente, a inquietude de uma personagem que queria ser amada e se sentir em casa, mesmo não sentindo que esta existia.
desde quando sabemos de todas as coisas que acontecem no mundo se mal sabemos o que se passa no fundo do nosso coração?
Sinceramente, há muito, muito que eu gostaria de falar sobre este livro, que não pode ser descrito ou resenhado, como comecei falando. Só tenho elogios em toda forma, em toda história, em toda criação da Julia e de sua dor, a forma como ela tenta sabotar sua própria vida e, ainda assim, com tantas dores e cicatrizes, ainda é capaz de encontrar o perdão e a esperança para lhe guiar. Enxergar a dor nas ações dos outros e em suas próprias ações deu a Julia a sensação de que há muito que se olhar para a frente, e é assim que termina o livro: como um leve contato que muito era aguardado por nossa protagonista e também a redenção que o leitor esperava. Foi maravilhoso ler esta jornada intensa e forte que definitivamente irá me acompanhar, se tornando uma das minhas melhores leituras do ano e que me mostrou brilhantemente que há uma pequena coreografia no adeus, mas é a vida que tem o palco inteiro, com espaço para diversos outros atos, até mesmo a grande coreografia do amor.
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