“Coração Satânico”
William Hjortsberg
Darkside – 2017 – 320 páginas – Edição capa dura
“Coração Satânico” se passa em Nova York, em 1959. Harry Angel é um detetive particular contratado para encontrar Johnny Favorite, um músico famoso que desaparecera após a Segunda Guerra Mundial. Psicologicamente transtornado com os campos de batalha, Johnny retornaria aos Estados Unidos em estado catatônico. Dias depois, ele some do hospital de veteranos, sem deixar rastros. O caso leva Harry Angel a se envolver com seguidores de magia negra, assassinos e um cliente que não ousa perdoar velhas dívidas. A história seria consagrada mais uma vez em 1987, quando “Coração Satânico” ganhou uma adaptação cinematográfica dirigida por Alan Parker, com Mickey Rourke e Robert De Niro nos papéis principais. O sucesso do filme em todo o mundo apresentou Hjortsberg a novos leitores, mas infelizmente os brasileiros estavam a muito tempo sem acesso a sua verdadeira obra-prima. Dois anos antes, o autor já havia escrito o roteiro de A Lenda (1985), filme de fantasia dark dirigido por Ridley Scott, com Tom Cruise e Mia Sara.
“Coração Satânico” é considerado um clássico em seu seguimento: um triller policial com toques sobrenaturais. Sempre ouvi falar tanto do livro quanto do filme, e chegou a hora de visitar essa estória. Comecei a ler o livro (que não é longo em si) e no meio da história já tinha entendido perfeitamente bem porque recebe tantos elogios: com uma escrita direta, a trama é bastante envolvente e que te prende realmente no universo criado, sem qualquer enrolação ou barriga na história.
“Normal? Palavra abominável, normal. Não tem o menor significado.”
À medida que você vai conhecendo Harry, você entende que ele tem alguns sérios problemas: veterano da Guerra do Vietnam que se tornou um detetive particular, ele é contratado pelo misterioso milionário Louis Cyphre para encontrar um famoso cantor desaparecido: Johnny Favorite. É bem a premissa da sinopse e é somente isso que você precisa saber realmente para não tomar nenhum spoiler porque essa estória merece ser lida sem você saber de nada além disso. Sei que parece um tiro no escuro, mas o livro lhe apresenta um suspense que você *quer* saber o que acontece em seguida, com cenas tipicamente de detetive e policial, já como Harry precisa encontrar Johnny através da boa e velha pesquisa detetivesca.
“O túmulo jaz ao final de toda trilha. Apenas a alma é imortal. Guardem este tesouro com carinho. Seu invólucro decadente é apenas um barco temporário numa viagem sem fim.”
Um dos grandes trunfos do livro é quando ele começa a mostrar que há mais do que somente uma busca por alguém que está suspostamente desaparecido: a apresentação dos personagens é tão bem feita que eles são inseridos na trama já trazendo algo a mais sobre a procura de Harry, enquanto pequenas pinceladas do sobrenatural vão sendo adicionadas a trama. O vodu é um personagem importante do livro, e confesso que fiquei bastante curiosa sobre o que o livro me apresentou, sem saber se realmente coisas como ele traz acontecem em rituais. Mas estou entregando demais, então melhor parar de falar fatos concretos da trama aqui.
“Sombras se deslocavam de forma grotesca sob a luz incerta das velas. A batida demoníaca dos tambores dominou os dançarinos com seu feitiço vibrante. Seus olhos rolaram para dentro das pálpebras; suas bocas espumavam enquanto eles cantavam.”
Como sempre, preciso destacar que uma das melhores coisas do livro é o fato das personagens femininas não serem usadas somente como interesse amoroso e muito menos como joguete para mostrar a virilidade das personagens masculinas. Existem duas personagens femininas centrais – Epiphany Proudfoot (dona de uma loja de artigos sobrenaturais, digamos assim) e Margaret Krusemark (ex-noiva de Johnny Favorite), as duas inteligentíssimas e dispostas a seguirem os seus cursos e propósitos, mesmo que eles se esbarrem na jornada de Harry procurando por Johnny que, como vocês podem imaginar, era muito importante para as duas, de formas muito, muito diferentes – muito mesmo. Preciso situar que o livro foi escrito no ano de 1978 e a trama se passa em 1959, sendo narrado em 1º pessoa pelo Harry, coisa que nos envolve mais ainda na trama e dá mais destaque ainda as personagens femininas, já como nessa época era sempre muito mais comum usar personagens femininos somente para servirem de “escadas” para as personagens masculinas.
“Pode ser. Um cafajeste sempre faz o coração de uma garota bater mais rápido.”
O seu está batendo mais rápido agora?, eu me perguntei.”
Fazia tempos que eu não li algo que eu queria TANTO chegar ao final e ter certeza de que minhas teorias estavam certas ou não (acertei em parte!) e fazia tempos também que eu não via um livro terminar com uma precisão tão cirúrgica assim: a narrativa para exatamente aonde precisa, sem ter mais uma linha sequer, com o mistério resolvido e a sensação de enjoo em nosso estomago, sem conseguir acreditar que o autor foi ali, naquele tema e terminar o livro daquele jeito. Mas, sinceramente, dentro da narrativa, não posso dizer que não foi tudo um circulo bastante perfeito, do tipo que o diabo gosta.
E então eu decidi ver o filme! (Pena que não está disponível na Netflix)
De 1987, o filme está sim, datado – não é aquele tipo de filme que você não sente nem diferença no estilo de atuação e filmagens. Muito da estória original foi mantida: o ano, algumas frases literalmente vieram diretamente do livro, maaaaaaaaaas… as personagens femininas foram submetidas a tudo que não foram no livro: aqui Epiphany deixa de ser uma universitária para ser uma garota linda mostrando o corpo e se fixando nisso foi, de longe, a mudança que mais me incomodou (mas um momento pra falar que a atriz da personagem, Lisa Bonet, é uma das mulheres mais lindas que já vi na vida!). Todo o arco de Margaret também foi suprido da narrativa do cinema, deixando uma personagem que você não se importa nem um pouco e nem crê na inteligência dela. Ah, uma personagem masculina que é repórter do livro tem seu gênero transformado para ser somente uma transa para Harry. Algo bem típico de Hollywood: mulheres como objetos sexuais em todos lugares.
Só que temos Robert de Niro como o enigmático Senhor Cyphre, que, claro, dá um show (como em tudo que ele faz parte). Sinceramente, o filme já valeria a pena completamente por causa dele. Há mudanças desnecessárias, como, por exemplo, a introdução de New Orleans na trama do filme por ser uma cidade aonde o vodu faz parte de sua cultura, coisa que não há no livro, aonde a narrativa se mantem em New York. A velocidade com que Harry vai de New Orleans para New York só me fez perguntar qual o motivo de ter introduzido a cidade na narrativa, além de mudança de alguns cenários.
Sei que falando assim pareço que odiei o filme, o que não é verdade. Se eu tivesse visto o filme antes de ler o livro, eu provavelmente teria gostado mais, mas é aquela velha coisa que sempre sabemos e falamos: o livro é melhor do que o filme. Arrastei a Ju para assistir o filme comigo (mesmo à distância) e eis a opinião de quem viu o filme sem ler o livro:
Julia: Como a Virna falou, eu não cheguei a ler o livro. O que eu sabia eram pequenas coisas que ela tinha comentado comigo antes de assistir, mas eu não sabia nada realmente SÉRIO sobre todo o plot principal, só o que eu sabia era justamente isso: que Harry é um detetive contratado pelo Senhor Cyphre em busca do cantor Johnny Favorite.
Bom, a minha opinião em si, sem dar muitos spoilers é a seguinte: Eu achei um bom filme realmente. Mas confesso que o achei um tanto confuso em muitas partes. Muitas coisas não tinham tanta explicação assim conforme iam acontecendo e pareciam coisas completamente aleatórias, como se nenhuma se ligasse e conectasse a outra. O que salvou realmente pra mim o filme foi o final dele onde tudo é explicado, todas essas que pareciam pontas soltas no meio da história enfim tomaram uma forma, depois de ter me deixado agoniada grande parte do filme.
E como a Virna mencionou ali também, me incomodou, mesmo sem ter lido o livro, o fato de todas as mulheres que apareceram ali não tinham nenhum papel “importante” assim além de servir ou para o personagem principal transar em troca de informações – como a repórter que no livro originalmente é um homem, ou para aparecer com poucas informações (porque como eu falei anteriormente, eles não dão todas as explicações abertas assim) ou para mostrar o corpo como a Epiphany.
No filme também teve uma cena que eu achei particularmente nojenta e desnecessária sobre vodu, mas não vou entrar em detalhes aqui pra não dar muitos spoilers!
Enfim, eu gostei do filme, gostei de ter visto ele e principalmente do final, que é aquele tipo de final que te deixa chocado e surpreso (pelo menos eu sei que foi assim que me deixou!)
No final das contas, o que eu tenho pra falar sobre o filme é que se você consegue assistir um filme com algumas cenas gore (bem gore, na verdade) e quer ser presa por uma boa história com alguns cortes, não se prive e assista “Coração Satânico”. Só que se você quer realmente uma estória com toques policial e vodu muito bem amarrada, o livro é que você precisa ler. E ah, sabe o final do filme que a Ju falou acima que ficou chocada e surpresa? É EXATAMENTE igual ao livro. Uma maravilha!
A edição da Darkside é MARAVILHOSA (peguei emprestado o livro e doeu devolver), capa dura e com uma carta de Stephen King falando sobre o livro. Termino justamente com um trecho do que um dos maiores escritores do nosso tempo fala sobre a obra:
É um livro único. Nunca tinha lido algo remotamente semelhante, e suspeito que jamais encontrarei algo parecido novamente. (…) Vou ficar de olho em Johnny Favorite — e, com um temor maior, em Louis Cyphre — por um bom tempo.
Algumas curiosidades: o autor William Hjortsberg faleceu ano passado, e segundo alguns rumores, trabalhava em uma continuação do seu livro mais conhecido. Não sei se o manuscrito ainda será lançado ou em que pé se encontra, não achei informações sobre isso, mas adoraria saber aonde a história de Harry Angel iria parar. O nome original do livro é “Falling Angel” e do filme “Angel’s Heart”. Aqui no Brasil os dois ficaram com o nome de “Coração Satânico” mesmo, bem direto.
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A nota do livro: