Resenha: Como nascem os fantasmas – Verena Cavalcante
“Como nascem os fantasmas”
Verena Cavalcante
Arte de Capa: Amanda Miranda e Ale Kalko
Suma – 2025 – 152 páginas
Assombrada pela imagem de uma mãe perfeita, Beatriz só quer conquistar o amor e aprovação da avó. Importante líder religiosa na cidade onde moram, no interior de São Paulo, Dona Divina criou a neta sem nunca superar o luto da perda de Ângela, sua única filha, que morreu dando à luz.
Apesar de passar boa parte da infância imitando os trejeitos e gostos da mãe, Beatriz entende cedo que não é o que a avó espera ― está muito distante da mulher recatada que Ângela fora um dia.
Quando se depara com a manifestação de um fantasma ― uma criança que lhe revela um crime hediondo ―, Beatriz vê uma chance de entrar no mundo da avó e superar a sombra da mãe, e começa uma jornada sombria de autodescoberta, desvendando segredos sobre as pessoas e os fantasmas ao seu redor.
Tendo como pano de fundo as maravilhas e as bizarrices do Brasil dos anos 1990, Como nascem os fantasmas é uma narrativa imersiva, violenta e arrasadora. Em seu romance de estreia, Verena Cavalcante constrói um universo de personagens assombrados com uma protagonista tão ingênua quanto inconsequente, cujas atitudes mudarão para sempre a vida de todos que a cercam.
Há histórias voltada ao terror que são simplesmente assustadoras, sem um significado e nuances ocultas – “O Exorcista”, de William Peter Blatty, de 1971 – que são feitos para assustar baseado na ideia de temermos o mal na forma de um demônio, detentores de uma força muito maior do que nós, simples humanos, podemos compreender. Sou fã do gênero, mas acho que mais assustador do que o oculto e inexplicável são os humanos, estes seres que são capazes de fazerem as maiores atrocidades por diversos motivos, inclusive o simples “porque posso”. Não consigo explicar o quanto isso me assusta, mas também há outra coisa que me assusta: a forma como diversas formas amor podem ser negados a alguém que deveria receber aquele amor.
Eu sempre soube que os mortos falavam por meio da minha avó. E fazia da boca túmulo para não atrapalhar.
Fui criada com ouvidos de morcego, atenta à vizinhança que volta e meia parava diante do portão e destampava a berrar, Dona Divina, abre a porta!, implorando por toda sorte de bênçãos. Faziam fila debaixo do manacá do jardim, trazendo no colo bebês de olhos inchados envoltos em cueiros respingando leite azedo, e exigiam de vovó a cura dos quebrantos com seus dons de benzedeira. Arruda, três lambidas na testa, e então dito e feito; proclamavam milagres, distribuindo as flores-de-são-miguel que, logo na primeira noite de sono santo, amanheciam trepadas nos berços. Se a criança fosse mais velha e surgisse com uma perna mais curta que a outra, de cabelos brancos e pele arrepiada feito frango depenado, o diagnóstico era vento-virado. Bastava água benta, breve e figa, o sinal da cruz na tez pálida, e o cabelo escurecia na mesma hora, na rapidez do abre e fecha das gazânias.
Beatriz é uma garota de 11 anos que cresceu tentando ser a mãe, Ângela, morta no parto da filha. Sua avó, dona Divina, cuida da neta de uma forma absurdamente desconfortável: a vesta com as roupas da filha já morta e por diversas vezes a compara a filha, fazendo uma sombra pairar na garotinha, que tenta imitar os jeitos, gostoso e modo de falar da mãe com a qual nunca conviveu, mas vê através de fotos. Bia é colocada em um lugar de tanto tentar ser alguém que não é que começa a se olhar no espelho e não saber se é ela, Bia, ou o fantasma de uma mãe que ela provavelmente tinha amor por, já como nunca conviveu. E o mais assustador é que Divina não vê o estrago que está fazendo na garotinha mesmo a amando e tentando protegê-la, mas este amor não é capaz de proteger a neta das escolhas que ela fará, tudo em busca de se sentir mais próxima da avó e de se descobrir.
Bia é uma garotinha desconfortável em sua própria pele: se sente grande demais, alta demais, gorda demais para as roupas de sua mãe. Sente que deveria ser mais cheia de candura, exatamente como sua mãe, mas há uma ferocidade dentro dela, uma sede por descoberta e desbravar o mundo que não é capaz de a segurar naquela forma que ela gostaria de ser. Tudo isso vai acontecendo ao mesmo tempo que somos apresentados a Divina pelos olhos da neta, uma mulher forte e firme, que cuida do marido em estado vegetativo em casa.
Mas o assunto predileto de vovó era Ângela, minha mãe morta. A ausência sólida da filha a preenchia com memórias embebidas em felicidade nostálgica, impregnando o cotidiano de uma saudade dolorida que ela alimentava a todo minuto; quase como se, à simples menção de seu nome, fosse capaz de materializá-la no mundo. Porém, mais do que as histórias das idiossincrasias de minha mãe, o que eu pedia para vovó recitar, de preferência antes de dormir, era a hora de sua morte. — Ela já chegou fraca na maternidade, sabe, filha? Tava perdendo muito sangue. Fora os nove meses que a coitadinha passou vomitando. A falta de cálcio fez caírem os dente tudo… — Silenciava por um instante, tentando retomar o fio da meada. — Na hora eu já percebi que ela tava nas últimas. A mão tava mole, os olhos perdendo brilho… E é aquilo que dizem: o olho é a janela da alma. E por isso ele apaga junto dela. Naquelas foto de defunto que o povo de antigamente tirava, dá pra ver que a pessoa tá morta é pelo olho. Sabe por quê? Porque ele cai. Fica nas bochecha — dizia, usando quase sempre as mesmas palavras, levantando os olhos só para puxar a enrugada pálpebra inferior de um deles para baixo. “A última coisa que a minha Ângela conseguiu dizer foi Não tá mais doendo, mamãe, desse jeitinho assim, sabe? Que nem quando era menina nova e tinha dor de barriga na madrugada. Então senti ela esvaziando feito bexiga, e vi uma luz branca muito bonita, forte, enchendo o corredor do hospital tudo. Foi tanta tristeza que eu quase fui… Quase morri junto. Já imaginou perder um filho? Num tem dor igual. Num tem. E olha que eu já perdi vários. Perdi vários nessa terra gulosa e maldita. Ela foi a única que vingou. A única que não virou sangue na calcinha pra Mulher Vermelha lamber. Até aquele dia.”
Divina também é uma benzedeira e médium – e aqui preciso falar que se você já era uma criança nos anos 90, você irá ter diversas menções a coisas que aconteciam neste pais, desde sandálias da Xuxa (de plástico e que provocavam bolhas se a usassem demais) à banheira do Gugu. Mas aqui, o tempo se faz extremamente necessário e não somente uma escolha narrativa, já como o avô de Bia, seu Cristovão, foi da policia durante a Ditadura Militar brasileira e foi ao tomar um tiro que ficou naquele estado que a garotinha sempre se espanta ao ajudar na limpeza do idoso.
Tudo começa a mudar quando Beatriz começa a tentar ser ela mesma e com a morte de uma garota de 7 anos chamada Mayara. Em uma noite, Bia vê Mayara, que aparece para ela de uma forma realmente assustadora e que obviamente não falarei mais para não entregar spoilers, mas é ai que o relacionamento dela com a avô realmente começa a ruir de forma irrecuperável. Apesar de ser médium, dar benções, incorporar espíritos e ser ativa na Comunidade do Divino Espírito da Flor Vermelha, a mulher não queria o mesmo destino para a neta, e, por isso, quando a neta começa a assinalar que está vendo espiritos, a avó rejeita a possibilidade com toda força, sem querer dar crédito ao que neta afirma estar acontecendo, mesmo Divina incorporava Madame Helena Blavatsky (referências!) e assumindo os trabalhos de clarividência da comunidade.
— Não é história, vó! É verdade, eu juro. A Mayara…
— A Mayara nem tá mais aqui, filha, ela já foi… Ela já tá em outro plano. Nem fala muito nela que é pra num atrair ela de volta, já basta a mãe. Deixa a Mayara pra lá. Quietinha. Do lado de Nossa Senhora.
— Mas é verdade, vó. Eu juro.
— Ai, Bia, larga a mão que você tá me atrasando o almoço.
— E alguém chamou meu nome de noite quando eu tava dormindo. Chamou várias vezes! Assim ó: Beatriiiiz… Beatriiiiz… Lá de dentro do armário, onde tão as roupas da mãe. E era voz de mulher.
— Não inventa moda, menina.
— É verdade, vó. Eu também sou médium! Igualzinha a você.
— Olha, presta atenção numa coisa, Beatriz. Uma coisa é nascer com esse dom, outra bem diferente é ir atrás de conseguir. Ou você nasce com a porta aberta ou não. Se você forçar, arrombar essa porta, então o pior acontece: você dá licença pra qualquer coisa entrar na sua casa.
Bia também tem amigos, mas o principal é Lipe, garoto basicamente abandonado que claramente nutre sentimentos pela garota e que é todo apoio que ela tem depois de um rompante que leva a uma cena de cortar o coração entre a garota e sua vó Didi, o abismo entre as duas criado de uma forma sem deixar lugar para a construção de uma ponte. Lipe realmente tenta de tudo com Bia, mas há uma proteção da garota que é explicada pela forma com a qual ela se vê e também a forma como sempre foi comparada com sua mãe. Crescendo assim, parece que amor nunca chegará até Beatriz e isso é de partir o coração do leitor.
E é justamente Lipe quem Bia convence a ajudá-la em um ritual, já como sua avó parece não aceitar sua própria mediunidade, e é ai que tudo vai realmente mudar, carregando a trama para um final esperado e apoético, mas que também acerta o leitor com a sua imensidão e possibilidades, salpicado de momentos sombrios e desejos nunca concretizados. Tudo que se pode sentir ao encerrar esta leitura é a vontade de remendar nosso próprio coração e a forma como as pessoas podem entrar em nossas almas de uma forma sem volta – e também vontade de dizer pra Bia que ela merece ser amada sim.
A roseira sorridente era um muro sanguíneo de presságios. Vovó a tratava com veemência apaixonada. Acreditava ser uma oferta de paz à Mulher Vermelha.
— Quando sua mãe nasceu — recontava, podando as rosas com o tesourão ou lhes borrifando água de fumo —, eu enterrei o umbigo dela bem aqui. Fiz isso porque queria que minha menina fosse um anjo de candura e beleza.
— E o meu, vó? Você também enterrou debaixo da roseira?
— Eu não. E ser bonita lá é vantagem? No caso da sua mãe não fez diferença nenhuma. Eu fui muito boba. A Mulher Vermelha num dá ponto sem nó. Ela é assim. Com uma mão — vovó me estendeu uma rosa recém-cortada, as pétalas sedosas exalando a doçura do sangue-seiva —, ela dá. Com a outra, ela tira. — Enfiando a tesoura no bolso do avental, mostrou as palmas perfuradas de espinhos. — Sangue se paga com sangue. Por isso é importante tomar muito cuidado com essa roseira, filha. Ela tem fome.
— De quê?
— De dor.
O terror e o gore fazem parte da trama, que claramente mistura os tipos de horrores que falei no começo desta resenha, em todas as suas páginas. Bia é uma personagem complexa, mesmo com sua pouca idade e, claro, não espere uma trama inocente e nem leve, já como estamos falando sobre terror. Verena foi uma grata surpresa e definitivamente essa trama me atingiu de formas diversas, mas, definitivamente, o que precisamos entender é que nem tudo se explica, mas tudo se sente – e o amor é algo que devemos receber e não somente aceitar o que acreditamos merecer. Sei, misturei narrativas aqui, mas senti muito pela Bia e espero que ela tenha tudo que merece, mesmo sua avó tendo feito nascer diversos fantasmas nela, reais ou não.
O livro ainda está em pré-venda e será publicado em 10 de junho próximo.
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