Resenha: A tempestade que criamos – Vanessa Chan
“A tempestade que criamos”
Vanessa Chan
Tradução: Lígia Azevedo
Arte de Capa: Ale Kalko
Paralela – 2024 – 272 páginas
Malásia, 1945. A família de Cecily Alcantara corre perigo: Abel, seu filho de quinze anos, desapareceu, e Jasmin, a caçula, passa os dias confinada em um porão para escapar do risco de ser levada às estações de conforto. Jujube, a filha mais velha, trabalha em uma casa de chá frequentada por soldados japoneses, e sua raiva só aumenta. Cecily tem certeza de duas coisas: é tudo culpa dela, e sua família não pode nunca saber a verdade.
Anos antes, Cecily estava desesperada para ser mais do que uma dona de casa, esposa de um burocrata de médio escalão na Malásia ocupada pelos britânicos. Um encontro ao acaso com o general Fujiwara a levou para uma vida de espionagem, seduzida pelo sonho da “Ásia para os asiáticos”. O que aconteceu, porém, foi que ela teve participação na tomada dos japoneses no país, numa ocupação ainda mais brutal.
Uma década mais tarde, conforme a guerra chega ao ápice no continente, suas ações começam a cobrar um preço. Agora, a família de Cecily está à beira da destruição ― e ela fará de tudo para salvá-los.
Algumas histórias precisam ser contadas e perpetuadas para que todos saibam o que está em nosso passado como humanidade. E é neste contexto que coloco este romance histórico com um peso gigantesco e me apresentou a mais horrores que aconteceram no mundo aos quais eu não tinha ideia do tamanho da destruição casada: narrando eventos que se passando durante uma década, entre os anos de 1935 e 1945, em Kuala Lumpur, na Malasia, somos apresentados a Cecily – mas não, acho que preciso voltar um volto e falar sobre a “apresentação” a trama que a autora Vanessa Chan faz em apenas duas páginas mas que é capaz de já nos fazer entender o peso que a trama tem para ela.
Vanessa é uma autora que nasceu e cresceu na Malásia, tendo contato com seus avós, que viveram a invasão japonesa em seu país de origem. De forma bastante honesta e direta, Vanessa deixa claro que os idosos que testemunharam primeiro um domínio inglês e depois esta invasão carregam marcas fortes e não gostam de falar sobre essa época, nos preparando para o que viria ser uma trama que é literalmente o título do livro: algumas tempestades se abatem sobre nós porque nós mesmo a criamos, seja por qual motivo seja. E aqui compete ao leitor acompanhar a vida de Cecily e todas suas escolhas, julgando o que se abateu sobre ela e sua família – e você pode chegar a qualquer conclusão que seja sobre a personagem, mas jamais poderá diminuir o impacto que a história da mulher e seus filhos Jujube, Abel e Jasmin deixará em você.
Até que, no dia 15 de fevereiro, aniversário de quinze anos de Abel — que tinha o cabelo castanho-claro e muito diferente do das irmãs, Abel, que estava sempre com fome por causa do racionamento de comida, Abel, que tinha crescido quinze centímetros no ano anterior e agora era o mais alto da família — não respondeu à chamada; não voltou da loja. E, enquanto a vela de cera derretia sobre o bolo seco de aniversário, Cecily soube. Coisas ruins aconteciam com pessoas ruins; e ela era exatamente aquilo: uma pessoa ruim.
A verdade era que, já fazia alguns anos, Cecily tinha descoberto que era incapaz de esconder o medo nítido que controlava sua existência, diante da consciência de que pagaria por tudo o que havia feito — as consequências estavam sempre a um dia de distância. Esse medo se manifestava na inquietude dos seus dedos ansiosos, na maneira como seus olhos corriam para as crianças, na desconfiança com que cumprimentava qualquer pessoa que não parecesse familiar. Agora que a catástrofe tinha acontecido, Cecily sentia cada gota de energia tensa no corpo entregar os pontos. Jujube depois contou que ela soltou um longo uivo, baixo e angustiado, então se afundou na cadeira de vime sem produzir mais ruídos, com a expressão calma e o corpo imóvel.
A trama já abre em 1945, durante a terrível ocupação japonesa na Malasia, com o sumiço de jovens. Abel, o filho de 15 anos de Cecily, não volta para casa no dia do seu aniversário de 15 anos, e a mulher parece ter certeza absoluta que foi a causadora do mal que está se abatendo sobre sua família. Claro que para isso, temos de voltar no tempo e conhecer o passado da personagem, e é assim que a trama se inicia: criada com a ideia de que mulheres deveriam adquirir habilidades para conquistar um bom marido e constituir uma família, ser zelosa com a casa e ter filhos, a vida parece ter sorrido para a mulher. Aos trinta anos estava dentro das normas conjuntural para as mulheres, era casada com Gordon Alcantara, um burocrata que trabalhava para os ingleses que dominavam a Malásia, com uma casa e filhos.
Mas tudo isso não parecia preencher sua vida. A insatisfação e a inquietação estavam lá, presentes, entendendo que a população malaia estava relegada a um lugar de cidadões de segunda classe dentro de seu próprio país com a ocupação inglesa – e foi ai que seu destino se cruza com o do General Fujiwara. Japonês, o homem presentou uma ideia nova que pareceu crescer em Cecily: um mundo novo no qual a Ásia poderia pertencer aos próprios asiáticos, um mundo melhor, formado por eles, sem o domínio europeu e, principalmente, no qual eles iriam tomar protagonismo de suas histórias. O relacionamento entre os dois se inicia, mas, mais do que isso, Fujiwara plantara em Cecily a ideia de liberdade que ela sequer sabia que precisava e que poderia ajudar em transformar o mundo que todos eles viviam.
Tudo de que ela se lembrava era que, depois disso, prendeu o fôlego e ficou ouvindo extasiada a Fujiwara e seus ideais, que conseguiam ser lógicos e românticos. Ele falava sobre um mundo em que as pessoas parecidas com eles não seriam mais súditos imperiais; uma Ásia que defenderia e comandaria a si mesma; uma sociedade que desmantelaria as estruturas dos europeus — Cecily tinha ouvido por tanto tempo que essas eram as únicas coisas que importavam, apesar de nunca ter se sentido confortável com elas na prática. Conforme as noites clandestinas se seguiram, Cecily descobriu que também era capaz de ver um mundo que seria recuperado dos britânicos, além de um futuro em que ela, seus filhos e os filhos deles poderiam ser mais do que apenas ornamentos insignificantes.
Cecily começa a ser parte ativa em uma trama que ajudaria os japoneses a invadirem a Malásia. Espiava o marido, Gordon, e repassava as informações, escutando tudo que podia, acreditando piamente em tudo que lhe foi vendido pelo General e amante. Aqui você pode se questionar se a mulher estava tão apaixonada a ponto de não se questionar qual o sentido de aceitar uma outra ocupação ou se ela queria ser enganada, mas, seja qual foi realmente o que a levou, as consequências aconteceram e a invasão japonesa aconteceu, como é de conhecimento histórico. Seja como for, Fujiwara se tornou parce central da vida de Cecily, os destinos de ambos continuando a se interligarem até mesmo quando há personagens que você acredita que não estão ligados àquele caso que trará consequências para quase todos ao redor deles, além de, claro, a trama de ocupação.
Como os capítulos durante a trama se alternam, vemos também todo desespero de Cecily e sua filha mais velha, Jujube, quando Abel some, em 1945, durante a IIª Guerra Mundial. A ideia de perder o filho é realmente algo que assombra a mulher, que aquela altura já entendeu que a ocupação japonesa era ainda pior do que a já consolidada ocupação inglesa: escolas fechadas, crianças sendo levadas por motivos desprezíveis e que podemos imaginar quais, jovens sendo levado para campos de trabalho forçado e um toque de recolher imperioso parecia transformar a sociedade idealizada por ela em um pesadelo que não tinha qualquer previsão de terminar. E como lutar contra isso é a questão.
“Não posso pensar nisso agora”, Fujiwara disse, com seus olhos se voltando para o carpete e de volta a Cecily. Ela ponderou se estava imaginando o brilho do remorso neles. Fujiwara voltou a se recostar na parede. “É o próximo passo, Cecily. Temos que ir em frente. Não há escolha.”
Ele falava no plural. Mesmo tantos anos depois, ela ainda sentia uma pontada de prazer quando Fujiwara se referia a ambos como um só.
“Eu sei.”
Daquela vez, não houve choque por parte dela. Ele já havia partido uma vez, e ela aprendera que a probabilidade de que ele a deixasse novamente era alta. E, em vez de simplesmente desaparecer, como fizera, Fujiwara estava dando o aviso — o que significava que tinham crescido e evoluído, que eram membros da mesma causa, até parceiros. Ainda assim, talvez tivesse sido inocência da parte dela presumir que esse momento seria mais simples, que suas vidas permaneceriam inalteradas, que os novos laços entre eles não existiam: a mulher que dividiam, as crianças que poderiam vir a dividir. Cecily estremeceu ao recordar como ficara da outra vez: da crueza do seu desejo, do quanto o queria, de quão infantil e simples fora sua luxúria. Ela abriu a boca e quase perguntou o que aconteceria com o bebê. Somente engoliu as palavras, segurando-as como uma tosse incômoda. Não era hora.
Em vez disso, o que perguntou foi: “Como acha que será esse novo mundo?”.
Ainda no começo temos também o ponto de vista de Abel, trazendo o que lhe acontece em um campo de trabalho forçado. Ler sobre era doloroso, sendo o tipo de coisa que faz com que todos nós percamos um pouco mais a fé na humanidade, mas necessário para se colocar no mundo tantos horrores que tantas pessoas viveram e, principalmente, para que aprendamos para nunca tentarmos repetir. Jujube também tem seus capítulos, mostrando como é o trabalho na casa de chá, onde atendia a soldados japoneses e aguentava os olhares malicioso, ao mesmo tempo que também era a protetora da irmã mais nova, Jasmin, com medo que ela fosse levada (e aqui preciso fazer um ponto com o livro “Herdeiras do Mar”, que também assinalava o sequestro de crianças do exercito japonês – você pode ler minha resenha sem spoilers clicando AQUI). Quanto a Jasmin, a filha mais nova de Cecily, e sua amiga Yuki, parece somente para ilustrar a inocência em meio a tanta dor, mas há um grande ponto ai que termina de forma dolorosa para qualquer leitor.
Toda construção do livro é bastante direta e o livro é curto, com um peso histórico gigantesco, se focando em entregar uma trama concisa e forte, sem nenhum momento sem deixar de pontuar os horrores que uma ocupação pode (e vai) trazer para o povo subjugado. “A Tempestade que criamos” nos conta através dos personagens marcantes, mãe e filhos, não só a ocupação da Malásia pelos japoneses, mesclando o peso de nossas escolhas, segredos e enganos, pessoas que são usadas e outras que são capazes de tudo pelo poder, tudo em uma narrativa crua e crível, nos mostrando que uma tempestade é sempre uma tempestade, seja criada por nós mesmas ou trazida até nós.
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