“Condições ideais de navegação para iniciantes”
Natalia Borges Polesso
Arte de capa: Flavia Castanheira
Companhia das Letras – 2024 – 232 páginas
Retorno de Natalia Borges Polesso aos contos, gênero que a consagrou no meio literário com Amora , Condições ideais de navegação para iniciantes investiga, com destreza e sensibilidade, indivíduos que buscam viver para além das próprias particularidades.
As narrativas curtas de Condições ideais de navegação para iniciantes exploram personagens que estão descobrindo como existir em um mundo intrigante, mas muitas vezes hostil. Tratando das experiências formadoras de um indivíduo na infância, o cotidiano de pessoas neurodivergentes ou das vivências LGBTQIAPN+ no Brasil contemporâneo, Natalia Borges Polesso tensiona os limites da linguagem para construir tramas que ressoam aos leitores mais fiéis de sua obra, ao mesmo tempo que se arrisca por novos territórios.
No conto “Uma boa pessoa”, por exemplo, diante dos vários lapsos da namorada, a personagem Marcela enfrenta a própria imagem de “pessoa boa demais”, definida a ponto de fazê-la ser vista como alguém que não precisa ter seus desejos e limites respeitados. Para isso, ela encara a necessidade de aprender a dizer não e de se impor, mesmo que isso signifique afastar pessoas que sempre estiveram presentes em sua vida.
Já ao longo de “Eu não sei o que é o this do que os sweet dreams são feitos”, a autora usa a linguagem neutra para compor uma personagem não-binária em uma delicada investigação sobre sonhos e desejos. Em “A Velha Asna e as lésnicas de motocicleta”, Polesso desconstrói clichês ao explorar a relação entre um grupo de mulheres motociclistas, que demarcaram seu domínio em sua cidade e se aceitam na forma que escolheram viver.
O elemento unificador dos textos é a fugidia água ―seja em uma geleira, no mar, na tempestade ou até mesmo no chuveiro, criando pequenos universos que envolvem o leitor na prosa única de umas das vozes mais surpreendentes da sua geração.
Já conhecia Natalia Borges Polesso de ler um livro que se passa em um Brasil politicamente fora do rumo, escrito antes da pandemia e que assustava porque quando foi publicado, já estávamos em pleno isolamento social e as pessoas fugiam de um vírus que as faziam se transformarem em zumbis: “Corpos Secos” foi uma das minhas melhores leituras de 2020 (e você pode ler minha resenha sem spoilers clicando AQUI), então minha expectativa para “Condições ideais de navegação para iniciantes” era alta, mesmo sendo um livro de contos – “mesmo” entre aspas porque já aprendi a amar contos sim, mas também ainda sinto bastante de saber mais sobre aquelas personagens que passam tão brevemente por nossas vidas. Entretanto, Natalia conseguiu uma proeza aqui e me dei por satisfeita em cada um dos contos que este livro nos apresenta, sem me deixar com aquela sensação de que poderia haver mais.
Se você é do tipo como o meu antigo “eu”, que não gostava de contos e de como eram desenvolvidos, fica aqui a dica mais do que dada: temos 11 contos repletos e completos em si mesmos, cada um com um ponto de apresentação, indo da ficção até uma história sobre lésbicas motoqueiras com bastante representação e muito, muito bem escritos e, na verdade, enquanto eu escrevia este paragrafo, me dei conta que poderia ler bem mais sobre A Velha Anta – e calma que já falarei sobre ela porque sim, é uma mulher (e que mulher!) que sabe o que quer e a que veio neste mundo (mesmo que literário) e se estamos no mundo é para enaltecer mulheres sendo badass. E esta é uma trama sobre preconceito bastante atual e crível, nada do gênero fantasia.
A menina saiu da mesa e foi se deitar na cama. Seu coração pulava, se sentia perdida, incapaz de sair daquela situação, não entendia o que estava sentindo, era um liquidificador cheio de coisas batendo e que faziam seu estômago revirar e doer como se a faca estivesse dentro da barriga dela, riscando tudo. Três vezes, mas sem cortar mal nenhum. A noite sacudia o abacateiro da frente da casa, as folhas raspavam na janela e as frestas pareciam uivar mais forte. Ela não sabia navegar naquele mar revolto que se agitava em seu interior, e com todo aquele vento espalhando as ideias não juntava nenhuma palavra de explicação, não conseguia pensar. No meio da noite, quando a avó já roncava a seu lado, ela foi se deitar no assoalho para tentar sentir alguma firmeza. Cravou as unhas no chão e sentiu o peito tremer, a respiração resfolegante se confundia com outros sons do seu interior, e quando fechou os olhos pensou que fosse morrer. Pensou que desapareceria.
O conto que abre o livro se chama “A descoberta dos metais”, já começa dando um soco no estomago no leitor: uma criança deixada por seus pais com os avôs, morando em um interior, que ganha a alcunha de “Onça” de tão braba que é, mas ela só não suporta que meninos maltratem meninas ou os mais fracos, sendo normalmente chamada na escola para vingar e cuidar destes grupos mais vulneraveis. Tudo explode quando ela leva a faca de casa, a única relíquia da família, por assim dizer, para a escolha, e termina esfaqueando o colega que pegava no seu pé. Logo em seguida, o tom continua alto com “A vida é uma equação diferencial ordinária” contando a história de Adriana, tão ordinária e tão real sobre uma jovem que se encontra perdida, a deriva, sem realmente saber para que lado seguir, a partir da morte de sua avó. Conto bastante cru e direto sobre depressão, sentido da vida e a falta de direção que guia muitos de nós atualmente.
“Tatuilha” é o terceiro conto, difícil e poderoso sobre aceitação, perdão e relações familiares, começa com uma simples ida a praia por uma família, se desenrolando em algo que o leitor não espera a principio, mas que vai marcando cada página lida. Já “Uma boa pessoa” foi o conto que me fez passar uma raiva gigantesca porque a protagonista, Marcela, uma mulher adulta, prefere não ouvir nenhum amigo, nem mesmo sua própria consciência, aceitando o relacionamento tóxico com Maisa, se deixando pisar até o limite do imaginável, mas que também assinala a incerteza da nossa protagonista sobre quais caminhos tomar.
Por dias eu quis acordar e não consegui. Ficava tirando o telefone da empresa do gancho e dizendo Alô, mãe? Alô, vó? como se fosse uma maluca. Por dias eu quis dormir e não consegui. Me sentia presa num tempo esdrúxulo que não era o presente, que não era o vivido, e que de jeito nenhum poderia ser um futuro. Tinha a sensação de ter sido congelada num momento, no exato momento em que um farol joga o facho de luz na nossa cara e nos cega. Ao mesmo tempo, não me sentia desesperada. Na verdade, às vezes tinha a impressão de que assistia a uma reprise da minha própria vida. Sabia que aquilo ia acontecer, de algum jeito. A morte da vó, digo. Mesmo que eu não esperasse, não foi uma surpresa. Acho que era um cansaço imenso o que eu sentia. Estava anestesiada pela vida, por causa da vida, e agora anestesiada pela morte.
Então temos o quinto conto, que dá o titulo ao livro: “Condições ideais de navegação para iniciantes” traz uma personagem narrando sua primeira ida a praia e seu contato com o mar em uma narrativa cheia de questionamentos e revelações sobre sentimentos, expectativas e visões de vida, que nos faz pensar sobre inseguranças, ansiedade e todos sentimentos de não pertencimento, e por isso disse que este conto é um tanto quanto cheio de questionamentos porque acho que é da natureza de quem lida com essas sensações começar a se questionar quando elas se instalaram em nosso peito – eu sei que já pensei. Já o conto “Eu não sei o que é o this do que os sweet dreams são feitos” foi um conto que me ganhou no titulo só pela referência a Annie Lennox e um dos maiores hinos musicais de todos tempos e que traz uma personagem não binária morando em uma repúblico, algo em comum entre personagens de diversos contos nesta antologia, a tentativa da independência também presente em diversos momentos deles, independente do resultado. “Temporal” traz a dor de um amor que terminou, mas que ainda chama e queima no peito de alguém que acredite que irá ficar só para sempre.
— Bom dia, Agenor.
— Bom o dia não tá, Tobias.
— Mas o que houve?
— Ah — ele rosnou —, aquela Velha Asna e aquelas lésnicas de motocicleta… eu não gosto delas, acho que estragam a nossa vizinhança.
O lésnicas saiu fanhoso da língua mole dele.
— O que é isso, Agenor? As meninas são joia. Fazem muito pela comunidade.
— Primeiro que não são meninas, né? Nem mulheres elas são direito. Bando de velha sapatona… Tudo montada naquelas motocicletas barulhentas e fedidas. Segundo que fazem o quê pela comunidade? Que exemplo elas dão? Nosso bairro tem muita criança, isso não é certo. Faltou foi pau pra elas, boa educação. E deve ter faltado também uns cacetes — ele fechou uma das mãos e bateu forte na palma da outra. — E faltou Deus.
“Daphne ou o primeiro não” é um conto para mulheres que sabem que não devem depender de ninguém, nem mesmo quando estamos apaixonadas e casadas e temos filhos com alguém, e devemos ensinar nossas filhas exatamente isso – definitivamente um dos meus contos favoritos aqui. “Cratera” foi o conto que mais me fez pesquisar porque fiquei completamente em choque ao saber do Pingualuit, uma cratera no Canadá com a segunda agua mais pura do mundo e quem tem peixes vivendo lá, mesmo sem explicação sobre como eles chegaram lá, já como não nenhuma ligação com nenhuma corrente de água, tudo isso em um conto que envolve questionamentos, física (acredito que sim, hein, multiversos!) e um amor capaz de fazer nossa respiração prender um segundo.
Então temos o meu conto favorito: “A Velha Asna e as lésnicas de motocicleta”, errado assim, que é uma história que vale a pena todas as pessoas lerem na vida. Beatriz se tornou A Asna ainda criança por causa de um apelido na escola, crescendo e arrumando um trabalho que lhe apresentou um dos seus melhores amigos, que entendeu sua sexualidade antes mesmo dela falar. A jornada de A Velha Asna seria quase calma se ela não cruzasse com um vizinho horrendo e homofóbico – e desse exatamente o que ele merece. Maravilhoso! Encerrando, temos o conto “As gêmeas lentas” sobre encontrar pessoas com o mesmo nome. Não posso dizer que a vida acontece em águas com condições para navegações perfeitas todos os dias, mas posso afirmar pra vocês que quando encontrarmos bons livros e boas leituras, a navegação fica até mais fácil – ainda bem.
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