17.05


“Maud Martha”
Gwendolyn Brooks
Tradução: floresta
Arte de capa: Julia Custódio
Prefácio: Margo Jefferson
Companhia das Letras – 2023 – 168 páginas

Maud Martha Brown é uma menina negra que cresceu no South Side de Chicago, na década de 1940. Ela sonha com Nova York, um romance e seu futuro. Ela adora dentes-de-leão, aprende a tomar café, apaixona-se, decora sua cozinha, visita o Jungly Hovel, estripa uma galinha, compra chapéus, dá à luz. Mas seu marido de pele mais clara também tem sonhos: quer entrar para o Foxy Cats Club, deseja outras mulheres, fantasia com a guerra. No passar do tempo, “fragmentos de um ódio confuso” estão sempre presentes: a forma como uma vendedora a tratou; uma ida ao cinema; a crueldade que sofre em uma loja de departamentos.

A partir de breves vinhetas, Gwendolyn Brooks constrói um retrato extraordinário de uma vida comum, marcada por sabedoria, humor, raiva, dignidade e alegria. Publicado pela primeira vez em 1953 e inédito no Brasil, o livro inclui um prefácio de Margo Jefferson, que destaca a capacidade da protagonista de reivindicar seus próprios direitos e liberdades através da imaginação.

Quando recebi “Maud Martha” como um dos clássicos modernos na campanha da Editora Companhia das Letras, fiquei bastante contente porque já sabia que o livro havia sido publicado aqui ano passado pela primeira vez. Único romance de Meredith Brooks, poeta norte-americana e ganhadora do prestigiado prêmio Pulitzer que faleceu em 2000, o livro publicado em 1953 realmente é considerado um clássico justamente por retratar a realidade de uma garota preta no país, tudo de uma forma quase em prosa, em capítulos curtos e em um total de páginas também curto, embalado de uma forma ímpar para falar sobre beleza, sonhos e realidade de uma forma direta e que chegasse ao leitor.

Cada capitulo termina sendo uma especie de microconto sobre um evento da vida da protagonista. E sim, muito foi tirado da vida da própria Meredith, que chegou a reconhecer isso. Família, morte da avó, tios, vizinhos, racismo – tudo isso está presente em uma história que é cotidiana, sem nenhuma beleza além das que Maud consegue enxergar.

Havia um pequeno buraco no tapete de cores sóbrias perto do sofá. Não era um buraco absurdo. Mesmo assim estremeceu. Correu para o sofá e o empurrou até que o buraco não pudesse mais ser visto.
Fungou algumas vezes. Costumavam dizer que as ca­sas das pessoas de cor1 tinham sempre um cheiro forte e desagradável. Era besteira. Era cruel — e besteira. Mas ela abriu todas as janelas.
Ali estava a teoria da igualdade racial prestes a ser posta em prática, e ela só tinha esperança de conseguir ser igual sendo igual.

A protagonista, Maud Martha, vê beleza em todos os lugares, em flores e em pessoas passando pela rua, mas não se acha bela. Tendo dois irmãos, Helen e Harry, Maud se compara a irmã de um modo melancólico e cru, acreditando que o irmão, a mãe e o pai preferem a irmã porque ela sim, detém uma grande beleza. Mais clara, Helen chega a ver a própria irmã ser preterida de forma bastante humilhante por um garoto e não parece tomar partido ou se importar e sim apontar que se a irmã não parar de ler tanto, não encontrará um namorado. Por mais que Maud seja uma irmã melhor, uma filha melhor e tente oferecer ao mundo uma boa pessoa, ela não é escolhida.

Mas não pense que a trama se foca nisso. Com um narrador em terceira pessoa não focado somente em Maud, vemos pequenos trechos das fases de sua vida, passando por sua infância, adolescência e vida adulta. Apesar de sentir que é preterida por não ver em si uma beleza impar, Maud se casa com seu segundo namorado, Paul. Acreditando que terão uma vida próspera, Maud se vê presa em uma quinite sem banheiro privado, morando com o marido que também começa a se ressentir da vida sonhada e não concretizada.

Ela nunca entendeu como as pessoas podiam desfilar num palco daquele jeito e exibir suas preciosas identidades particulares; se sacudir; se fazer de tolas diante de mil olhos.
Maud Martha se guardaria para si mesma. Ela não queria a fama. Ela não queria ser uma “estrela”.
Criar — um papel, um poema, um quadro, uma música, um completo arrebatamento: ótimo. Mas não pa­ra ela.
O que ela queria era doar para o mundo uma boa Maud Martha. Essa era a oferta, aquele tanto de arte, que não podia vir de mais ninguém.
Ela iria lapidar e aperfeiçoar essa arte.

Maud também sente que Paul, um negro de pele mais clara e mesmo não o descrevendo como bonito, que ele tem vantagem sobre ela, em uma quote tão marcante que me recuso a não colocá-la nesta resenha. Um ponto forte na trama é justamente o colorismo e suas facetas, a forma como impactam as pessoas de pele preta de diversas formas, tudo isso escrito em uma época que ainda não se estudavam essas nuances.

Desse relacionamento nasce uma menina em uma das passagens mais marcantes do livro, um parto apressado e intenso, com uma Maud aterrorizada. Paulette, a filha de Maud, chega também trazendo a mãe em Maud, que tenta imaginar uma vida melhor para sua filha. Mas é também com a criança que temos a grande cena do livro, uma cena tão crua e feia que marca o leitor: levando a pequena a um shopping para ver o papai Noel, mãe e filha se deparam com o que o racismo é capaz de provocar, fazendo retorcer as entranhas de qualquer leitor que tenha consciência.

Maud Martha pensou no quintal da casa dos pais. Fresco. Limpo. O ar puro. Na infância, um grande arbusto de viburno florescia ali, acima dos dentes-de-leão. Suas flores eram grandes, saudáveis. Uma vez, ela e os ir­mãos esperaram no quintal enquanto os pais terminavam de se arrumar para uma viagem até Milwaukee. As flores do viburno eram tão bonitas, tão grandes e brancas na luz do sol, que de repente ela começou a amar sua casa mil vezes mais que antes e não queria mais ir para Milwaukee. Mas, conforme as crianças cresciam, a planta adoecia. As flores ficavam menores e mais abatidas a cada ano. Por fim, num verão, não havia mais nenhuma flor. Maud Martha se perguntou o que tinha acontecido com o arbusto. Pois não estava mais lá. Ao menos ela não o viu indo embora.
É claro”, pensou Maud Martha, “que eles não se amam. Deveria ser assim, simples. Então eu poderia superar. Deveria ser assim tão fácil. Mas minha cor é o que o enlouquece. Tento fechar os olhos para isso, mas não é bom. Ele gosta do que eu sou por dentro, do que eu sou de verdade. Mas ele continua vendo a minha cor, que é como um muro. Ele tem que pular esse muro para encontrar o que tenho para dar. Ele tem que pular um muro muito alto para ver isso. E ele se cansa muito de tanto pular esse muro.

Na trama ainda há outros personagens – muitos outros, na verdade – que mesmo aparecendo somente uma vez, marcam a trama. Descrevendo todos os moradores do prédio no qual mora com o marido e depois filha, Maud nos entrega uma visão de como vê o mundo e as pessoas, levando a um final melancólico com a chegada da Segunda Guerra Mundial e um futuro impreciso. Não há como não se sentir profundamente impactado pela narrativa, que é tão simples, tão carregada de beleza e tão cruel, exatamente como a vida.

Não sei lhe dizer o que faz um livro ser considerado um clássico para muitas pessoas, mas posso dar a minha opinião, que é somente mais uma ao meio de tantas outras: Clássico é o livro que te modifica de alguma forma, que te toca e te faz sentir ligado a trama, aos personagens, ao mundo que habita. E posso afirmar que isso aconteceu aqui, com uma trama nada mais do que cotidiana, carregada de beleza aos olhos de uma pessoa que não enxergava essa beleza quando se olhava no espelho, mas que era capaz de tentar ser a melhor possível. E acho que isso é o máximo que alguém pode fazer.

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