01.03


“Escuridão Total Sem Estrelas”
Stephen King
Tradução: Viviane Diniz
Suma – 2023 – 392 páginas

Na ausência da luz, o mundo assume formas sombrias, distorcidas, tenebrosas. Nesses quatro contos, Stephen King leva seus personagens a esses momentos de escuridão total, quando não existe nada ― bom senso, piedade, justiça ou estrelas ― para guiá-los. O primeiro deles inspirou o filme 1922, da Netflix.

Apesar de ter se tornado conhecido por seus romances, Stephen King também pode ser considerado um contista de sucesso, fazendo jus à fama de mestre do terror mesmo em poucas páginas. Em Escuridão total sem estrelas, King entrega quatro histórias curtas e aterrorizantes sobre o modo como lidamos com o mundo e como o mundo lida conosco.

O livro começa com o conto que inspirou o filme da Netflix, 1922, em que um agricultor convida seu filho para fazer parte de um plano terrível, visando garantir a posse das terras da família. Em seguida, no conto Gigante do volante, uma mulher estuprada por um estranho e deixada à beira da morte elabora uma vingança que a faz encarar um lado desconhecido de si mesma. Depois, em Extensão justa, um homem com câncer terminal faz um pacto com um estranho vendedor e tem que decidir até onde vale a pena ir para salvar a própria vida. Por fim, em Um bom casamento, uma mulher encontra uma caixa na garagem que pode dizer mais sobre seu marido do que os vinte anos que eles passaram juntos.

Sabe quando você tem certeza de que é fã de um autor a ponto de ler qualquer coisa escrita por ele? Me sinto assim com King, de quem já li livros muitos e muitos anos atrás, ainda adolescente. Sempre me pega bastante as analogias que o autor faz com temas bastante mundanos e significativos – como em um dos meus livros favoritos dele, “O Cemitério“: você aceitaria quem você ama de volta da morte, mesmo que não fosse exatamente a pessoa? Claro que há muitos elementos sobrenaturais, como o próprio cemitério da história que citei, mas sempre o fator humano é o que mais me atinge porque não sou uma pessoa “meio copo cheio”. Entre tantos livros que ainda quero ler, firmei que estava na hora de ler “Escuridão total sem estrelas“, um livro com 4 contos do mestre do terror. E preciso me dar os parabéns por ter escolhido esta leitura que definitivamente é a minha favorita do ano até aqui.

Considero até mesmo difícil falar sobre esses contos individualmente porque não darei nenhum grande spoiler – claro, a intenção aqui é convidar e instigar vocês a lerem o livro, não estragar a e pertencia de ninguém – de tão bem estruturados que são. Com tamanhos de páginas variados, cada conto tem uma escuridão total sem estrelas em uma forma, levando o leitor a realmente não conseguir parar de ler até entender o que motivou os personagens ou só simplesmente aceitar que algumas vezes, a ausência de luz é justamente isso: escuridão em sua pura forma.

A questão que levou ao crime e à minha danação foram 100 acres de terras boas em Hemingford Home, no Nebrasca, deixados em testamento para minha esposa pelo pai dela, John Henry Winters. Eu queria anexar essas terras à nossa fazenda que, em 1922, totalizava 80 acres. Minha esposa, que nunca gostou da vida na fazenda (ou de ser esposa de fazendeiro), queria vendê-las à Companhia Farrington por dinheiro vivo. Quando lhe perguntei se ela queria mesmo morar ao lado do matadouro de porcos da Farrington, ela me disse que, além das terras do pai dela, poderíamos vender a fazenda — a fazenda do meu pai, que antes pertencia ao pai dele! E quando perguntei o que faríamos com o dinheiro e sem nenhuma terra, ela falou que poderíamos nos mudar para Omaha, ou até mesmo para St. Louis, e abrir uma loja.
Nunca vou morar em Omaha — falei. — Cidades são para os idiotas.

O primeiro conto é “1922” porque conta os eventos que aconteceram neste ano, com seu protagonista, Winfrey James, escrevendo uma carta no ano de 1930. Casado com Arlette e tendo Henry como filho único do casal, logo descobrimos que o homem cometeu um crime: ele matou a esposa com a ajuda do filho. Já sabemos como aquela história irá terminar, mas há muito mais tragédia entre o seu ponto inicial e o fim. Mas, sinceramente, o que me conquistou muito nessa história foram os motivos pelos quais Wilf resolve matar sua esposa: herdeira de uma fazenda que faz divisa com a do casal, Arlette queria vender sua herança e talvez até convencer o marido a vender a fazenda do casal também e se mudarem para a cidade. Tudo muito financeiro, certo? Não, já como o próprio Wilf fala em certa altura, ele passa a odiar a esposa, mas aquele tipo de ódio que só pode ter o amor envolvido de alguma forma.

Claro que quem ama não machuca (muito menos mata), mas é interessante ler a evolução do personagem de sair de um casamento confortável de mais de 15 anos para a decisão de que não havia outra alternativa a não ser matar a esposa e a forma como vai envolvendo o filho, o manipulando, para o ajudar. Mas claro que essa decisão teria consequências na forma de uma sucessão de coisas terríveis que não parecerem ter fim para acontecer. O rancor, ressentimento e a culpa começam a se tornar presente na vida do homem, levando ao leitor a questionar se ele estava realmente sendo assombrado ou seria somente sua consciência. A dúvida persiste.

Tabloides como o Post publicariam, sem dúvida, uma foto sua de dez anos atrás, quando o primeiro livro da Sociedade de Tricô acabara de ser lançado. Naquela época, com 20 e tantos anos, tinha longos cabelos louro-escuros que caíam até o meio das costas e lindas pernas que gostava de exibir usando saias curtas. Além disso, Tess costumava usar à noite sapatos altos e sexy do tipo que alguns homens (o gigante, por exemplo, com certeza) chamariam de “sapatos de vagabunda”. Os tabloides não falariam que ela estava dez anos mais velha, com alguns quilos a mais e vestida de maneira sóbria, quase deselegante, quando tinha sido atacada. Esses detalhes não se encaixavam no tipo de história que os tabloides gostavam de contar. A matéria seria respeitosa o bastante (ainda que insinuasse alguma coisa nas entrelinhas), mas a foto de seu antigo eu contaria a verdadeira história, que provavelmente antecedia a invenção da roda: Ela pediu por isso… e conseguiu.

O segundo conto é o maior medo de toda mulher: Tessa Jean uma escritora com determinada fama de uma série de livros sobre senhoras que investigam crimes, é estuprada. “Gigante ao volante” traz uma história sobre uma mulher que não gosta de viajar de avião, por isso só atende sessões de autógrafos e palestras em lugares que pode dirigir até. Ela aceita um pedido de última hora de Romona Norville, da Books & Brown Baggers, em uma cidade próxima da sua. Tessa se despede do seu gato, Fritzy, e segue para o lugar ajudada pela voz do seu GPS, chamado Tom. Tudo parece dar certo, mas como fica óbvio até pela sinopse, ela sofre um crime violento e é largada em um esgoto. Claro que o tema por si só já é um gatilho imenso, mas não há descrições desnecessárias do ato em si porque o depois, o estado que Tessa fica, mostra a dimensão do trauma que a personagem enfrenta. E isso vai se tornando mais e mais evidente a medida que o estresse pós-traumático fica tão grande que Tess começa a conversar com o GPS, o seu gato e até mesmo sua personagem. Mas essas conversas, que parecem beirarem a paranoia, servem para fazer o pensamento de Tessa se focar em algo: em descobrir o que realmente aconteceu com ela – e como irá tentar resolver tudo por si mesma.

Todos pensamentos da personagem, lidando com a culpa, medo e raiva por ter sofrido um crime tão bárbaro é de uma acerto que me impressionou. King conseguiu realmente colocar na personagem toda pressão que uma mulher pode sofrer ao denunciar um abuso, do “ela provocou!” até o “Mas olhe a roupa que ela estava usando!”, além da culpa. A vergonha, o desespero e a raiva vão consumindo Tessa nesse espiral, e confesso que em determinados pontos quis que a personagem procurasse ajuda – mas estamos em um livro do King, então se preparem para uma vingança e um final poderoso, que me deixou mais do que satisfeita com uma protagonista e uma personagem secundária que merecem o mundo – sim, Betsy Neal, estou olhando para você.

Streeter observou Odabi com fascínio. A momentânea impressão de que o homem estava mais alto (e de que havia dentes demais em seu sorriso) se fora. Ele era só um cara baixinho e gorducho que provavelmente tinha um cartão de paciente ambulatorial na carteira — se não de Juniper Hill, então da Instituição de Saúde Mental de Acádia, em Bangor. Isso se tivesse uma carteira. Odabi, com certeza, sofria de algum transtorno delirante e bastante avançado, e isso fazia dele um objeto de estudo fascinante.

O terceiro conto foi meu favorito. É complexo explicar por que um conto sobre a inveja pode se tornar o favorito de alguém, mas acredito que as emoções humanas sempre são a melhor fonte de inspiração e material para algo profundo e impactante. “Extensão Justa” traz Streeter, um bancário que está com câncer terminal, já desenganado e morador da cidade de Derry (sim, A Derry). Debilitado pela doença, dirigindo a esmo para tentar pensar, acaba vomitando e vê um homem na beira da estrada depois de parar seu carro. Sua intenção não ser conversar ou fazer negócios com o homem e sim jogar fora seu vômito, mas a medida que vai conversando com o tal homem, George Odabi, que diz ser um vendedor de extensões – ele pode fazer seu cabelo crescer mais, por exemplo, mas não pode fazer o cabelo nascer! – e lhe oferece uma extensão de vida: talvez 15, 20 ou até mesmo 25 anos, já como não é uma ciência exata. O pagamento? Streeter irá dizer alguém que ele odeia. Para que? Porque o mal que há nele precisa sair para alguém. E então Streeter diz quem odeia do fundo seu coração, chocando o leitor e fazendo com que o pensamento de que o mal sempre está por perto passe por nossa mente.

Não preciso nem falar sobre a falta de moral de Streeter e como ele vai se tornando mais e mais feliz com sua família a medida que o leitor se pega pensando sobre “todo mal” que há nele e saiu: não era “só” o câncer, era a inveja em sua mais pira forma, que vai corroendo a vida de outras pessoas, deixando um rastro de destruição. Isso dá medo mais do que qualquer palhaço vindo do espaço que coma pessoas ou um cemitério que reviva as pessoas porque a inveja e todos esses sentimentos ruins são corrosivos como ácido. Assustador.

A única coisa que ninguém perguntava em uma conversa casual, pensou Darcy dias após ter encontrado o que encontrou na garagem, era: Como vai o casamento? As pessoas perguntavam Como foi o fim de semana?, Como foi a viagem para a Flórida?, Como vai a saúde? e Como vão as crianças?. E até mesmo: Como vai a vida, querida? Mas ninguém perguntava: Como vai o casamento?
Vai bem, responderia ela antes daquela noite. Está tudo bem.

O quarto e último conto, “Um bom casamento“, é um conto que o próprio King fala no pósfacio do livro: e se a esposa de Dennis Rader, conhecido como BTK, o “famoso” assassino em série, descobrisse quem ele era antes da polícia, o que ela faria? E é bem o que temos aqui, com a dona de casa Darcellen “Darcy” Marsen, casada há 25 anos com Bob Anderson, seu único namorado e com quem tinha um bom casamento, feliz, estável, satisfatório e com um casal de filhos já adultos. Um dia, Bob viaja a negócios e Darcy, sozinha em casa e querendo assistir TV, vai a garagem pegar pilhas. Lá ela tropeça em uma caixa repleta de revistas – e a medida que começa a olhar que revistas há dentro daquela coisa, a mulher se pega surpresa com o que encontra.

Quando você, que lê o conto, chega a este ponto, se questiona se algo mais será descoberto. Acho que a resposta é óbvia e a resposta para a pergunta: “Você pode conhecer completamente alguém com que compartilha a vida por tantos anos? é um sonoro “Não”. Menor conto do livro, ainda assim é capaz de provocar no leitor todo tipo de pergunta sobre confiar em alguém.

Tentei dar o meu melhor em Escuridão total sem estrelas para mostrar o que as pessoas poderiam fazer, e como poderiam se comportar, sob certas circunstâncias terríveis. Não falta esperança às pessoas destas histórias, mas elas reconhecem que mesmo as nossas esperanças mais caras (e nossos desejos mais fervorosos em relação às pessoas à nossa volta e à sociedade em que vivemos) às vezes podem ser em vão. Com frequência, até. Mas acho que estas histórias também dizem que a nobreza não reside principalmente no sucesso, mas na tentativa de fazer a coisa certa… e que é quando falhamos, ou nos afastamos deliberadamente do desafio, que o inferno se faz.

A quote acima foi tirada do pósfacio do livro porque acho que resume bem a ideia do livro: “Escuridão total sem estrelas” foi publicado em inglês em 2010 e aqui no Brasil pela minha editora favorita da vida, a Suma, e os 4 contos são tão completos que 3 deles ganharam filmes: o primeiro ganhou um filme homônimo na Netflix; o 2° conto, ganhou um filme chamado “Impulso de Vingança” (que está disponível dublado no youtube) e, por fim, o 4° conto ganhou o filme “A Good Mariage” baseado em sua história. O que isso quer dizer? Não muito, já como mesmo “1922”, que é um bom filme e uma boa adaptação, e “Impulso de Vingança”, que é em torno de uns 80% fiel ao material de origem, não são capazes de transmitir os sentimentos que esses contos passam ao leitor e não estou atestando algo em vão: esses contos estão, definitivamente, entre as melhores coisas do autor e de toda literatura de terror. Note que eu disse terror, não sobrenatural – porque não, nem todos contos aqui envolvem sobrenatural e, mais uma vez, o que mais assusta é o bom e velho animal humano.

Se você deseja contos de altíssima qualidade capaz de tirarem seu sono por diversos motivos, a dica está mais do que dada. Mas aceite meu conselho: ligue a luz. Você não vai querer que esta escuridão perto de você. Nenhuma delas.

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