“Canções de um sonhador morto & Escriba-sinistro”
Thomas Ligotti
Tradução: Débora Landsberg e Renato Marques
Arte de capa: Toda oficina
Prefácio: Jeff Vandermeer
Suma – 2023 – 408 páginas
Publicadas nas últimas décadas do século XX, a obra de estreia de Thomas Ligotti, Canções de um sonhador morto, e sua segunda coletânea de contos, Escriba-sinistro: Suas vidas e obras, consagraram o autor no panteão da literatura de horror mundial. Inédito no Brasil, este volume reúne os dois livros que inauguram a produção literária de um dos fundadores da weird fiction moderna.
Influenciada pelos estranhamentos de H. P. Lovecraft e de Edgar Allan Poe, além dos absurdos brutais de Franz Kafka, a literatura de Thomas Ligotti desvia das meras imagens sangrentas, presentes nas narrativas de terror tradicionais, para chocar o leitor das formas mais profundas e existenciais com outro tipo de monstruosidade. Em uma prosa detalhista, objetiva e impassível, Ligotti narra histórias sobre cidades decadentes e paisagens oníricas e lúgubres para revelar a insignificância do mundo e da condição humana.
Os dois volumes aqui reunidos evidenciam o caráter sombrio, perturbador e filosófico da obra de Ligotti, que usou suas histórias para mostrar, como nunca se fez antes, a concepção de que a própria vida é um pesadelo.
Vou começar esta tentativa de resenha (explicarei melhor no decorrer deste texto) falando um pouco sobre esta edição: São dois livros em um só. Thomas Ligotti é um dos maiores nomes nomes literários da atualidade e começou escrevendo contos que foram publicados em revistas – aposto que você lembrou de outro grande nome do terror que começou assim, hein. O autor enfim publicou seu primeiro livro, “Canções de um Sonhador Morto”, em 1986, contendo 21 contos divididos em 3 partes (número de contos que aumentou para 22 em 1989, quando revisou a obra). Seu segundo livro, “Escriba Morto”, veio em 1991, com 5 partes em um total de 13 contos. No ano de 2015, a Editora Penguin publicou essa edição juntando os dois livros em uma única edição com 35 contos no total, e é esta edição que chegou agora no Brasil pela minha Editora favorita, a Suma.
Claro que a edição é maravilhosa, com detalhes em gravuras de crânios que são lindíssimos (mórbida, eu sei, eu sei!) e ainda uma apresentação do autor Jeff VanderMeer, autor de “Aniquilação”, livro que inspira o filme disponível na Netflix. Depois de ler todos esses contos, entendi a amizade e a proximidade dos dois autores pelo traço em seus livros: o terror e suas metáforas, algo quase subentendido para deixar claro que o terror se relaciona a outros sentimentos bem mais mundanos de nossa vida. Ligotti é definitivamente um dos nomes mais ligados a Weird Ficction, um subgênero da ficção especulativa que trata do estranho, mas que procura despertar uma resposta baseada na emoção (você ler mais clicando AQUI) e é justamente isso que Ligotti consegue em seus contos: o medo e o estranho se misturam em uma resposta a momentos que procuram evocar algo do leitor enquanto seus personagens simplesmente vivem.
Em uma bela casa em uma bela parte da cidade — a cidade de Nolgate, local do presídio estadual —, o Dr. Munck examinava o jornal vespertino enquanto a jovem esposa descansava em um sofá ali perto, folheando com preguiça o desfile colorido de uma revista de moda. A filha deles, Norleen, dormia no andar de cima, ou talvez estivesse curtindo ilicitamente uma sessão noturna com o novo televisor que ganhara de aniversário na semana anterior. Se fosse o caso, sua infração passava despercebida aos pais na sala de estar, onde tudo estava sossegado. A vizinhança do lado de fora da casa também estava sossegada, como costumava ser dia e noite. Nolgate inteira era sossegada, pois não era um lugar com muita vida noturna, salvo talvez pelo bar onde os agentes do presídio se congregavam. Esse silêncio persistente deixava a esposa do médico inquieta com sua existência em um local que parecia estar a anos-luz da metrópole mais próxima. Mas até então Leslie não reclamava da letargia da vida deles. Sabia que o marido era bastante dedicado aos seus novos deveres profissionais naquele novo lugar. Talvez esta noite, entretanto, ele manifestasse mais desses sintomas de desencanto com o trabalho que ela vinha observando meticulosamente nele nos últimos tempos.
– “A galhofa”
Antes de começar a falar sobre os contos, quero deixar aqui uma singela opinião: muito do terror vem da capacidade de conseguirmos nos identificar naquela situação. O medo por medo é algo passageiro. Em um exemplo prático: se você lê um livro muito assustador, você terá medo naquele momento – e isso passará, e, com o esvair do medo, a impressão daquele momento. Se você lê algo (ou assiste) que é capaz de te fazer pensar sobre ou te colocar naquela situação, é isto que perpetua a sensação, e, nos tempos atuais, o terror tem feito isso justamente através de metáforas. O próprio filme “Aniquilação”, que mencionei acima, é uma grande metáfora de ficção científica com terror e monstros (sim, Weird Fiction) para traumas e relacionamentos porque você entra em uma espécie parede com estrutura de vida alienígena e sai de lá mudada. Exatamente como é na vida. E é muito disso que Ligotti usa em seus contos: não o medo por medo, mas o medo para te fazer sentir, entender e se relacionar.
Dito isso, quero dizer que este livro começa com a exceção do que comecei falando acima: o conto “A galhofa”, é, sem sombras de dúvidas, a melhor coisa de terror puro é genuíno que vi ou li em anos. Com uma premissa bastante simples, a trama do psiquiatra David, que trabalha em um presídio, que está tentando lide com o tratamento que aplica em um paciente mais do que misterioso chamado Zé Ninguém, é a mistura perfeita entre suspense, paranoia e sobrenatural que qualquer fã desse tipo de leitura conseguirá imaginar. Não tenho palavras pra descrever o quanto estava com medo (não posso dizer por qual motivo!) ao terminar a leitura – e isso foi genial porque o leitor inicia a leitura acreditando que todos serão nessa pegada, mas não poderíamos estar mais enganados.
Então, qual era a resposta para aquelas perguntas feitas às pressas pelos monstros que perseguiam minha mãe? Minha natureza era para ser a de um humano almado ou de um vampiro desalmado? Para as duas conjecturas sobre minha situação existencial minha resposta era “Não”. Eu existia entre dois mundos e tinha pouco direito sobre os ativos ou passivos de ambos. Nem vivo nem morto, desvivo e desmorto, sem ter nada a ver com essas polaridades tediosas, opostos tão enfadonhos, que na verdade eram tão diferentes um do outro quanto um par de monozigotos imbecis. Eu disse “não” à vida e à morte. Não, sr. Botão da Primavera. Não, sr. Verme. Sem jamais dizer “oi” ou “tchau”, simplesmente evitei a companhia deles, escarneci de seus convites espalhafatosos.
– “A arte perdida do Crepúsculo”
A partir do segundo conto, “Les Fleurs”, vamos nos deparando com cenas mais mudanas como um homem conhecendo uma moça em uma floricultura e tentando conquistá-la, mesmo tendo ido comprar flores para uma amiga que desapareceu. Segue-se então um conto que é tão desconcertante que é difícil falar sobre: em “A Última viagem de Alice”, a mulher retorna para um velório em sua cidade Natal, mas há sombras estranhas na escola do lugar – e quando não há sombras estranhas em nosso passado? O quarto conto, “Sonho de um manequim”, traz a sensação de inquietação e de que estamos lendo quase um sonho estranho, sentimento que vai se perpetuando por toda leitura deste livro. Mas, como em um sonho, você não consegue simplesmente acordar – ou melhor, deixar o livro de lado porque você quer continuar lendo. Ou sonhando.
Então somos apresentados à 3 contos da chamada “Trilogia de Nictalope” – para aqueles que não conseguem enxergar direito com pouca luz ou a noite. Os 3 contos, “O Químico”, “Beba a mim somente com olhos labirinticos” e “Olhos de lince” são realmente um exercício de leitura para tentar fazer qualquer pessoa entender as nuances do terror e do estranho, tudo misturado com personagens que são esquisitos, exatamente como tudo ao redor deles e das ambientações. Neste ponto, você já está ambientado com o que vem na sequência, mas não quero deixar de mencionar ainda os contos “As noites de Natal de tia Elise”, “Os problemas de Dr. Thoss”, “A música da Lua”, “A escola noturna”, “A Sombra do fundo do mundo”, que encerra do livro em uma nota altíssima e o incrível “Vasterian”, que trata de realidade e o abismo que somos forçados a encarar.
“Já chega”, disse o mágico sem levantar a voz.
“É, já chega”, disse o louco. “Foi o que eu disse inúmeras vezes. Mas não existe fim, não existe esperanças. E esse tormento infinito, desesperador, me incita com o desejo de atacar o poder dos outros, e até a sonhar em atacar todo mundo. Ver o mundo afundar em oceanos de agonia é a única visão que agora me traz algum alívio à minha loucura, uma loucura que não é deste mundo.”
“Mas nenhuma é de qualquer outro mundo”, disse o mágico na mesma voz serena.
– “Baile de Máscaras de uma Espada Morta: Uma tragédia”
A originalidade destes contos é algo que realmente ressoou em mim, até mesmo por “Notas sobre a escrita de Horror: Um conto”, que é basicamente um ensaio sobre como escrever um conto de horror, algo simplesmente genial. Muito do que li aqui, levando-se em conta a data da escrita foi colocando em nossa cultura e filmes de terror, a influência chegando até em minisséries de suspense, como na primeira e melhor temporada de “True Dectetive”. A paranoia e a sensação de que a sanidade está escapulindo por entre nossos dedos fazem com que os contos despertem uma constante e crescente sensação de desconforto no leitor. Não são poucas as comparações com Lovercraft e provavelmente sou a milionésima pessoa a falar isso, e sim, também consigo ver os motivos – mas acho que quase todos autores exponenciais da Weird Fiction são capazes de se evocarem, mas mudando drasticamente como cada tipo de escrita chega ao leitor. E justamente por isso, Ligotti me tocou tão forte: o seu flerte com o questionamento da realidade é algo que me prende.
Comecei escrevendo esse texto dizendo que esta é uma tentiva de resenha, e acreditem, eu sei que estou falhando miseravelmente. Não tenho como falar o quanto todos esses contos me impactaram como leitora e amante do terror no geral, nem mesmo tenho a capacidade de dizer que tentei analisar contos com tão alto grau de desenvolvimento e, principalmente, qualidade. Ligotti, como o bom escritor que é, também já se aventou escrever roteiros, e um deles é justamente uma versão adaptada de “A Galhofa” (que está disponível no youtube gratuitamente, sem inglês, e você pode assistir clicando AQUI), e mesmo tendo preferência clara por contos, são, definitivamente, alguns dos melhores do que já li na vida. Me reconheço a meu agradável lugar de bookstan e afirmo para você, que me lê, que ler este livro é imprescindível para você entrar um pouco mais no mundo da Weird Ficction. Pode entrar, eu sei que você gostará.
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