“Mariposa vermelha”
Fernanda Castro
Arte de capa: Joana Fraga
Suma – 2023 – 272 páginas
Na cidade de Fragária, sob o domínio da República, a magia é proibida, e Amarílis conhece como ninguém o perigo de quebrar as regras. Para evitar o destino trágico que teve sua mãe, a jovem tecelã mantém a cabeça baixa e os fios de seus poderes bem amarrados.
Quando, por acaso, se vê diante do homem que causou a ruína de sua família, Amarílis decide convocar um demônio e fazer um pacto: ela quer a morte do general que destruiu sua mãe. Mas sua oferenda é muito simples, e Tolú, o Antigo que atende seu chamado, não pode tirar uma vida por um preço tão baixo. Ele pode, porém, ajudar Amarílis a enfrentar seus medos enquanto ela faz justiça com as próprias mãos.
Com uma narrativa delicada e, ao mesmo tempo, sombria, Fernanda Castro conduz o leitor por uma história repleta de personagens fascinantes, horrores mundanos e poderes ocultos.
Não posso afirmar com todas forças o que esperei quando comecei a ler “Mariposa vermelha”. Uma fantasia que não falava se era urbana ou alta, mas uma fantasia sobre uma jovem que está buscando vingança e que invoca um demônio parecia promissora – fã de fantasia sabe que sim. Conhecia pouco da escrita da Fernanda, mas também não podia dizer que não a conhecia porque li o conto “Não vai ser a primeira, nem a última” presente na revista Suprassuma, que é a revista de ficção especulativa grátis da Editora Suma – você pode baixar o volume 1 clicando AQUI e o volume 2 clicando AQUI. Mas eu posso afirmar, com toda certeza que não esperava amar tanto esse livro como amei.
Com uma escrita quase hipnótica e muito delicada, somos apresentadas a Amarílis, jovem de 24 anos que deseja ser simplesmente ordinária, comum e se perder entre o mar de pessoas que andam com a cabeça baixa em Fragária, cidade da República, local que vive sob um regime que perseguiu e matou quase toda população que tinha qualquer vestígio de magia. Fica claro, desde o começo da narrativa, que a jovem tem muito medo de ter “puxado” a mãe, a quem considera que ficou louca e que era uma bruxa com poderes de cura e pequenas poções. Mas calma, estou me adiantando, porque o começo do livro altera o presente e anos no passado para explicar todo passado de nossa protagonista – e fazer com o leitor se apaixone por ela fortemente.
Quando o convoquei, ele pareceu vir de má vontade. Diferente da forma elegante e fluida com que achei que chegaria, envolto em fumaça, ele caiu tropeçando entre as folhas de amoreira e quase derrubou o prato que eu havia enchido de sangue em sua homenagem, os braços compridos arranhando o piso de tacos.
Ele encolheu o corpo, ainda tentando entender onde estava. Parecia surpreso. Parecia um lagarto. Acocorado, os joelhos ossudos quase na altura das orelhas, ergueu de repente a cabeça e me encarou com um par de olhos que eram completamente pretos e sem pupilas.
O gesto me fez recuar um passo para as sombras do cômodo. Não pela primeira vez, tive dúvidas quanto ao que eu pretendia fazer ali. Parabéns, Amarílis, eis o seu demônio, pensei.
Como mulher, não há nada melhor do que conhecer uma heroína forte e com as motivações certas nos lugares certos, que é justamente o caso de Amarílis. No começo da narrativa, com 24 anos, ela invoca um demônio para a ajudar a matar um homem, a princípio desconhecido do leitor e que nem o nome sabemos. O demônio, que parece um lagarto, grande, atende o chamado da mulher, que nunca, absolutamente nunca, havia feito qualquer tipo de feitiço, empurrando sua magia para o fundo de sua vida, vivendo sempre em uma constante jaula presa dentro de si mesma, escondendo sua verdadeira natureza. Desde o começo fica claro que Tolú, o demônio, irá se divertir enquanto cumpre o acordo que estava selando com um aperto de mão com a jovem: ele seria responsável por colocar Amarilis e um determinado homem frente a frente e a morte dele seria responsabilidade dela, já como a oferenda não foi grande o suficiente para que o próprio demônio fizesse isto.
As regras da magia no universo de “Mariposa vermelha” são claras: não se pode fazer tudo e Tolú teria de conhecer a cidade, aprender mais sobre a futura vitima e assim se infiltrar entre as pessoas para poder conseguir acesso ao tal homem, porque claro que ele era um grande figurão e o demônio não poderia simplesmente o convidar para um chá e Amarílis aparecer para fazer sua tarefa. E também, desde o primeiro momento, o leitor sabe que irá amar Tolú da mesma forma como está aprendendo a amar Amarílis quando o tempo retroage e mostra a garotinha com 4 anos sendo trancada em um armário para a mãe poder receber o amante, um grande figurão da República. Com mais pedaços da vida da protagonista, vamos entendemos que a mãe terminou tirando a própria vida depois que foi abandonada pelo amante por um motivo terrível (vou evitar comentar por motivos de spoilers, é claro) e que, claro, o homem misterioso e que destruiu a vida da garota, apareceu na fábrica na qual ela trabalha – e foi o aparecimento que começou a quebrar o escudo que Amarílis tão bem construiu ao longo daqueles anos, a levando a invocar um demônio, com a resposta de Tolú.
Eu sabia o que ele enxergava quando olhava para mim. E eu sabia o quão desamparada a imagem devia parecer. Minha pouca altura. Minha silhueta cansada sumindo nas dobras da saia e da camisa amassada, minha pele manchada de sol até formar sardas, meu cabelo cortado na altura do ombro, formando uma moldura de cachos ao redor do rosto. A sombra de um hematoma cobrindo meu queixo. Meus olhos castanhos e comuns.
Quando as pessoas me olhavam, elas viam uma moça bonitinha e indefesa, castigada pela vida. Um bichinho vulnerável, inofensivo, mas sem atrativos o suficiente para que valesse a pena me resgatar em meio aos cães.
Então, e por isso mesmo, forcei-me a sustentar uma expressão mais dura e cruzei os braços, porque havia algo dentro de mim que as pessoas não percebiam de imediato e que eu precisava mostrar para o demônio. Certa loucura. O vazio hereditário de minha mãe.
Parecia claro para Amarílis que Tolú não podia simplesmente andar pela cidade sendo um grande lagarto (e ainda com uma mordida na perna) mas o demônio simplesmente vai embora com uma pequena pergunta: qual cor ela prefere entre azul, verde e marrom. Ganhando sua resposta, ele parte, deixando uma Amarílis confusa. Os dias se passam e nada mais dela saber do charmoso (você vai concordar comigo) demônio, o que a leva a acreditar que foi enganada. Em parte até mesmo aliviada, a vida corre em seu trabalho como costureira na fábrica de Pimpinella, onde costuma o dia inteiro fardas para os militares da república.
Os relacionamentos da jovem se resumem a Rosalinda, sua vizinha e uma das “abelhinhas” da fabrica na qual trabalham, alcunha dada as jovens que trabalham como uma especie de secretária/assessora da Dona da fábrica, e Antúrio, o namorado de Rosalinda, que trabalha como segurança no lugar e também faz algumas coisas fora da lei, para conseguir algum dinheiro por fora. Tudo na vida de Amarílis é completamente estéril e monótono, e ela deixa os amigos pensarem que ela tem “alma de velha” enquanto controla o caos em sua cabeça, a magia pulsante querendo sair e se mostrar ao mundo, mas, por medo, a jovem sempre se controla, a ideia de terminar louca igual a sua mãe a perseguindo com força – e também o medo do regime sob o qual vivem. Tudo parecia ter voltado ao seu devido lugar, até que Rosalinda a chama para ajudar a servir café para um homem lindissimo que apareceu na fábrica para falar com a dona. E aqui você, meu caro leitor, já esperava que o homem fosse Tolú, assim como eu também esperei e não me decepcionei nem mesmo um segundo. A partir, temos uma verdadeira jornada para a jovem começar a se libertar de todas as amarras que se colocou.
Eu me perguntava como seria estar no meio daquilo tudo, como seria caso eu me permitisse transbordar nem que fosse uma única vez na vida. Ocupar todo o espaço.
Mas era perigoso demais, arriscado demais. Então eu me escondia. Deixava que me vissem como a amiga ranzinza e sem energia. Trancava no peito todas as ânsias e vontades, temendo que fossem parecidas demais com as febres de minha mãe.
E eu me odiava. Eu me odiava por isso.
Toda jornada das personagens é complexa e vai ganhando o leitor mais e mais porque você entende cada um com suas motivações: Amarílis, querendo vingar sua mãe e a perda da vida que conhecia; Rosalinda, a melhor amiga que tenta se mostrar feliz e grata pela vida que tem mas que esconde bem mais dentro de si; Antúrio, o amigo fiel da protagonista e namorado apaixonado da melhor de amiga que aceita ajudar em toda trama criada; e, claro, Tolú, que como um demônio, tem seu próprios interesses a cumprir ao atender aquele chamado e sair de onde estava – e o lugar também faz parte da mitologia criada.
A mitologia de toda magia e demônios criada pela autora é definitivamente um dos pontos altos da trama. A forma como a magia pode muito, mas não tudo, é perfeita porque proporciona as personagens a terem de se movimentarem e tomarem decisões para ajudar no plano, até um final apoteotico que faz com que Amarílis mostre realmente quem é, e não falo isso sobre magia, que, claro, tem um poder importante na jornada dela. Toda a vida da jovem está atrelada justamente a ideia de uma mariposa, algo que se transforma no que realmente está destinada a ser. E estou evitando falar muito porque não quero entregar nada da narrativa, só preciso afirmar, com todas as letras, que se você que me lê, gosta de uma boa história de uma jovem se descobrindo mais forte do que imagina e com um romance não convencional, você precisa ler “Mariposa vermelha”.
— Você está pegando gosto.
Olhei para Tolú. Ele encarava os próprios pés.
— O quê?
O demônio sorriu, algo entre cansado e resignado. Mas também havia ali uma pontada de orgulho.
— Você está pegando gosto pela coisa, não está? Pela aventura, o caos. A sensação de estar viva e de poder fazer o que bem entende. Está finalmente saindo do próprio casulo — ele disse. — É uma sensação boa, não acha?
Mas, se há algo que preciso apontar como falha na narrativa, é somente a descrição de terminadas passagens, coisa que é algo particular meu e não me agrada: prefiro algo descrito demais do que resumido. Como falei, é uma preferência individual minha e talvez não afeta ninguém mais, o que me faz acreditar que esse livro pode (e vai!) agradar muitos leitores em sua totalidade, com facilidade, justamente pela força que Amarílis tem como protagonista, Tolú como um dos melhores anti-heróis que li nos últimos tempos, Rosalinda e Antúrio como ótimos coadjuvantes, Dália como uma personagem que me causou uma mistura de sentimentos (a pena entre eles) e o General Narciso como um vilão com algumas camadas que não foram expostas – mas, também, sinceramente, não me importei porque odiava o homem e queria que ele explodisse.
E se você está, como eu, se questionando se todas personagens têm nomes de flores ou plantas: sim, tem. Pesquisei em certa altura da trama e pude fazer comparações entre as personalidades das personagens com os nomes das flores ou plantas, e isso deixo para você, caro leitor, também descobrir, assim que embarcar na jornada de uma jovem que queria ser comum, mas não era, e foi capaz de se tornar em uma linda mariposa vermelha, destinada a grandeza, superando os traumas do passado, se fortalecendo, confiando em seus amigos e aprendendo a, enfim, amar, o que a torna uma bruxa completa – ou, melhor, uma mulher.
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