“Um ex-amigo”
Mayra Cotta
Arte de Capa: Elisa Von Randow
Paralela – 2023 – 336 páginas
“Talvez ele ainda seja um amigo, é difícil saber.” Assim começa a saga de Alma, que receberá em sua casa um ex-várias coisas: ex-veterano da faculdade de ciências sociais, ex-companheiro de partido e de militância estudantil, ex-amante e ex-colega de trabalho.
A vida de Alma parece estar fluindo perfeitamente bem: ela é bem-sucedida, tem grandes amigas, um lar bem cuidado, está feliz vivendo no exterior e seu relacionamento de anos com um homem casado a deixa satisfeita.
Quando recebe uma ligação inesperada de um amigo do passado pedindo abrigo temporário em sua casa, tudo sai dos eixos. Alma fica dividida entre o senso de obrigação a alguém que já foi muito próximo ― mas com quem não tem contato há anos ― e o desconforto em reabrir uma porta ao passado. O contexto desse pedido de ajuda deixa a situação ainda mais complicada: o ex-amigo está sendo investigado por uma acusação de estupro.
Com os princípios confrontados na prática do dia a dia, Alma encontrará um breve respiro através da amizade de mulheres que prometem nunca abandoná-la.
Há muito que falar sobre “Um ex-amigo”, e muito que não posso falar sem entregar o enredo principal. Tive tantos sentimentos por este livro, desde que o terminei, que precisei de 5 dias para digeri-lo e começar a escrever esta resenha. Mas, se for possível, vou começar atestando o que mais me marcou: este é um livro escrito por uma mulher para mulheres – mas não para todas. E eu sei que isso soa confuso, mas vou tentar explicar ao longo desta resenha os meus pensamentos e sentindo sobre este livro.
Antes sinto que preciso contextualizar um pouco: o livro é o primeiro da autora Mayra Cotta. Advogada de formação, em sua escrita fica nítido diversas experiências que grande parte dos universitários de cursos de humanas tiveram ou se envolveram em algum ponto durante seu período acadêmico – falo sobre políticas estudantis, células e grupos de estudos. A forma da escrita demonstra claramente o conhecimento de termos e noções baseados em uma realidade em grande parte das universidades do nosso país, facilmente reconhecidas. Não há como contestar sobre a trama que atinge qualquer mulher e o brilhantismo da escrita, mas não costumeira a todos leitores por diversos jargões que ficam restritos aos lugares que mencionei e a própria militância. A trama é, sem sombra de dúvidas, uma das mais simples, dolorosa e feminina que podemos ler e a capa do livro entrega isso com clareza: a capacidade que determinados homens têm de entrar na cabeça de uma, ou várias, mulheres, e lá fazer morada por um bom tempo, em um ciclo de relacionamento tóxico.
Um ex-amigo está chegando para se hospedar aqui em casa por alguns dias, só até as coisas se acalmarem. Talvez ele ainda seja um amigo, é difícil saber. A bem da verdade, além de ex-amigo, ele é ex-várias coisas. Ex-veterano da faculdade de ciências sociais, ex-companheiro de partido e de militância estudantil, ex-amante e ex-colega de trabalho. Mas essa não é uma lista cronológica, pois isso seria impossível: sobreposições e rupturas sempre foram a constante da nossa relação. Talvez ainda sejam, se é que resta alguma relação. Honestamente, não sei. Eu não esperava que ele fosse me procurar depois de mais de cinco anos sem qualquer contato. Achei que tivéssemos rompido laços definitivamente. E confesso que essa percepção me trazia, na mesma medida, tanto melancolia quanto alívio.
O livro conta a história de Alma, mulher na parte final dos 30 anos, morando fora do Brasil e jornalista. Aparentemente bem resolvida, tem um caso há mais de 10 anos com um advogado casado que ainda mora em nosso país, com encontros casuais quando o Amante esporádico vai ao país que mora ou ela vem ao nosso país. Sendo feminista, graduada em Ciências Sociais e jornalista, a mulher é dona de si, de seu corpo, de suas escolhas e de sua vida, com uma rede de amigas maravilhosa, composta por outras mulheres que moram em outros países e também o país, não especificado, que a mulher mora. Mas, logo ao iniciar a trama, Alma está prestes a receber a visita do tal ex-amigo. Ex-amigo que conheceu na faculdade e foi dono de um dos relacionamentos mais complicados e exaustivos de sua vida, em todos sentidos. Ex-amigo este que, morando no mesmo país que Alma, está sendo acusado de estupro.
Claro que fica evidente que o tal ex-amigo tem uma influência absurda sobre Alma e é aí que a narrativa do livro alterna entre o passado, onde os dois se conheceram ainda na faculdade e também com passagens depois de graduados, quando a amizade ruiu; e os dias atuais, com Alma esperando o vistante e como sua vida está. Entre os capítulos, há depoimentos policiais de diversas mulheres, que leva o leitor a se questionar se são depoimentos daquele determinado caso de estupro, mas logo fica claro que não, não são, levantando mais uma dúvida sobre o que está acontecendo com o homem.
O que ele fala, no entanto, é um agradecimento por eu o estar acolhendo. E usa especificamente o verbo acolher. Essa frase, dita no tom exato da defesa do trotskismo na Segunda Internacional, me corta a carne na altura do peito. Não, acolhimento, não. Aprendi na militância feminista o real significado dessa palavra quase sagrada, e o ex-amigo com certeza sabe muito bem o peso dela para mim. Ao me agradecer por acolhê-lo, ele não está apenas reconhecendo a ajuda que é nesse momento ter um lar para ficar, enquanto o mundo lá fora está especialmente hostil.
Voltando a Alma e seu Ex-amigo, há inicialmente um desconforto muito grande para entender o que está acontecendo e porque a jornalista, uma mulher já adulta e capaz, parece se tornar uma adolescente novamente na presença do homem. E aqui preciso parar para apontar para todas as mulheres que nos leem: quase todas nós, em algum ponto da nossa vida, tivemos uma figura masculina que desejamos desesperadamente por validação – infelizmente.
Porque é exatamente isso que todo passado vai mostrando com uma clareza absurda: Alma, em sua época de faculdade, participando de política estudantil, como o DCE, em um círculo formado por jovens mulheres que recém sairam da adolescência – e algumas nem isso. Este grupo era liderado por uma espécie de confraria masculina: Quatro homens, quatro “alfas”, quatro homens que se sentiam no direito de usar e abusar dessas mulheres da forma mais desprezível possível. E é assim que acontece na vida real também. Nós, mulheres, sabemos disso – infelizmente, mais uma vez.
Até articulei bem a ideia, apresentando-a de maneira convincente. Mas, na época, ainda não estava preparada para perceber o machismo que torna os homens simplesmente surdos quando uma mulher está falando numa reunião. Fiquei muito decepcionada quando apenas a Kal gostou da ideia. Os outros só ficaram apáticos e quietos, incluindo o ex-amigo. Minutos depois, um colega apresentou uma proposta parecida, só que menos elaborada, usando inclusive o nome de coordenação geral de extensão, e todos foram unânimes ao apoiá-lo.
Os relacionamentos de Alma são pautados por quem ela é a forma como ela vê o mundo: sua melhor amiga Kal, a quem recorre e graciosamente larga tudo para ir ao encontro da amiga quando o ex-amigo chega na casa dela; Malu, amiga que não poupa em dizer a verdade sobre o que pensa sobre o Ex-amigo, Aurora, amiga mais distante que é uma advogada brilhante; Elena, amiga fiel; e ainda há o Chefe, o único chefe que teve em toda sua vida – foi estagiária dele, depois efetivada sob seu comando e, por fim, quando um emprego fora do país foi oferecido ao homem, ele a convidou para ir junto. Ao mesmo tempo que as personagens coadjuvantes estão transitando em torno também da comoção sobre a acusação de estupro que recaiu sobre o Ex-amigo, todos têm um passado e um presente complexo, cada um de uma forma que é mostrado na trama, com momentos que são bastante intensos em suas vidas.
Temos ainda o Amante esporádico, o qual já citei brevemente acima, que está casado há anos e é pai, e pelo qual Alma está apaixonada e reluta em confessar seus verdadeiros sentimentos, o que é compreensível. Mas, nem de longe, nenhum relacionamento parece ressoar tanto na personagem principal quanto com o Ex-amigo e tudo que viveram. E se você está se perguntando porque não chamo o Chefe ou o Ex-amigo por seus nomes próprios, é simplesmente pelo fato de que nenhum personagem masculino neste livro recebe um nome próprio, somente as mulheres, sendo sempre chamados pelo papel que tem na vida da protagonista da narrativa.
Se eu fosse poeta ou escritora de verdade, e não uma jornalista que nas últimas duas décadas só escreveu artigos de opinião, matérias investigativas e um livro de não ficção, eu saberia construir uma metáfora bem trabalhada na sinestesia para explicar o efeito do amante esporádico em mim. Diria que o meu desejo é tão agudo que sinto algo dentro de mim queimar e gelar ao mesmo tempo quando penso nele. Ou ainda que, quando estamos juntos, a força do que acontece é tão devastadora, capaz de bagunçar tudo em mim, acordando milhares de pedacinhos no corpo que eu não sentia antes, e que quando acabamos de transar preciso me aninhar no amante esporádico, recuperando a mim mesma e as minhas energias, para então começar tudo de novo.
A medida que os dias vão passando e descobrimos todo desenrolar e o motivo pelo qual o Ex-amigo se tornou justamente um ex-amigo, também entendemos a mente e as decisões de Alma, por mais que não concordemos com elas. Confesso que a personagem foi uma das personagens mais difíceis de criar elo com quem sou porque sou completamente contra traições e a normalização de relacionamentos extraconjugais, mas também compreendi completamente o que aconteceu com a jovem mulher que um dia via o Ex-amigo quase que como um Deus, mesmo que fosse óbvio que não havia nada de especial naquele homem. A forma como o machismo estrutural e como os homens se protegem é retratada fielmente neste livro, chegando ao ponto de me fazer acreditar que nenhuma responsabilidade recairia sobre o Ex-amigo, como vimos tanto acontecer em nossas vidas. É gratificante poder ler o que vemos acontecer em épocas de faculdade e em nossos ambientes de trabalho e podermos falar sobre, coisa que, infelizmente, nem isso podíamos fazer antes. Essa evolução nos faz ter mais fé em um futuro mais justo para nós, mulheres, em todos ambientes, mas estamos cientes de que nada disso virá fácil.
Eu poderia passar horas falando sobre como a trama central desse livro ressoou em mim, como entendi a forma como Alma via aquele relacionamento que um dia foi tão essencial em sua vida e o quão libertador foi encarar essa jornada com ela, mas não o farei porque deixo aqui a dica para todos vocês lerem o livro, que sim, tem falhas: a redundância em alguns pontos me irritou, informações que foram repetidas a exaustão e a linguagem, na forma como já mencionei anteriormente. Mas a catarse que senti ao terminar a leitura foi tão forte como a decisão final tomada por Alma, depois do seu ponto mais baixo, quase exatamente como acontece na vida real. Seja como for, a sensação e meu desejo é que todos Ex-amigos que existem continuem assim: Ex-alguma coisa.
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