28.04


“Futuro ancestral”
Ailton Krenak
Compilador: Rita Carelli
Arte de Capa: Alceu Chiesorin Nunes
Companhia das Letras – 2023 – 128 páginas

A ideia de futuro por vezes nos assombra com cenários apocalípticos. Por outras, ela se apresenta como possibilidade de redenção, como se todos os problemas do presente pudessem ser magicamente resolvidos depois. Em ambos os casos, as ilusões nos afastam do que está ao nosso redor. Nesta nova coleção de textos, produzidos entre 2020 e 2021, Ailton Krenak nos provoca com a radicalidade de seu pensamento insurgente, que demove o senso comum e invoca o maravilhamento. Diz ele: “Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui.”

Não há como começar esta resenha sem afirmar que “Futuro ancestral” é uma leitura essencial e precisa para todas as pessoas. Em um compilado de 5 textos (“Saudações aos rios”, “Cartografias para depois do fim”, “Cidades, pandemias e outras geringonças”, “Alianças afetivas” e “O coração no ritmo da terra”) feitos por Rita Carelli, temos o regaste do passado e da sabedoria dos povos originários em uma tentativa de salvar nosso futuro. E não poderia ser mais preciso e necessário tudo, absolutamente tudo que está neste livro.

Às vezes me sinto mais comovido com a presença desses rios do que com outros seres como eu, humanos. Essa aldeia onde estou fica na região leste de Minas Gerais, mais perto do mar do que do Planalto Central do Brasil, e aqui sou envolvido o tempo todo pelo rumor das águas, inclusive de rios subterrâneos, o que me faz pensar no livro Los ríos profundos, do grande escritor peruano José María Arguedas. Nele, o espírito das águas vai cortando vales, montanhas e levando histórias e maravilhas por onde passa. É fascinante a percepção que Arguedas tem daquele rio que corta os Andes, que é capaz de abrir seu caminho pelas pedras com grande força, descendo de maneira avassaladora, sem que ninguém possa navegar seu corpo — pois é um rio bravo. Fui uma vez a São Petersburgo, até a margem do Niva, e conto: esse rio, durante uma parte do ano, congela a tal ponto que é possível passar a cavalo sobre ele. Eu, um sujeito dos trópicos, fiquei pasmo com aquilo…

Para começar, acredito que preciso falar um pouco sobre Ailton Krenak: líder indígena, filósofo, poeta e ambientalista, nascido na região do vale do rio Doce, território do povo Krenak, e é internacionalmente reconhecido, sendo uma das maiores lideranças do movimento indena brasileiro. Estes textos foram retirados de diversas falas de Ailton (inclusive um deles, fora feita na Flip 2021, em uma mesa virtual) com impacto profundo em quem lê, com uma visão de vida simples e preciosa – sim, preciosa, capaz de fazer o leitor pensar em temas que apesar de tão importantes, não são pesados com a importância e relevância que precisamos dar no dia a dia.

Como são textos retirados de falas, a linguagem é simples e direta, sem qualquer dificuldade de chegar ao leitor da forma mais coesa possível. Não há dificuldade alguma em entender a mensagem principal: precisamos reaprender com os povos indígenas o que parece ter se perdido em algum ponto de nossas vidas tão atribuladas.

O rio São Francisco, durante os séculos XVIII, XIX e XX, se constituiu como um guia para a vida de milhões de pessoas, atravessando vários estados, começando em Minas Gerais até desaguar no litoral de Alagoas. Já o rio Doce, nosso querido Wat u, segue para o Espírito Santo. Os dois fazem caminhos distintos: enquanto um corre para o Nordeste, o outro vai para a região Leste do Brasil, mas ambos chegaram ao século xxi fraturados, picotados, barrados e sangrando. Hoje, o corpo do Wat u está cheio de mercúrio e de uma lista imensa de venenos oriundos da mineração, e o rio, cansado, mergulhou em si. Aquele material que desce na calha não é rio, mas detrito de uma civilização abusiva, o que o grande chefe Seattle chamou de vômito. A água de verdade, que nasce nas montanhas, agora está correndo debaixo de uma laje de pedra que os geólogos constataram ser uma formação de granito e outros materiais muitos sólidos.

Parece tão simples assinalar a importância dos rios ou discorrer sobre o impacto da pandemia em nossas vidas, mas, sinceramente, no meio de nossas vidas atuais, não são coisas que pesamos e entregamos o tempo necessário para pensamentos porque a vida está muito rápida e o homem muito longe da natureza – exatamente o oposto do que era quando começamos, seculos atrás. O livro ainda entrega muito sobre a luta dos povos originários e que são necessárias para todos conhecerem.

A experiência da pandemia de covid-19 foi arrasadora. Em uma oportunidade que tive de tecer comentários sobre essa travessia, alguém me perguntou: “Ailton, a covid nos ensinou alguma coisa?”, e eu respondi: “Por que que você acha que ela deveria nos ensinar algo? A pandemia não vem para ensinar nada, mas para devastar as nossas vidas. Se você está achando que alguém que vem para te matar vai te ensinar algo, só se for a correr ou a se esconder”. Os brancos que me perdoem, mas eu não sei de onde vem essa mentalidade de que o sofrimento ensina alguma coisa. Se ensinasse, os povos da diáspora, que passaram pela tragédia inenarrável da escravidão, estariam sendo premiados no século XXI. Eu não tenho nenhuma simpatia por essa ideia, não quero aprender nada às custas de sofrimento.

A visão que temos aqui beira a simplicidade: o mundo e o planeta no qual vivemos deveria ser cuidado e compartilhado por todos nós que aqui estamos – e sabemos bem que não é isto que acontece diariamente. Não há simplicidade no modo com o qual vivemos hoje, mas pode ser justamente uma volta ao passado e na ancestralidade que nos salve de um eminente desastre ambiental, enquanto a saída parece, de toda forma, tão simples: olhar para o passado para salvar o futuro.

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