“A Estrada da Noite”
Joe Hill
Arqueiro – 2022 – 320 páginas
Tradução: Mário Molina
Aclamado pela crítica, vencedor de vários prêmios e considerado livro do ano por diversas publicações, o romance de estreia de Joe Hill ganha uma edição especial, em capa dura e com novo projeto gráfico.
Uma lenda do rock, o cinquentão Judas Coyne coleciona objetos macabros. Por isso, quando participa de um estranho leilão na internet, não pensa duas vezes antes de fazer uma oferta. O roqueiro arremata um paletó supostamente assombrado pelo espírito do falecido dono. Sempre às voltas com os próprios fantasmas – o pai violento, as mulheres que usou, os colegas de banda que traiu –, Jude não tem medo de encarar mais um.
Quando o item é entregue na sua casa, numa caixa preta em forma de coração, logo fica claro que não se trata de um fantasma imaginário. Sua presença é real e ameaçadora. E, para piorar, o roqueiro descobre que o fantasma não entrou na sua vida por acaso. Ele busca vingança.
Eu não vou mentir: “A Estrada da Noite” é para os fortes. Realmente fortes. É para quem gosta de um bom filme de terror, quem não tem medo de ler um livro com cenas de terror pesadinhas e não tem problema de dormir com a luz apagada e que principalmente gosta do gênero. Fiquei realmente (realmente mesmo) surpresa com o tom do livro porque há cenas dignas dos grandes clássicos de terror do cinema e da literatura – claro que em outra pegada, eu coloco esse livro junto com os outros dois que mais me deixaram com medo na vida e eu sou cria de filme de terror (provavelmente não há filme de terror que eu não tenha visto e não estou contando vantagem. Eu só gosto e não sinto medo em 99,9999999% dos filmes e cenas que vejo), então vocês podem entender que o livro é realmente terror no seu estado mais puro e glorioso.
Mas entenda que o livro não trata somente de terror fantástico e isso que me fez me apaixonar mais ainda pela história: há um fantasma que procura vingança, mas há um motivo (se é que há um motivo para alguém morrer e ficar preso nesta Terra, mas vocês entenderam meu ponto aqui!) pelo qual a trama está acontecendo e ainda mais porque a jornada dos dois personagens principais (ou melhor, três) é bastante complexa, recheada de camadas e situações que mostram um pouco da miséria humana: abandono, rejeição, desespero falta de amor, tudo isso embalado uma história de terror que não trata o leitor como uma criança procurando justificar determinadas ações (a maldade humana está lá) e nem explicar o inexplicável porque o terror fantástico existe e ele está batendo na sua porta para acertar as contas.
Muitos objetos de sua coleção particular do grotesco e do bizarro eram presentes enviados por fãs. Na realidade era raro ele próprio comprar algo para a coleção. Mas quando Danny Wooten, seu assistente particular, disse que havia um fantasma à venda na internet e perguntou se ele não queria comprar, Jude não pensou duas vezes. Era como sair para almoçar, ver o prato do dia e decidir que queria aquilo sem dar sequer uma olhada no cardápio. Certos impulsos não exigiam reflexão.
Judas Coyne é o nome artístico do roqueiro Justin Cowzynski, o personagem principal, e chamado de Jude – e ele é um cretino para basicamente todos ao seu redor, mas há um motivo (também) para isso. Jude é tão cretino que ele chama suas namoradas por nomes de Estados, e é assim que Marybeth Kimball, a protagonista feminina desta história, é chamada por ele: Geórgia. O mesmo também se aplica para Anna May McDermott, a Flórida, a terceira personagem bastante importante nessa trama (e não, não vou falar o motivo porque está resenha é obviamente livre de spoilers!).
Não há mentiras na sinopse e o livro é muito, muito rápido: antes de você se dar conta, Jude já comprou o terno com o fantasma, exatamente como esperando, e logo o terno já chegou na casa do meio aposentado astro do rock. Com cinquenta e quatro anos e dois dos quatro integrantes de sua banda de rock já mortos, Jude se afastou um tanto da vida artística, ficando mais em sua casa afastada com seus cachorros, aonde seu assistente particular Danny tem uma sala (contra sua vontade, que fique claro, já como Jude não é lá tão fã do rapaz – e nem de pessoas no geral) e sua atual namorada Geórgia também mora, o local claramente se torna diferente com a chegada da caixa sinistra em formato de coração com o terno. E amigo leitor que me lê, não demora nada, absolutamente nada, para as cenas de terror começarem porque o espirito que veio com a caixa não está pra brincadeira.
À medida que o tempo passava, Jude ia deixando para trás uma coleção de namoradas góticas que tiravam a roupa ou eram cartomantes, ou tiravam a roupa e eram cartomantes, belas moças que usavam cruzes egípcias, esmalte preto nas unhas e que ele sempre chamava pelo nome de seus estados de origem, um hábito de que poucas gostavam, pois não queriam ser constantemente lembradas da identidade que estavam tentando apagar com toda aquela maquiagem de mortas-vivas. Geórgia tinha 23 anos.
As cenas de terror, como já comecei falando, são sinistras a ponto de deixar o leitor desconsertado e com medo de ficar no escuro, já como o fantasma se apresenta como um homem com os olhos fora de foco, cenas descritas de tal forma capaz de colocar medo em qualquer pessoa. Mas, mais do que isso, com a aparição do fantasma, Jude começa a investigar quem era aquele homem e de onde ele veio, logo descobrindo que há uma ligação muito mais profunda e inesperada com aquela “visita” que parece ser especialmente para ele.
Essa jornada de Jude não envolve somente seu presente recente na qual envolve uma total falta de empatia com uma ex-namorada, trama que me fez desgostar bastante do personagem, mas também uma volta a suas origens: seu relacionamento com seu pai, um homem cruel que tratava os animais melhor do que o filho e a esposa. Mas, como falei acima, não há absolvição aqui: Jude, outrora Justin, aprendeu a devolver a dor que recebeu do mundo, e essa dor voltou para chutar sua bunda na forma de um fantasma que está matando as pessoas que ele se “importa” (vagamente, deixo claro) até realmente o matar. A parte de compreender quem o personagem é e a forma como lida com o mundo é muito, mas muito bem construída, capaz de mostrar o ponto de vista do homem que aprendeu a se manter afastado de qualquer pessoa que possa demonstrar interesse de quebrar suas defesas. Mas, novamente, repito: Jude é um personagem que não precisa de defesa porque muito do que ele fez que não tem defesa, inclusive é esse um dos motivos pelo qual seu antigo casamento acabou: porque parece que ele gosta de ser a pessoa horrível que ele sabe ser em determinados momentos.
Olhou de relance para o fantasma e nesse momento o morto levantou a cabeça e suas pálpebras se abriram. Mas no lugar dos olhos só havia um rabisco preto. Como se uma criança tivesse pegado um pilot mágico, capaz de desenhar em pleno ar, e tivesse tentado desesperadamente escrever sobre eles. As linhas pretas se contorciam e se entrelaçavam uma à outra, como vermes amarrados num nó.
Claro que a jornada que Jude embarca para fazer aquele fantasma que agora está em sua casa é acompanhada de Marybeth, a Georgia, que consegue entender o sobrenatural de forma bastante natural porque sua avó tem uma história de morte e sobrenatural em sua família de anos e anos atrás – a mulher tinha uma gêmea que foi levada do pátio da casa da família e morta, e o espirito da menina parecia ter ficado preso no lugar, aparecendo para as pessoas (e olha que essa parte não é terror, hein!). Em uma clara demonstração de desenvoltura, Joe Hill constrói a personagem de um jeito que não é só cativante, mas muito real: outrora uma stripper, com uma vida repleta de escolhas que a levaram até aquele momento, Marybeth é forte, inteligente e disposta a fazer a coisa certa mesmo que seja por alguém que não merece. Confesso que tive vontade de sacudir a personagem em determinadas partes porque ela é tão corajosa que beira a burrice, mas não, não posso dizer que ela é a típica mocinha de filmes de terror porque ela é badass demais para isso e seria um sacrilégio a comprá-la somente um interesse amoroso. Se Jude consegue chegar até chega, é muito devido a ela e a sua forma como encara a vida, sem medo de nada, nem mesmo da morte, o que até mesmo assusta um pouco.
Por fim, eu deveria falar de Anna May, a Flórida, uma ex-namorada que Jude teve antes de Marybeth e que tem grande parte da trama concentrada nela. Confesso que ela é a mais difícil de falar sobre porque ela é frágil por todos motivos horríveis que nem sequer me atrevo a tentar escrever e que traz a maior parte do terror mundano para esta história (e olha que Jude passou péssimas coisas com seu pai). Anna May é, sem sombras de dúvidas, uma vitima, alguém que queria ter algo e está afundando na depressão de uma forma sombria e desesperadora, que não encontrou apoio. Isso me dói porque como alguém que lida com questões de saúde mental todos os dias (todo dia, dia a dia), é ainda sofrido entender o estigma que pessoas que passam por um trauma muito grande e desenvolvem uma doença psicológica enfrentam. Viver não é fácil, e viver tão machucada assim é quase impossível, e Anna May mostra isso perfeitamente.
Jude clicou no link – e lá estava ele.
O homem na foto em preto e branco era uma versão mais jovem do velho que Jude vira duas vezes no corredor do andar de cima. No retrato ele parecia um vigoroso sessentão, o cabelo escovinha cortado em estilo militar, quase máquina zero. Com seu rosto comprido, cavalar, e extensos lábios finos, era mais do que apenas superficialmente parecido com Charlton Heston. O mais espantoso era descobrir que Craddock, em vida, tinha olhos como os de qualquer homem. Eram claros, diretos e encaravam a Eternidade com a desafiadora autoconfiança de palestrantes motivacionais e pastores evangélicos nos quatro cantos do mundo.
E se você está se perguntando qual estrada da noite é essa que o titulo faz menção, preciso avisar que faz todo sentido enquanto ainda você está lendo o livro (obviamente não explicarei porque seria spoilers demais), e apesar da mudança do titulo original (que em inglês é “Heart-shapeded box”, que seria “Caixa em formato de coração” em tradução livre), faz todo sentido do mundo. Aproveito o momento para falar sobre essa edição da Arqueiro que me deixou apaixonada. Assim que o livro chegou aqui em casa e eu fiz o unboxing (clique AQUI para ver), eu soube que estava apaixonada: pinturas laterais, acabamento de luxo e capa dura, é o tipo de edição que todos que já conhecem a história e a amam precisam ter (porque essa edição é uma reedição, na verdade, com novo projeto gráfico com algumas imagens bastante significativas na capa que você só entende quando termina o livro) e também aqueles amante do terror fantástico – e, mais uma vez, deixo claro, não só o fantástico: a miséria humana e todas as falhas estão aqui, presentes, atormentando os personagens como se fossem um fantasma.
Claro que não posso deixar de mencionar quem Joe Hill, o autor, é: filho do Rei (!) Stephen King e de sua esposa (também escritora) Tabitha King e ainda co-autor das graphic nivels “Locke & Key”, que tem uma série inspirada na Netflix. Acho que preciso só assinalar que o dom da escrita corre em suas veias, não é mesmo?
Vamos dar uma volta, Jude, dizia o fantasma. Vamos dar uma volta na estrada da noite.
Jude sentiu um vazio, de novo se rendendo àquela voz, à visão daquela lâmina prateada cortando para um lado e para o outro no escuro.
Termino essa resenha falando mais uma vez sobre como a construção dos personagens aqui são importantes para o elemento terror que a narrativa tão bem introduz e mistura com os traumas deles: não há passagem sem importância, não há trauma sem consequência, não há estrada que não tenha destino, mesmo que não seja o que você queira. Não há como se livrar do fantasma da sua própria consciência, que muitas vezes pode ser mais letal do quem fantasma que está querendo sua morte. No final das contas, o que “A Estrada da Noite” deixa claro é que o terror é aterrorizante, mas a vida pode ser igualmente sombria.
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