31.12


“A Cidade de Vapor: Contos reunidos”
Carlos Ruiz Zafón
Tradução: Ari Roitman, Paulina Wacht
Suma – 2021 – 184 páginas

A cidade de vapor reúne todos os contos de Carlos Ruiz Zafón. Pensado pelo autor como uma verdadeira homenagem aos leitores que o acompanharam ao longo da série iniciada com A sombra do vento, este livro contém todo o mistério, o terror, a magia e a fascinação que sempre permearam suas histórias.

Um livro emocionante, do qual ecoa a magia de um escritor ainda capaz de nos fazer sonhar, A cidade de vapor é um passeio pelos temas, lugares e personagens do universo literário da série O Cemitério dos Livros Esquecidos.

Criativos e envolventes, os contos aqui reunidos trazem à vida personagens conhecidos e novos, todos carregando a melancolia e a beleza da escrita de Zafón, e nos convidam a entrar em seu mundo onírico e em sua cidade de névoa.

Sinto que preciso contextualizar tudo antes de realmente começar a falar de “A Cidade de Vapor”, então vamos lá: Zafón é um dos maiores escritores contemporâneos e, em sua país natal, a Espanha, ele só perde em números de exemplares vendidos para Miguel de Cervantes (sim, O Miguel de Cervantes, autor de “Dom Quixote”). Zafón é realmente tido como um dos autores que influenciou uma geração e tem total mérito, já como em suas obras mescla diversos gêneros em um só – o que me leva a falar da quadrilogia “O Cemitério dos Livros Esquecidos” (que é composta pelos livros “A Sombra do Vento”, “O Jogo do Anjo”, “O Prisioneiro do Céu” e “O Labirinto dos espíritos”), que foi publicada entre os anos 2001 à 2016. “A Cidade de Vapor” é, na verdade, uma coletânea de contos ligados a essa quadrilogia e é o último livro do autor, que faleceu ano passado. Não há como se explicar a falta que o autor fará no cenário da literatura mundial.

“A Cidade de Vapor” traz 11 contos que fala mais sobre os personagens e seus antepassados de “O Cemitério dos Livros Esquecidos”, mostrando até mesmo como o famoso labirinto do Cemitério foi desenhado e como terminou sendo construído em Barcelona. Eu sei que se você não leu absolutamente nada do autor e deseja, você pode começar por qualquer livro, em qualquer ordem, até mesmo pelo agora livro de contos, porque esta série foi criada pelo autor com essa ideia: você pode entrar no universo por qualquer livro, na ordem que você desejar. Os livros nem mesmo se passam em ordem cronológica, indo e voltando no tempo em uma simples rede de acontecimentos que leva o leitor a juntar peças de um quebra cabeças maravilhoso. Como vocês podem ver, sou fã da série e do autor, e foi com felicidade que peguei este livro de contos para ler e resenhar.

Sempre invejei a capacidade de esquecer que algumas pessoas têm, pessoas para as quais o passado é como uma mudança de estação ou um par de sapatos velhos que basta condenar ao fundo do armário para perderem a capacidade de refazer os passos. Eu tive a infelicidade de me lembrar de tudo e de que tudo, por sua vez, me lembrasse de mim. Recordo uma primeira infância de frio e solidão, de tempos mortos observando o cinza dos dias e aquele espelho preto que enfeitiçava o olhar do meu pai. Praticamente não tenho lembranças de nenhum amigo. Posso evocar alguns rostos de crianças do bairro da Ribera com as quais eu às vezes brincava ou brigava na rua, mas nenhum que quisesse resgatar do país da indiferença. Nenhum, menos o de Blanca.

Alguns dos contos presentes em “A Cidade de Vapor” já haviam sido publicados, mas agora a Suma, casa de Safón no Brasil, os reuniu em um único exemplar para os brasileiros, e, assim como a série que os ligam, temos basicamente todos os gêneros nos contos que trazem até mesmo figuras históricas reais como o autor Miguel de Cervantes (sim, ele) entre os personagens do conto “O príncipe do Parnaso”, que é o maior em número de páginas. Tratando de uma beleza e dor exemplares, temos um clássico do autor aqui: nem sempre temos o destino que merecemos e, muitas vezes, ele é implacável. Só esse conto já merece todos elogios possíveis e inimagináveis ao autor, que constrói uma rede de eventos que ninguém sabe distinguir o que realmente aconteceu na vida de Cervantes para o ligar a família Sempere, que é, definitivamente, a principal família ligada ao Cemitério – com direito a presença de um grande vilão aparecendo aqui também. Vemos a ideia do Cemitério de livros florescer e começar a tomar forma, o que é um alento para os fãs da série e uma ótima introdução para quem deseja começar a ler o universo.

Laia adorava o doutor e aguardava suas visitas com expectativa. Era o único homem que conhecia que não a olhava com desejo nem projetava nela suas fantasias impossíveis. Podia falar com ele de coisas que nunca mencionaria ao seu pai, e também podia lhe confiar seus temores e inquietações. O médico, que nunca julgava seus pacientes nem as ocupações que a vida tinha escolhido para eles, não podia esconder suas objeções ao modo como o fotógrafo vendia os melhores anos da filha. Às vezes lhe falava da filha que tinha perdido, e ela sabia, sem que ninguém precisasse lhe dizer nada, que era a única pessoa a quem o doutor confiava seus segredos e suas recordações. Secretamente, desejava ocupar o lugar da outra Laia, transformar-se na filha daquele homem triste e bondoso e abandonar o fotógrafo, que a cobiça e a mentira acabaram transformando num estranho que circulava com as roupas do seu pai. O que a vida lhe havia negado, a morte lhe daria.

E é o momento de vermos tudo em ação que me leva ao conto “Rosa de fogo”, que acho que é um dos meus favoritos – mas, sendo sincera, fica difícil escolher um favorito. Abusando da fantasia que é capaz de criar, Safón construiu um conto com um pézinho no terror que faz o leitor querer ler mais sobre a catástrofe que está acontecendo nas páginas (sim, esse é o nível que o autor faz o leitor desejar: ler mais sobre o terror espalhado por 7 dias e 7 noites) que são poucas demais e mereciam mais. O que me transporta ao conto “Uma senhorita de Barcelona” e a trágica história de Laia, que quase me levou as lágrimas – não estou brincando. Aproveitando o clima de final de ano, não poderia deixar de mencionar o clima adoravelmente estranho de “Lenda de Natal” e a forma como Zafón nos fazia embarcar em tudo que escrevia. Mas, pensando enquanto escrevia essa resenha, acredito que talvez meu conto favorito seja “Sem Nome”, pelo peso que carrega e pela brutalidade contida em suas páginas – nunca saber o nome de alguém que é tão importante em sua vida parece algo cruel demais.

Diz o provérbio que um homem deve caminhar enquanto ainda tem pernas, falar enquanto ainda tem voz e sonhar enquanto ainda conserva a inocência, porque, mais cedo ou mais tarde, não poderá mais ficar em pé, não terá mais fôlego e não perseguirá sonho algum além da noite eterna do esquecimento.

Muitos desses contos são realmente pequenos, com menos de 10 páginas, por isso não estou mencionando um à um e nem fazendo grandes comentários sobre eles com o intuito de preservar você, que me lê, de receber qualquer spoiler a mais. Esse universo é tão rico, tão vasto, tão bem escrito, tão maravilhoso que tudo que eu posso (e quero) fazer é recomendar a leitura imediatamente para todos vocês. Completam ainda a listagem de contos, fora os que mencionei acima: “Blanca e o adeus”, “Alicia, ao amanhecer”, “Homens cinzentos”, “A mulher de vapor”, “Gaudí em Manhattan” e “Apocalipse em dois minutos”.

Uma coisa que muito me consola é saber que o corpo físico de Zafón não caminha mais sobre essa terra, mas, assim como seu Cemitério de livros, que guardam palavras que precisam ser lidas e conhecidas pelo mundo, seus livros aqui ficarão. Nós, leitores, o perpetuaremos, exatamente como precisa ser. Se você ainda não conhece o autor e sua obra, a hora chegou.

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