“O mapeador de ausências”
Mia Couto
Companhia das Letras – 2021 – 288 páginas
A partir das memórias familiares e da figura do próprio pai, Mia Couto tece este belo romance que transita entre a Moçambique pré e pós-independência.
Diogo Santiago é um intelectual moçambicano respeitado e de muito prestígio. Professor universitário em Maputo e poeta, ele volta pela primeira vez em anos à Beira, sua cidade natal, às vésperas do ciclone que a arrasou em 2019, para receber uma homenagem de seus conterrâneos.
Mas o regresso à Beira é também o regresso a um passado longínquo, à sua infância e juventude, quando Moçambique ainda era uma colônia portuguesa. Menino branco, ele é filho de um pai jornalista e poeta, e de uma mãe absolutamente prática e com os pés no chão. Do pai, recorda das viagens que fez com ele ao local de terríveis massacres cometidos pela tropa colonial, da perseguição e prisão pela polícia política, a Pide, e, sobretudo, de seu amor pela poesia. Entre vivos e mortos, Santiago revisita os personagens que fizeram parte de sua história.
Mia Couto é um dos maiores autores Africanos da atualidade e estava mais do que na hora de começar a ler os livros do autor. “O mapeador de ausências” foi meu primeiro contato com sua escrita e acredito que eu não poderia ter sido mais feliz com a escolha, já como o livro realmente é uma ode a Moçambique antes e depois de sua independência, me apresentando mais sobre um país que eu deveria saber mais sobre – que deveríamos, na verdade. Ganhador de diversos prêmios da literatura mundial, entre eles o Camões, e autor de contos, crônicas, romances e livros de poesia, Mia Couto é biólogo de formação e ainda reside na África. Tive a oportunidade de participar de uma conversa com o autor sobre sua mais recente obra que agora tento falar um pouco sobre, e estou ainda encantada com a simplicidade de Mia.
“Caro professor:
O meu avô foi o inspetor da PIDE que, há mais de quarenta anos, prendeu o seu pai. Os documentos contidos nesta caixa fazem parte desse processo. Fique com eles, esse passado não me pertence. Durante todo este tempo, o meu avô guardou estes papéis como se fossem a única parte viva da sua vida. No final dos seus dias, pediu -me que tomasse conta desse espólio. Como sabe, os arquivos da PIDE em Moçambique foram queimados logo depois da queda do regime colonial. Estes documentos são raros sobreviventes desse tempo tão triste.
Cuide deles. Espero que lhe sejam úteis.
Sua admiradora,
Liana Campos.”
No ano de 2019, um ciclone devastou a cidade de Beira, cidade natal do intelectual moçambicano Diogo Santiago, que também é professor universitário em outra cidade (Maputo), e retorna às vésperas da chegada do ciclone a Beira, tudo para receber uma homenagem. Obviamente que voltar a cidade na qual cresceu é também é ir de encontro as suas lembranças há muito guardadas, principalmente as que envolvem seu pai, Adriano, que foi jornalista em uma Moçambique antes de sua independência de Portugal, país que o colonizou.
Assim que chega na cidade, Diogo conhece Liana, que lhe entrega documentos que mostram que Adriano era considerado “subversivo” em um regime bastante opressor, fazendo com que Diogo comece a se lembrar de duas viagens feita na companhia do pai para a cidade de Inhaminga, palco de um massacre por parte do governo, praticamente destruída durante a guerra civil que varreu o país. O avô de Liana foi o inspetor que participou da prisão de Adriano e a narrativa é absurdamente criativa em um nível acima do normal: somos apresentados aos personagens e lemos em página alguns dos documentos que Liana entrega a Diogo, que começa a reconstrução de sua memória de fatos que há muito tinha deixado de lado, como as viagens acima citadas.
Em criança, dizia o meu pai, não nos despedimos dos lugares. Pensamos que voltamos sempre. Acreditamos que nunca é a última vez. Os lugares são como os livros: só existem quando os lemos pela segunda vez.
Aos poucos, a perseguição e prisão de Adriano pela PIDE (sigla para Polícia Internacional e de Defesa do Estado) vão se tornando mais e mais consistentes, fazendo com que Diogo vá juntando pedaços de um quadro imenso que são suas memórias, algumas embaralhadas pelo tempo e saudade. Enquanto vai revivendo tudo isso, Diogo também se lembra e revive o amor do pai pela poesia, coisa que muito guiou o homem ainda em vida.
Os personagens não se restringem somente a Diogo e Liana e somos apresentados a Benedito, homem que participou efetivamente do passado de Diogo e dirigente da FRELIMO (sigla para A Frente de Libertação de Moçambique) e ainda somos apresentados a história de Mariana Sarmento, uma narrativa repleta de tristeza e momentos de partir o coração. Também conhecemos Natalino Fernandes – cada um com um lugar certo e grafado na narrativa, poderosos e presentes de uma forma que impulsiona a narrativa sempre adiante. Descobrir mais sobre Mariana e seu passado leva Diogo a juntar mais algumas peças do grande quebra-cabeças que está montando durante aquela viagem.
— Isto vai ser o fim do mundo — vaticino.
— Já estamos habituados aos fins do mundo — reage Benedito.
— Este pode ser o último — digo. É o medo que me faz falar assim.
A conclusão da trama para mim remete bastante justamente ao título do livro, que não poderia ser outro: “O mapeador de ausências” é um livro tocante, repleto de paisagens deslumbrantes e altamente bem descritas que levam o leitor até o centro de um país em duas fases de sua história, mostrando e falando sobre regimes e sobre revoluções, mas, trazendo acima de tudo, como a construção da imagem sobre uma pessoa pode, sem sombras de dúvidas, evocar sentimentos que nem ao menos entendemos em nós mesmo. Não é um livro sobre esquecer de onde se veio, e sim para se lembrar da importância de se revistar os lugares que lhe marcaram, frase bastante marcante da narrativa. Não é um livro sobre quem se foi e o que a pessoa deixou, mas sobre como podemos sanar essa ausência em nossas vidas e nos construirmos a partir disto.
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