09.07


“O deus das avencas”
Daniel Galera
Companhia das Letras – 2021 – 248 páginas

O autor de Barba ensopada de sangue, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, nos traz um livro marcante, que toma caminhos inesperados para narrar um mundo em rápida transformação. As três histórias deste volume vão do passado recente ao futuro distante, e falam de expectativas e perdas, e de como reconstruir a vida a partir de nossos próprios erros.

Daniel Galera expande as possibilidades da literatura nas três novelas reunidas neste livro. Em “O deus das avencas”, que abre este volume, um casal se fecha em casa à espera do nascimento do primeiro filho, e mergulha numa incerteza crescente, tanto pelo destino deles quanto pelos rumos do país. Em “Tóquio”, Galera abandona a narrativa mais realista ao retratar a vida de um homem solitário, obrigado a enfrentar o passado em um mundo que atravessou um desastre ambiental e tecnológico. E, por fim, em “Bugônia”, ele dá um passo além ao recriar a história de uma comunidade pós-apocalíptica em simbiose com a natureza, que, pressionada pelas ameaças externas de um planeta devastado, precisa se transformar de forma radical.

O deus das avencas é um livro especulativo e por vezes sombrio, mas extremamente humano.

Livros de contos e novelas eram algo que eu não conseguia gostar e investir porque eu gosto de saber fins e entender começos. A ideia de uma história ser contada e encerrada normalmente em um espaço de tempo mais rápido que não entregaria em detalhes um começo-meio-fim não me permitia me entregar completamente. Mas ainda bem que amadurecemos e aprendemos mais sobre a vida e nós mesmos, e foi assim que eu fui dando chances a livros de contos até chegar aqui, no lugar no qual me encontro, realmente aproveitando contos e novelas.

E é o caso de “O deus das avencas”, mais novo livro de Daniel Galera, que reúne 3 novelas que tem um profundo impacto em quem as lê pelo simples fator humanidade. Li o livro e tive a oportunidade de participar de uma conversa com o autor e entender um pouco mais sobre os universos das novelas, me deixando mais encantada ainda com a criatividade e a possibilidade de nos jogarmos em histórias que parecem tão diversas entre si – mas só parecem.

O livro traz os contros: “O deus das avencas”, “Tóquio” e “Bugônia” que se passam em tempos diferentes, em uma linha temporal bastante distinta: enquanto a 1ª novela nos leva de volta ao final de semana das eleições de 2018, o 2º avança algumas décadas adiante – e o 3º talvez algumas centenas de anos no futuro, cada um com suas peculiaridades e momentos altos, mas todos com algo muito intenso para dizer.

O que ela está vivendo, Lucas conclui, ele não pode viver, e o que ela está vivendo tem a ver com coisas que ela viveu muito antes de ele entrar na vida dela, embora nesse instante a vida de um seja a vida do outro numa sobreposição quase completa.

Em “O deus das avencas”, a novela que abre o livro e leva o mesmo nome do livro, temos o casal Lucas e Manuela, os quais, depois de um tempo juntos, estão aguardando a chegada do primeiro filho. Parece um processo de felicidade e ansiedade pela chegada do novo membro da família, mas que aqui faz os personagens chegarem ao limite, já como o parto está se arrastando por todo final de semana. Em uma sensação forte de claustrofobia, com o casal desligando os celulares e escolhendo o parto normal enquanto se fecham na bolha do aguardo das contrações acelerem para que possam seguir definitivamente o hospital sem serem mandados de volta, vemos as inseguranças dos novos pais aflorarem, sem ter certeza sobre o futuro deles, do filho e do país, tudo acontecendo e ruindo ao mesmo tempo, passando para o leitor todas as sensações dos personagens nas páginas.

Mas o advento das cópias humanas nos coloca questões novas”, retomou o Terapeuta. “Os artefatos, nesse caso, armazenam dados da configuração neural completa de um indivíduo na ocasião do escaneamento. O grau de identidade que essas cópias apresentam em relação ao indivíduo copiado é uma questão filosófica das mais empolgantes e difíceis. No meu entender, há muitos tipos de pessoas no mundo. Infinitos tipos. Um desses tipos é o que chamamos de humano. As cópias talvez não sejam a mesma pessoa de antes, mas são alguma pessoa. De todo modo, o que traz a maioria dos frequentadores ao nosso grupo não é essa questão. É a realidade prática, afetiva, do convívio com esses objetos. Não sabíamos nada sobre como a mente digitalizada reagiria a novos corpos. Hoje sabemos. A maioria delas vive em terror. E o terror delas é também o nosso terror. O terror de seus guardiães.

Já em “Tóquio”, a 2ª novela, e minha favorita, nos encontramos no Brasil em alguns anos no futuro, entendendo uma tecnologia que basicamente deu a imortalidade aos ricos: você poderá fazer o download de suas memórias e quando morrer, um novo vaso lhe será dado, com suas memórias ali, implantadas. É como se assim a pessoa pudesse voltar ao ponto de sua ida aonde suas memórias foram “baixadas” – e de cara somos apresentadas ao personagem principal, o qual fala com clareza que desprezava sua mãe, a quem agora tem um dispositivo ovoide aonde as memórias de sua mãe se encontram, o levando para um grupo de pessoas que se encontram na mesma posição que ele: o que fazer com aqueles dispositivos? São as pessoas que eles conheceram e amavam ainda ali?

Em saltos temporais alternando entre passado e presente, somos apresentados a seu complexo relacionamento com a mulher e contemplamos o colapso da sociedade brasileira e mundial, tudo envolto em questionamentos bastante mudamos que nos levam a imaginar o que realmente nos faz: nossas memórias? Nossas escolhas? Nossos relacionamentos? Seja como for, o que podemos (e devemos fazer) é tentarmos mais, sermos melhores e aprendermos com nossos erros.

O pertencimento é uma ilusão e uma deformidade do medo. A Velha abooliu a lembrança e entronou a experiência. Ela diz que um humano não deve ser nada além do que vai se tornar no instante seguinte. A Velha proíbe livros, diários anotações para qualquer propósito. Era assim no Organismo até Alfredo chegar e se estabelecer no Topo.

E, encerrando, temos a terceira novela: “Bugônia”. Se na novela anterior estamos assistindo o colapso da sociedade brasileira e mundial, aqui já estamos colapsados: vemos os humanos vivendo em especie de tribos – ou, como chama, Organismo –, criando as crianças de suas “tribos” coletivamente. Chama é uma criança desse grupo, que segue bastante os ensinamentos da Velha, que é uma das duas lideres daquelas pessoas. Apesar da pouca idade, Chama já enxerga o mundo de uma forma que as outras pessoas ao redor dela parecem não ver e essas diferenças são potencializadas com a chegada do que parece ser um homem que cai do céu em uma nave.

Vamos aprendendo mais sobre o passado e como as pessoas chegaram ali em uma sociedade que vive em simbiose com as abelhas (sim), mas, como vocês podem imaginar, sabemos que foi basicamente as mesmas decisões que a nossa sociedade toma atualmente, nos condenando a uma loteria aonde somos os ricos sobreviverão – até seu destino colidirem novamente com os que não tinham as mesmas condições que eles.

Ainda faço menção ao nome das novelas: “Tóquio”, que se chama assim pelo acontecimento que se desenrola na cidade de Tóquio e transforma o relacionamento dos personagens, enquanto “Bugônia” me fez pesquisar o significado da palavra (e indico você a procurar também!). “O deus das avencas” é um livro que traz 3 novelas provocativas que nos fazem entrar em contato com nossa própria humanidade, nos fazendo questionar o que desejamos para nosso futuro. Se você ainda não conhece o autor, o livro que pode lhe apresentar a Daniel galera muito bem está aqui.

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