20.04


“A palavra que resta”
Stênio Gardel
Companhia das Letras – 2021 – 160 páginas

Neste primoroso romance de estreia, acompanhamos a trajetória de Raimundo, homem analfabeto que na juventude teve seu amor secreto brutalmente interrompido e que por cinquenta anos guardou consigo uma carta que nunca pôde ler.

Aos 71 anos, Raimundo decide aprender a ler e a escrever. Nascido e criado na roça, não foi à escola, pois cedo precisou ajudar o pai na lida diária. Mas há muito deixou a família e a vida no sertão para trás. Desse tempo, Raimundo guarda apenas a carta que recebeu de Cícero, há mais de cinquenta anos, quando o amor escondido entre os dois foi descoberto. Cícero partiu sem deixar pistas, a não ser aquela carta que Raimundo não sabe ler ― ao menos até agora.

Com uma narrativa sensível e magnética, o escritor cearense Stênio Gardel nos leva pelo passado de Raimundo, permeado de conflitos familiares e da dor do ocultamento de sua sexualidade, mas também das novas relações que estabeleceu depois de fugir de casa e cair na estrada, ressignificando seu destino mais de uma vez.

Tive a grande oportunidade e honra de ler esse livro antes de ser publicado, além de participar de um encontro virtual com o autor. Stênio é tudo que eu esperava do autor que escreveu uma obra tão delicada e tão forte, tão intensa e tão poderosa: calmo, com uma fala ritmada que me fez ter certeza absoluta que ele sabia bem o que queria contar e o livro mostra isso claramente. Vindo do interior do Ceará, ficou claro para mim, que sou do interior da Bahia, os pontos em comum na narrativa de uma vida marcada por trabalho árduo, homofobia e a força da família em nossas vidas, tudo bastante presente no nordeste de nosso país e em cidades do interior. Me sinto privilegiada de ter lido esta obra que, definitivamente, merece e precisa ser lida por todos vocês.

A trama é exatamente o que a sinopse nos entrega: Raimundo Gaudêncio, um homem com 71 anos, decide que precisa ler a carta que Cícero, seu primeiro amor, lhe deixou quando foram separados com violência no começo da vida adulta. Por todos aqueles anos, Raimundo guardou a carta e não deixou que ninguém a lesse para ele, e, naquela altura, decide ele mesmo aprender a ler e escolher poder fazer o que acredita precisar fazer. E assim começamos a saber o que aconteceu no passado do personagem e como seu romance com Cícero começou e tudo que veio em seguida.

Raimundo não deixou ninguém ler e envelheceu com o desejo de saber o que ela diz crescendo dentro dele. Feto idoso, rebento tardio. A carta guardava uma vida inteira.

Raimundo desde muito cedo começou a entender sua sexualidade, mas em uma cidade não nomeada, morando em uma área claramente rural, ele sabia que era algo que não poderia simplesmente expor sem sofrer preconceito. Logo se tornou amigo de Cícero, que entendeu os olhares do outro, e em uma cena forte e intensa, os dois enfim se beijam. A forma dos desejos dos personagens passam das páginas, fazendo o leitor entender que o acontecia ali era algo real e forte, capaz de durar uma vida inteira.

Mas havia as famílias dos dois. Quando o pai de Cícero flagra o casal juntos, a reação é a pior possível, e o homem termina contando para os pais de Raimundo, os quais obviamente também não aceitam. Vamos descobrimos mais sobre Damião, o pai de Raimundo, e seu passado, a forma como ele lidou com a homofobia em sua própria família de nascimento quando era adolescente ao se deparar com a sexualidade de outro parente que amava profundamente, e como tudo vai deixando marcas no homem que termina reagindo da única forma que podemos imaginar: com mais violência.

As letras ainda carregavam o vigor do braço de Cícero, o vigor com que ele abraçava Cícero de volta? A carta separava e ligava a vida dos dois. Palavra danada! Era a voz do fim, eco de passado não vivido. Se tivesse brigado mais, se.

Em linhas temporais alternadas, vemos o passado em divergentes pontos da vida de Raimundo, e também o presente. Sem nunca se fixar em lugar nenhum, Raimundo está fugindo de seu passado, mas sem nunca fugir de si mesmo, vivendo diversos casos sem nenhum apego sentimental, até que o destino lhe apresenta Suzzanný, uma travesti com uma história de vida que a transformou em quem é. Suzanný é forte, muito forte, e mesmo depois de sofrer também com violência, ela consegue encontrar dentro dela um lugar para não perder a doçura e a esperança de tempos melhores.

Assim como no passado a família foi muito importante para Raimundo, novamente ele se encontra em uma posição de que pode ser possível firmar novamente suas raízes em algum lugar e criar por si mesmo uma família. A questão do quão necessária pessoas que escolhemos para ser nossa família também está presente em uma narrativa que vai sendo semeada de momentos difíceis, intensos, fortes e tocantes, tudo para poder construir a história de Raimundo com todos seus atores, alguns com papéis maiores, outros com papéis menores, tudo formando uma simples teia de acontecimentos que levaram Raimundo até o lugar no qual está atualmente: aprendendo a ler e escrever em uma idade tão avançada.

Se o senhor meu tio fosse vivo, talvez meu pai agisse diferente comigo, percebesse que homem gostar de homem não é pra ser coisa de morte, é pra ser coisa de vida, cheia de vida, era cheio de vida que eu me sentia com Cícero, e o senhor, meu tio, gostou de alguém assim? teve tempo?

Mas uma grande questão é: Por que Raimundo demorou 50 anos para decidir ler a carta? Por que ele não deixou que lessem a carta para ele antes? Por que ele resolveu aprender a ler somente agora? Todas essas perguntas vão guiando o livro e também o leitor, que vai entendendo que muitas decisões de Raimundo vão respondendo as perguntas que ficaram em aberto em seu passado. A dor do que não viveu e a sensação de que haveria bem mais para viver com Cícero parece estar contida naquela carta fechada, que nunca era revelada, assim como o que eles poderiam ter construído juntos.

Não vou esquecer a história de Raimundo e Cícero tão cedo, até porque não é a história só deles dois e é sim, a história de tantas pessoas que são massacradas por homofobia, preconceito e medo. Mas não é só a história de sofrimento, é uma história de superação, de aprendizado, de libertação. Ler não traz somente o poder a Raimundo de escolher ler ou não a carta, mas responde a escolha de formar uma nova família, a escolha de se tornar alguém melhor apesar de todas as adversidades e dores da vida.

No final, a palavra que resta é justamente a palavra que você escolhe ser dita ou não. E é isso que importa.

Ah, uma última noticia: o livro teve seus direitos de adaptação comprados e provavelmente irá se tornar um filme. Mal posso esperar para ver Raimundo e sua história na tela.

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2 comentários em “Resenha: A palavra que resta – Stênio Gardel”



  1. Ariel Rodrigues disse:

    Boa tarde.

    Eu acabo de finalizar a leitura deste livro e… eu não entendi muito bem o desfecho da carta em si.
    Ele acaba lendo a carta? A carta contava o desejo de Cícero por Raimundo? Ou o contrário?
    Ou Raimundo decide não lê-la?
    Haverá uma continuação para o livro, saberia dizer?

    Desde já, muito grato pela resposta!

    1. virna disse:

      Oi, Ariel! O final é realmente em aberto porque o que ele precisava era superar a história escolhendo deixar aquilo de lado, e ele faz isso. Se ele lê a carta ou não, depois do fim do livro, fica a cada leitor. Eu, pessoalmente, acredito que ele não leu: acho que ele decidiu viver o resto da vida com a família que ele tem e deixar no passado aquela história! O que tem na carta, nós, leitores, não sabemos e provavelmente nunca vamos saber. E, até onde sei, o autor não pretende fazer um segundo livro. Espero ter ajudado!



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