27.10


“Guardei no armário: Trajetórias, vivências e a luta por respeito à diversidade racial, social, sexual e de gênero”
Samuel Gomes
Paralela – 2020 – 304 páginas

O relato de como um jovem nascido na periferia de São Paulo superou o racismo e a homofobia para lutar pelos próprios direitos — e de muitos outros como ele —, acompanhado de diversas entrevistas com personalidades LGBTQIA+.

Samuel Gomes teve uma infância parecida com a de vários outros meninos nascidos na periferia das grandes cidades brasileiras: dividia o quintal de sua casa com muitos parentes, estudava em uma escola do bairro e via seus pais batalharem para dar um futuro melhor a ele e à sua irmã. Porém, logo começou a perceber que era diferente daqueles que o cercavam: ele sentia atração por outros meninos. Assim, o medo de ser quem é foi um fio condutor do seu amadurecimento, ainda mais por ser negro e fazer parte de uma família extremamente evangélica. Além das várias situações de racismo e discriminação que teve que enfrentar, tinha a Igreja, que não era apenas um lugar que frequentava aos domingos com sua família, mas sim uma instância onipresente em sua vida, que ditava seu modo de vestir, de se comportar, de pensar e de viver.

Foram longos anos até que pudesse entender que a vida não precisava se resumir à realidade em que nasceu, e que o que sentia não era errado nem “anormal”. Sua luta por estudo, autodescoberta e autoaceitação é narrada neste livro, junto a reflexões que ele tece sobre ser um homem negro e homossexual no Brasil. Além da história de Samuca, o livro conta com entrevistas que ele fez com personalidades LGBTQIA+ brasileiras, que abriram seus armários e compartilharam suas trajetórias para fora deles.

Ler um livro é uma coisa realmente mágica. Mágica porque é capaz de te levar para reinos e universos que nasceram da mente de autores incríveis, como também é capaz de te fazer sofrer por um romance que acontece durante as páginas – mas ler também é capaz de te fazer pensar e entender diferentes pontos de vista em nosso mundo mesmo, um mundo rico e plural, repleto de pessoas com diversas experiências. O nosso mundo é tão diversos e complexo que mesmo acreditando que somos capaz de ter empatia e nos colocarmos no lugar do outro, ainda existem relatos que nos mostram que alguns de nós, sortudos, vivem uma bolha de privilegio. E foi dessa minha bolha que eu li “Guardei no Armário” e precisei revisitar muito de minha vida e de minha trajetória enquanto lia a vida e as experiências de Samuel.

Contando desde suas mais tenras lembranças, somos apresentados a Samuca e sua família, moradores na periferia da Grande São Paulo. Sendo uma criança bastante ativa, Samuel cresceu em um ambiente familiar bastante estruturado, com pais casados e uma irmã mais velha chamada Miriã. Mas, além de estruturado, a família de Samuel era evangélica da Igreja Congregação Cristã no Brasil, e seguia os dogmas da Igreja com uma fidelidade característica dos seus membros e, claro, tudo isso trilhou o caminho o qual o autor, desde criança, enfrentava para se descobrir.

Mas algo começou a não fazer sentido. Fiz muitos amigos queridos, com famílias lindas, que eu não achava justo que fossem para o inferno só porque não eram da mesma Igreja que eu. Essa segregação, que separava os fiéis dos “mundanos” — como chamavam as pessoas que não eram da mesma fé e doutrina —, fazia cada vez menos sentido para mim. Na Igreja eu ouvia que o mundo era cruel, perverso, cheio de maldade, pecados e todo tipo de coisa ruim, e que viver uma vida fora de lá me levaria para o inferno. E quem quer viver no inferno? Quem quer sofrer mais ainda depois da morte? Isso era uma tortura, e eu era uma criança cheia de medos. Meu esforço constante desde pequeno era me livrar dessas maldições.

Visitamos a vida de Samuel por sua narrativa quase de memórias, em uma forma de escrever bastante direta e capaz de chegar a todos leitores, fazendo com que possamos realmente entender e vislumbrar o meio no qual ele crescia, uma criança negra e periférica, que se encontrava nas artes, em um meio que obviamente era sufocado pela religiosidade que permeava tudo ao seu redor. Confesso que tudo que envolveu essa parte da história de Samuel me atingiu com especial força e entender como a ideia central de ser temente à Deus pode levar algumas pessoas a serem cruéis umas com as outras acreditando que estão fazendo o que é certo. Toda a parte que o próprio Samuel, já entrando em sua vida adulta, começou a seguir fervorosamente todas as regras me fizeram entender um pouco mais como as pessoas realmente se entregam aquele universo.

Acompanhar o crescimento de Samuel e a forma como ele tentava sufocar seu verdadeiro eu por medo de não merecer o paraíso ou decepcionar seus pais é uma leitura angustiante e forte, mas, ao mesmo tempo, é bom para abrir nossos olhos e entender o que as crianças do mundo LGBT+ passam por anos, tudo para tentar “se encaixarem” e fazerem com que se tornem somente mais um tijolinho na parede (sim, eu quotei Pink Floyd aqui). A dor que você vai sentindo ao acompanhar o garoto que somente queria ser quem ele era, com seus gostos e vontades artísticas, vai se tornando mais e mais palpável, tudo enquanto o próprio Samuel, envolto em um universo aonde não tinha tantas saídas, vai trabalhando de acordo com suas oportunidades com uma ânsia grande desenvolver e aproveitar um futuro diferente do qual ele cresceu.

Ele me deu mais alguns conselhos, e, ao contrário do que eu havia imaginado, nossa conversa foi muito agradável. Naquele dia eu percebi que, embora a Igreja condene a homossexualidade, o jeito de tratar esse e outros assuntos polêmicos vai de cada pessoa. A conversa franca e respeitosa com o cooperador da Igreja foi mais um sinal de que eu estava no caminho certo. Assim, aos poucos, fui percebendo que, independentemente da fachada, a fé é minha e a certeza do amor de um Ser Supremo por mim é real. E por isso eu me sinto um cara de muita sorte.

O livro também me causou um pacto muito grande ao ler os relatos de quando Samuel entrou, pelo ProUni, em uma universidade. Ver e entender a forma como as politicas estudantis e sociais são capazes de nortear e dar uma chance a pessoas que não teriam aquela chance é extremamente necessário, ainda mais nessa fase tão controversa da história de nosso país. Foi esclarecedor poder realmente ver o impacto que toda essas politicas podem transformar e dar oportunidades para quem não se veria naquele lugar se não fossem elas. Samuel começa a levar basicamente duas vidas, depois de tanto tempo tão devoto a Igreja: começou a se afastar dos cultos, mas ainda mantêm toda a capa que esperam dele, enquanto que com seus colegas de faculdade e naquele universo bem mais liberal, ele começa a despontar sua essência e permitir viver mais e mais sua verdade.

A medida que vai amadurecendo e entendendo o mundo novo que se abriu ao redor, conhecemos um Samuel mais ciente do que queria para sua vida, decidido a não mais se recolher dentro de si e ser feliz. Todo esse processo lhe leva a uma jornada de descobrimento, fazendo o leitor entender as dores e o anseios que ele passou em sua vida. E é assim que Samuel começa a se afastar da Igreja, escolhendo seu verdadeiro eu, decidindo ser feliz e abrindo o caminho para o espaço mais emocionante do livro: o momento no qual ele precisa contar a seus pais sua verdade. Confesso que parei a leitura nessa hora porque não sou dada a chorar e eu sabia que se continuasse, iria chorar, por todos os motivos bons e tristes, tudo junto: não podemos fugir de quem somos, e também não podemos fugir das reações das pessoas que amamos a nossas verdades. É delicado, doloroso, triste, bonito e emocionante ver a família de Samuel, tão voltada a religião, descobrir e ouvir sobre ele – mas não vou te dar spoiler nenhum sobre como eles reagem, vá ler o livro e se emocionar também!

A verdade é que chega uma hora em que aprendemos que o que vale não é ser forte, mas reconhecer suas fraquezas e limites. Se naquele momento me senti derrotado ao pedir demissão, mesmo precisando do dinheiro para comprar meus remédios, hoje vejo que fiz a escolha mais sábia. A culpa não era minha, eu só tinha que ficar bem.

Depois de todo esse processo, Samuel entendeu que precisava falar mais sobre suas experiências, e assim surgiu o rascunho de “Guardei no Armário”, que primeiro foi autopublicado por ele mesmo, agora ganhando novamente as prateleiras de todo Brasil pela Parelela em uma nova edição. Ao mesmo tempo, ele também criou um canal no YouTube com o mesmo nome, e confesso que já fiquei algumas horas por lá vendo tudo (você pode ir até o canal dele e se inscrever clicando AQUI). Durante toda narrativa do livro, Samuel ainda fala sobre os processos de criação do canal e como era frustrante entender algumas coisas do seu próprio canal (o que me machucou bastante ver como um criador de conteúdo tão bom quanto ele pode se sentir desprestigiado por coisas que não tem controle). Toda, absolutamente toda, jornada do Samuel causa um impacto genuíno no leitor, o fazendo entender o quanto aquele homem merece o respeito que conquistou e, principalmente, com tanto trabalho e estudo.

O livro ainda tem diversas transcrições de depoimentos de figuras bastante conhecidas na comunidade LGBT, como Silvetty Montilla, Spartakus Santiago e Nátaly Neri, entre outros, falando sobre assuntos como sexualidade, suas vidas e suas próprias experiências, tudo para o canal de Samuel e que acrescenta ainda mais emoção a tudo que já lemos. Lendo esse livro, eu só conseguia pensar nas pessoas que viriam a ler e se identificar, e como a representatividade importa. E como importa.

Bem nessa época, tive acesso a uma pesquisa da professora Regina Dalcastagnè que mostrava dados assustadores sobre a literatura nacional. Mais de 72% dos escritores eram homens e mais de 90% eram brancos. Mais de 80% dos personagens na literatura nacional eram heterossexuais, quase 80% brancos e mais de 70% homens; e a maioria dos que não eram homens brancos tinha papel coadjuvante. Um dado ainda mais assustador é que mais de 55% dos romances não têm sequer um personagem que não seja branco. Além disso, mais de 55% dos adolescentes negros retratados nos romances brasileiros são dependentes químicos. Isso me levou ao passado, ao tempo da escola, e me fez pensar que as coisas teriam sido muito diferentes se eu tivesse tido exemplos positivos sobre ser quem sou; que a minha única referência de homem negro e gay nos anos 1990 era o Jorge Lafond; que eu nunca havia lido um livro escrito por um autor brasileiro negro, periférico ou gay.

Mostrando a realidade dura de um homem preto procurando sua identidade, a busca de Samuel ressoa em todos que leem seus relatos porque ele é simples, direto, humano, sensível, real. Quantas pessoas que passaram por toda essa batalha nós podemos conhecer? Não posso te responder isso, mas posso agradecer a Samuel por ter compartilhado a história dele comigo, e me sentir um pouco próxima do Luiz, do seu pai, da sua mãe e da Miriã, que mesmo não me conhecendo, ganharam um lugar especial em meu coração, assim como Samuel, que me mostrou que somos quem podemos ser e por mais que a busca por quem realmente somos seja demorada, no final, vai recompensar. Parabéns e sucesso, Samuel. Vou te acompanhar em todos seus passos, torcendo por você.

Para comprar “Guardei no armário” basta clicar no nome da livraria:

Amazon.
Submarino.
Travessa.
Cultura.

Arquivado nas categorias: Blog , Livros com as tags:
Postado por:
Você pode gostar de ler também
23.04
Sinopse: Conhecida como A Garota Abençoada Pela Morte, Ruying apenas quer sobreviver, mas quando ...
19.04
“A Rainha Sol” (Artefatos de Ouranos 1) Nisha J. Tuli Tradução: Guilherme Miranda Seguint...
17.04
Sinopse: Nas planícies de Yorkshire, vive uma linhagem secreta de pessoas para quem livros são a...
16.04
Sinopse: Gigi Graham tem três objetivos na vida: se classificar para a seleção nacional de hó...
12.04
“Dolores Claiborne” Stephen King Tradução: Regiane Winarski Suma – 2024 – 240 página...
09.04
Dá pra acreditar que já estamos em abril? Quase na metade do ano já (exagerada)! Vem com a gente ...

Deixe seu comentário





Siga @idrisbr no Instagram e não perca as novidades
Facebook