“Emma”
Jane Austen
Penguin-Companhia – 2020 – 694 páginas
Com uma heroína imperfeita mas encantadora, Emma é frequentemente vista como a obra mais completa de Jane Austen. Agora, em uma nova adaptação para o cinema (com roteiro de Eleanor Catton e estrelando Anya Taylor-Joy), esta história cativante volta a conquistar inúmeros corações.
Emma Woodhouse, bonita, inteligente, rica e solteira, está perfeitamente feliz com sua vida e não vê necessidade de se apaixonar ou de se casar. Nada, no entanto, a agrada mais do que interferir na vida romântica dos outros. Mas quando ela ignora as advertências do sr. Knightley e tenta arranjar um marido para sua amiga e protegida Harriet Smith, seus planos — tão cuidadosamente elaborados — não saem como ela imaginava.
Com ironia e delicadeza, Jane Austen explora em Emma as responsabilidades sociais delegadas às mulheres, a falta de controle sobre o próprio destino e, claro, a força do amor.
A edição conta com tradução de Julia Romeu, prefácio de Sandra Guardini Vasconcelos e introdução de Ronald Blythe.
Se há algo que eu posso falar que sou rendida nessa vida é a questão girl power. Desde sempre entendi que a sociedade que vivemos é extremamente machista, e vindo de uma casa de mulheres fortes, aprendi que somos capazes de fazermos tudo que queremos. Logo que entrei no mundo da leitura, entendi que Jane Austen, do seu modo, revolucionou e muito a sociedade na qual vivia. Uma mulher talentosa que não se rendeu ao lugar que muitos queriam delegar para ela, não se casou (apesar de ter aceitado um pedido de casamento e depois se arrependido), escreveu livros e viveu da forma como acreditou ser a melhor para si. Parece algo natural, certo? Mas, tenha em mente que isso era o início do século XIX. Jane morreu em 1817, aonde o papel da mulher era ser uma boa esposa, uma mãe zelosa e, no máximo, uma presença ilustre na sociedade londrina. Jane foi além disso: escreveu e colocou em palavras o seu descontentamento em histórias que hoje em dia soam como comédias do dia a dia, repletas de críticas sociais e preconceitos (sim, eu fiz essa menção). Sempre imaginei o quão maravilhoso deve ser quebrar todas essas barreiras sociais e deixar um legado que perdure todos esses séculos. Jane Austen foi, a sua maneira, uma super-heroína.
Porque sim, muito do que há hoje em dia veio dela (e também das irmãs Brontë, mas isso fica para outra resenha), da sua forma de mostrar que mulheres tinham sim, vontades e deveriam ter seu espaço em uma sociedade que era bem mais machista do que a nossa (então imaginem…). Sei que essa resenha se iniciou basicamente uma panfletagem sobre a autora, mas é que eu sinto que muito pouco se fala sobre a influência de Jane nos dias atuais. Há tantas, mas tantas adaptações de suas obras que a maior parte nem ao menos sabe sobre – sim, houve uma nova refilmagem, a qual comentarei no final dessa resenha – mas há muitas releituras que transportam as histórias do século XIX para os tempos atuais, inclusive da própria “Emma”: Sim, você sabia que “As Patricinhas de Beverly Hills” é inspirado neste livro? Pois é, Cher é Emma, e ainda há diversos outros filmes e séries que bebem nas histórias de Jane Austen, que você até pensar que podem pensar que se ressumem a mocinhas inocentes a procura do seu grande amor mas que trazem muito, muito mais, então faça um favor a você mesma e leve Jane Austen para sua vida. E, depois dessa panfletagem total, eu vou falar do livro agora. Prometo.
Emma Woodhouse, bela, inteligente e rica, com um lar confortável e uma natureza alegre, parecia reunir algumas das melhores bênçãos da vida; e vivera quase vinte e um anos no mundo com muito pouco a afligi-la ou irritá-la.
Emma Woodhouse não tem problemas em sua vida: ela é jovem, bonita, mora com o pai que muito ama e é basicamente a dona da sua casa, Hartfield (porque casas dos ricos tinham nomes, claro), na pequena cidade de Highbury. Emma tem 21 anos de idade, é rica e por isso não vê necessidade de se casar, como muitas mulheres naquela época, que procuram estabilidade financeira através do matrimônio. Mas, também por justamente ser rica, Emma tem muito tempo livre em suas mãos e, por isso, ela acredita que pode ajudar todos ao seu redor com um “pequeno empurrãozinho” na direção certa sobre suas vidas românticas – mas o problema é que quem julga a tal “direção certa” é justamente a própria Emma. Depois de fazer isso com Anne Taylor, a governanta de sua casa por 16 anos e basicamente uma figura materna para ela, a se casar com o viúvo senhor Weston, Emma está cofiante que descobriu um dom natural, e, assim, coloca sob seus cuidados a jovem Harriet Smith. Emma realmente acredita que pode fazer com a jovem que não tem um lugar na sociedade acenda socialmente através de um bom casamento, e o escolhido é o pároco Sr. Elton. As intenções de Emma são as melhores, mas, claro, o inferno está repleto delas.
Por mais que Emma acredite que tenha tudo sobre seu controle e tudo está indo muito, muito bem, vamos aprendendo mais sobre a nossa protagonista. Sim, ela é um tanto quanto mimada porque justamente é rica (ao contrário das outras heroínas de Jane Austen, que lidam com a falta de condições e, muitas vezes, sofrem com isso) e tem todo esse tempo livre em suas mãos. Muitos podem pensar que esse é um enredo fútil, mas sempre entendi como uma critica valada: a condição financeira da protagonista faz com que ela possa se jogar de cabeça nessas pequenas aventuras maquiavélicas porque não há muito o que fazer. A sua segurança em relação a sua condição financeira faz com que Emma se sinta segura em falar, com todas as letras, que não deseja se casar porque nunca se apaixonou e, por isso, não vê sentido no casamento, mas quantas mulheres precisam se casar para conseguir segurança? E justamente por isso, por não precisar se jogar de cabeça em uma empreitada para si mesma, Emma pode tentar jogar com o destino dos outros dessa forma, por melhor intencionada que esteja. E, claro, vai tudo dar errado porque não há como se meter tanto assim na vida dos outros sem tudo dar errado.
“Ah, claro!”, exclamou Emma, “é sempre incompreensível para um homem que uma mulher possa recusar um pedido de casamento. Os homens sempre imaginam que as mulheres estarão prontas para quem quer que lhes peça a mão.”
Há ainda outro fator bastante importante para Emma ser quem é: seu pai. Além de ter criado as duas filhas (Isabella e Emma) sozinho, ele é hipocondríaco e claramente tem muito medo de morrer sozinho, o que afeta seus comentários que sempre deixam bastante claro todo esses medos. Emma, como filha mais nova, acredita que é seu destino ficar com o pai e cuidar dele na velhice, até mesmo porque Isabella já está casada com John Knightley. Completando o núcleo bastante ligado a Emma, temos George Knightley, o irmão mais velho de John que é bastante próximo de Emma e que parece ser a única voz sensata capaz de fazer Emma parar um segundo, mesmo que ela continue teimando em seus pontos de vistas, mas ele tem a coragem de falar o que ela precisa ouvir. Quando vê a proximidade de Emma com o Sr. Elton, ele a recrimina e escuta Emma lhe contar seus segredos, o fazendo ficar bastante irado já como incentivou Robert Martin a pedir a mão de Harriet. Claro que Harriet é bastante influenciada por Emma e nega o pedido, o que te faz entender que aquilo tudo vai terminar mesmo dando muito, muito errado porque a garota está sendo tomada por delírios de grandeza incentivada por Emma, que não estava entendendo realmente como a sociedade ao redor dela estava se movendo justamente (mais uma vez) seu lugar já está muito bem definido. Mas o lugar dela não é o mesmo no qual Harriet se encontra.
Então há o retorno de Jane Fairfax a cidade, basicamente a garota que Emma acredita ser sua antagonista. Bonita, delicada e bastante inteligente, Jane também tem um espaço de distância que Emma acredita ser devido a outra se sentir superior do que ela. Como se não bastasse, temos também e adição de Frank Churchill, o filho do 1º casamento do Sr. Weston, que está de volta a pequena cidade para visitas o marido e também outros motivos a princípio ocultos. Emma, pela primeira vez, acredita que pode se envolver com alguém e se apaixonar, julgando que a atenção que o homem lhe endereça é interesse romântico – e aqui acho um dos melhores paralelos do livro porque é basicamente o que acontece com o Sr. Elton, só que o inverso: enquanto Elton acredita que Emma está lhe ofertando atenção por ela mesma desejar se casar com ele, Emma também acredita que a atenção que Frank está lhe dando é por interesse dele… nela. E pronto, temos uma grande confusão instaurada.
”Aqui estamos, saindo para passar cinco horas enfadonhas na casa de outro homem, sem nada para dizer ou ouvir que não tenha sido dito e ouvido ontem ou que não possa ser dito e ouvido amanhã.”
As situações que acontecem a partir do momento que nossa protagonista entende a confusão na qual está a fazem amadurecer e esse é outro ponto mais do que forte no livro, já como temos no começo uma Emma leve, desprendida, que leva tudo com bastante frivolidade, a uma Emma mais consciente sim de que ela não pode mexer com a vida, desejos e sentimentos dos outros de uma forma que conduza os destinos dela. Emma não julga as pessoas por quem elas aparentam para ela, mas pela ideia que formou em sua cabeça, o que claramente causa boa parte da confusão na qual estamos nessa altura da narrativa. Há diversos momentos que são engraçados, mas há também aquela sensação de tristeza de vermos o quão engessados todos precisam ser e estar em épocas mais antigas de nossa sociedade.
E é aqui que eu aponto, novamente, um dos grandes trunfos de “Emma” (e da narrativa de Jane Austen, no geral): assim como em seu romance mais famoso, “Orgulho e Preconceito” (e no meu livro favorito da autora, “Razão e Sensibilidade”), temos protagonistas femininas fortes que crescem com seu sofrimento e seus erros. Apesar do sofrimento que semeia as páginas de “Emma” serem, por ventura, mais leves do que em seus outros livros, Jane mostra exatamente o quanto a descoberta de um amor e a ideia de perder quem se ama é capaz de mudar alguém, até mesmo a mais leve e despretensiosa das criaturas. Emma se torna mais madura ao passo que a narrativa vai chegando ao fim, mostrando o potencial que ela sempre teve de ser alguém capaz de ajudar todos ao seu redor sem esperar nada em troca e até mesmo sua conhecida e famosa teimosa se desacentua no final.
“Eu não tenho nenhum dos incentivos que as mulheres costumam ter para se casar. Se me apaixonasse, com efeito, seria diferente! Mas nunca me apaixonei; esse não é o meu jeito ou a minha natureza; e acho que isso jamais acontecerá. E, sem amor, decerto seria tola de alterar uma situação como a minha. Não me falta dinheiro, nem ocupação, nem posição; acredito que poucas mulheres casadas sejam tão senhoras da casa dos maridos quanto eu sou de Hartfield; e jamais, jamais poderia esperar ser tão verdadeiramente amada e importante, ser sempre a primeira e estar sempre certa aos olhos de qualquer homem como sou e estou aos olhos do meu pai.”
Como falei que comentaria mais adianta nessa resenha, também aproveitei para assistir a versão deste ano de “Emma” (porque há diversas versões, já mencionei isso). Aqui temos Anya Taylor-Joy como a protagonista, trazendo todo atrevimento que não há tanto em sua versão escrita, contando ainda com Johnny Flynn como Sr. Knightley. Há, obviamente, algumas mudanças do livro, mas também há frases exatas que estão na versão original, como, por exemplo, a frase inicial que também consta nessa resenha e há ainda a grande declaração de amor que acontece – e não falarei entre quais personagens por motivos óbvios. Apesar de ter gostado bastante dessa versão (que contam com um ponto final no nome, se tornando “Emma.”), confesso que a minha versão favorita ainda é o seriado da BBC com Romola Garai como a personagem título e Jonny Lee Miller como o Sr. Knightley, sendo de 2009 e tem somente 4 episódios, rápido de assistir e muito, muito fiel. Ainda tem a versão de 1996 com Gwyneth Paltrow como Emma e Ewan McGregor como Frank Churchill que foi a primeira versão da história que assisti e tem um lugar afetivo em meu coração. Se você assistir qualquer uma dessas versões, eu tenho certeza que você irá gostar.
Já tinha lido o livro há muitos e muitos anos atrás, e agora li a versão em e-book cedida pelos nossos parceiros da Companhia das Letras pelo selo Penguin-Companhia, que completou 10 anos, que contam com um prefácio da professora da USP Sandra Guardini Vasconcelos e ainda uma introdução do escritor Ronald Blythe, que juntas formam com um livro uma experiência completa de leitura. Foi ótimo ter mais informações sobre a vida de Jane Austen e também sobre suas obras, então, para qualquer pessoa que gosta e acredita no poder de escrita de Jane Austen, vale a pena ler tudo, mesmo que você já tenha lido a obra original. Não encontrei nenhum erro de digitação em lugar nenhum no livro, então não há como não se dá uma nota máxima em toda essa leitura pelo combo: qualidade do livro, o prefácio, a introdução traduzida e a edição perfeitamente editada.
No final, se depois de toda essa panfletagem sobre Jane Austen e suas histórias, você ainda não se sentir nem levemente tentado a dar uma chance e conhecer mais o universo dos seus livros, eu preciso então só terminar com uma quote que acontece já no quarto final do livro (e que mencionei acima) entre dois personagens, mas que poderia ter sido de mim para a própria Jane Austen:
“Se eu a amasse menos, talvez conseguisse falar mais no assunto.”
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Mudar o gênero do croupier de um jogo não torna os participantes de uma mesa mais iguais, não é esta a finalidade do jogo. No poker para que alguém ganhe outro tem que perder. As regras do poder se assemelham às regras do poker.
Emma tem poder por ser bonita, inteligente e rica, daí a independência. Mas não tem empatia pelas pessoas que a servem e humilha outras mulheres, principalmente se forem pobres. Me parece que os únicos valores que defende são os dela próprios. Não vejo diferença entre a atitude de Emma e a de um recente deputado que sentia-se no direito de se aproveitar de pessoas pobres, por serem mais fáceis.
“Defendo o feminismo para que as mulheres possam exercer livremente os mesmos erros que os homens”. Não, não sei de onde me veio a frase. Mas, percebam, o jogo não muda. Há alguém que domina e alguém que é dominado. Um senhor e um cativo. A luta é só para decidir quem vai empunhar o açoite.
O respeito vem com a igualdade, esta é a bandeira a ser erguida. Entre iguais não há espaço para feminismo, machismo ou vocabulário neutro simplesmente porque não é necessário. A gente se mede naquilo que se assemelha e os espíritos ascendem. Enaltecer as diferenças é contribuir com a entropia.
A leitura que eu faço da obra de Jane Austin é a de uma crítica ácida à sociedade do seu tempo, que passa despercebida ao leitor menos atento pois amenizada por um fino humor, próprio das pessoas inteligentes.
O humor inteligente ainda é, na minha opinião, a melhor forma de crítica. Mas também posso estar errado.