30.05

“Todas as Coisas belas”
Matthew Quick
Intrínseca – 2018 – 272 páginas

Você é livre para ser quem quiser — mesmo que isso tenha um preço.

Aos 18 anos, Nanette O’Hare é a típica boa garota. No fundo, porém, ela nunca se sentiu realmente parte do grupo, sufocando em um permanente desconforto com diversas atitudes das amigas e com os padrões sociais. Mas tudo muda quando, no último ano do colégio, ela ganha um livro de seu professor preferido, o clássico cult O ceifador de chicletes, e fica fascinada com a mensagem de que ela pode ser de fato quem é. Nanette se torna amiga do recluso autor e se apaixona por Alex, um jovem poeta que também é fã do livro. Encantada com esse novo mundo que se abre, ela se permite, pela primeira vez, tomar as próprias decisões. No entanto, aos poucos Nanette percebe que a liberdade pode ser um desejo arriscado e começa a se perguntar se a rebeldia não cobra um preço alto demais.

Eu pensei bastante antes de começar a escrever essa resenha porque ela vai vir em um tom muito pessoal e isso pode ter seu lado bom, mas também nos torna mais sensíveis para toda a situação. Sim, “Todas as Coisas Belas” é esse tipo de livro: aquele tipo de livro que você termina e carrega com você o resto de seus dias. Antes de realmente começar a falar dele, quero deixar claro que há gatilhos, então para quem comprar o livro e ler, existem gatilhos (mas não nessa resenha!):

GATILHOS E ASSUNTOS SENSIVEIS/TRIGGER WARNING: Depressão, ansiedade, comportamento errático e perda.

Nanete O’Hara é uma boa garota: com notas boas na escola, sem problemas de comportamento, sem dar trabalho para seus pais, titular do time de futebol da escola que provavelmente lhe dará uma bolsa para a faculdade. A vida da garota parece estar bastante planejada e nos conformes, tudo bem como deveria ser. Mas só parece mesmo: Nanete se sente estranha em sua própria pele – é como se ela estivesse vivendo algo que ela não quer, mas ela não quer decepcionar ninguém, então se condiciona a continuar fazendo tudo aquilo que é esperado dela.

Como todo bom livro, algo inesperado acontece: seu professor favorito, o Senhor Graves, lhe dá um livro cult chamado “O ceifador de chicletes”, e assim como vai acontecendo a medida que você vai lendo e se identificando, o livro vai mudando a personagem, que começa a se questionar a importância e o peso de suas atitudes para sua vida e para quem ela quer realmente ser. O livro desencadeia um comportamento mais intenso de Nanete, que decide conhecer o autor daquele livro (e aqui um parêntese: quando li o livro, achei essa parte parecida com “A Culpa é das Estrelas”, porque o livro dentro do livro é um cult, não mais publicado, com um autor recluso, mas não se engane: as similaridades são essas e para por ai). Nigel Booker, o autor, é um velhinho bastante peculiar, e do pior tipo: não aceita falar sobre o livro porque, segundo ele, o livro termina causando coisas horríveis em algumas pessoas, e não como se fosse uma maldição, mas sim pelo impacto causado nelas depois de lerem o livro.

Talvez aquilo fosse um problema da literatura: ela fazia sentido apenas no abstrato, não oferecia ajuda na vida real, que exigia muito mais coragem do que o necessário para virar páginas sozinho, escondido do mundo num canto, na cama, debaixo de uma árvore.

Booker termina apresentando Nanete para Alex, outro rapaz que leu seu livro e está ainda sob o efeito que um livro pode provocar na vida das pessoas. Claro que aqui nascerá mais do que uma amizade, mas o livro não se prende ao romance juvenil: o texto está aqui pra te fazer pensar, pra te incomodar, pra tentar fazer você entender que tudo bem se você não for o exemplo que você supostamente deveria seguir.

Nanete e Alex são dois personagens que foram afetados profundamente por um livro, e aqui começa os paralelos de nossas vidas: quem já foi afeitado profundamente por um livro vai se identificar com os personagens a forma como eles entenderam e pensam sobre o livro dentro do livro – adoro isso. Os dois passam por mudanças em suas vidas, são adolescentes tentando encontrar seu lugar e suas vozes, e eu gostaria demais de ter lido esse livro quando estava nessa fase, porque um dos principais pontos dele é que não devemos ser quem esperam que sejamos e que crescer… dói. Dói muito.

— Por que não me dá uma resposta direta?
— Porque isso não existe. É o que se aprende quando crescemos. Ninguém sabe a resposta. Ninguém.

O comportamento errático de Alex mostra que há muito mais nele do que somente a transformação que o livro causou em Nanete, por exemplo, e isso se reflete também em Oliver, um garoto mais novo que sofre bullying e Alex apadrinhou. O mundo construído por Alex envolve poesia e música (e ah, nota pra vocês: todas as músicas e bandas mencionadas no livro são reais e você pode encontrá-las no Spotify. Não conhecia as bandas, então fica mais essa dica aqui!), por onde ele fala sobre si mesmo e como vê o mundo, mas também envolve atitudes impensadas, um turbilhão de pensamentos e sensações que é capaz de carregar tudo ao seu redor. Acho que por isso que Alex é um personagem tão fascinante: nunca realmente conseguimos ir até o fundo de sua mente. Já Nanete é a personificação da personagem que está tentando se encontrar, tomando suas próprias escolhas e se apoiando em tudo que lhe parece profundo. Claro que a receita aqui vai levar ao desastre e o desenrolar e me surpreendeu, confesso.

O livro é dividido em duas partes porque claro que um grande fato divide a estória em duas, por assim dizer, e o peso do “Ceifador de Chicletes” (o tal “livro dentro do livro”) vai se tornando mais e mais evidente. Entendemos que alguns livros tem realmente o poder de nos mudar de fora pra dentro, como aconteceu com os dois personagens principais do livro. Um livro, quando lhe dá o poder de questionar e do conhecimento, é capaz de transformar tudo ao seu redor.

A leitura ajuda Nanette a entender um pouco por que a maioria das pessoas é conformista — faz o que lhe mandam fazer. Às vezes se paga caro pela individualidade, ainda mais quando se é mulher.

Mas Nanete muda profundamente durante o livro, passando por basicamente 3 fases: a Nanete que queriam que ela fosse; a Nanete que estava se descobrindo e a Nanete que foi ferida pela vida e precisa aprender quem realmente é. Acho que quase todos, em algum ponto da vida, chegam na terceira fase de Nanete, porque é isso que é a vida: aprender a ser você, mesmo depois de machucada. Os problemas emocionais da personagem vão ficando mais e mais evidentes a medida que ela tenta se distancias de si mesma e se sente mais estranha ainda dentro de sua pele, vestindo uma capa que tenta lhe proteger de toda dor que lhe faz questionar tudo, de seus pais a sua própria vida. É a velha máxima do crescimento, da passagem da vida adolescente para a vida adulta, e por mais que a gente procure uma receita pra sofrer o mínimo possível, não conseguimos encontrar. Não há como fugir de crescer; portanto, não há como fugir de sofrer.

A parte final do livro é realmente dolorosa de se ler. Esmagada com o peso de tudo que aconteceu ao seu redor, além da pressão que coloca em cima de si mesma sobre as expectativas dos seus pais em cima dela e a aceitação de fazer terapia, Nanete começa a se afastar de si mesma, tentando encontrar um esconderijo de tudo que estava acontecendo, tudo em vão. Ela não está sendo ela mesma, e por mais difícil que seja, é isso que a vida ás vezes requer de nós: os “com jeitos estranhos”, os “fora dos padrões”, os “esquisitos”: eles precisam respirar e se aceitar, coisa que parece impossível até certa altura de nossas vidas. O livro tem uma das cenas mais tocantes que já li entre mãe e filha, a constatação de que nunca seremos o que esperam de nós, mas podemos e devemos lutar para tentar encontrar o nosso lugar nesse mundo grande. Falo sempre como “nós” porque eu entendi a luta de Nanete por encontrar quem era, a luta por respostas que nunca vieram, a vontade de se aceitar, a vontade de se anular pra poder fazer parte e a dor que é fazer de conta que somos outra pessoa.

Mais tarde, no meu quarto, procurei no dicionário a palavra obtuso.
Uma das acepções é a que falta nitidez; confuso.
Talvez eu fosse obtusa.

Indico esse livro pra todas as pessoas que desejarem ler algo que dói. As pessoas que procuram algo para ler e se identificar porque não encontram seu lugar em um mundo repleto de padrões e que se você não está nele, você é automaticamente rejeitado. As pessoas que não desejam ser outras pessoas. Vamos brindar a todos que tentam se encontrar, porque um dia, todos nós iremos, mesmo que isso aconteça em páginas de livros.

Bônus: O nome do livro em inglês é “Every Exquisite Thing“, o mesmo nome do próximo conto de Cassandra Clare no projeto “Fantasmas dos Mercado das Sombras“. A frase é de Oscar Wild: ‘Behind every exquisite thing that existed, there was something tragic.’, no livro Dorian Gray.

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Submarino, por R$ 27,90.
Livraria Cultura, por R$ 29,90.
Martins Fontes, por R$ 33,15 com o cupom AFILIADOSRAKUTEN5.

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4 comentários em “Resenha: Todas as Coisas Belas – Matthew Quick”



  1. Olá
    Eu adorei tanto esse livro. Achei a leitura incrível, tão pesado e tão maravilhoso de tantas formas que nem sei explicar. Lindo.

    Vidas em Preto e Branco

    1. virna disse:

      Oi, Lary! obrigada por seu comentário! Esse livro me marcou demais ano passado e eu ainda me lembro dele com aquele conhecido aperto no peito. Delicado e doloroso, eu indico ele para todas as pessoas que gostam de ler sobre saúde mental. Fico feliz que você tenha se sentindo assim também <3

  2. Natália disse:

    Olá, a mensagem que o livro transmite é incrível! Agora tenho uma dúvida, o ceifador de chicletes realmente existe?

    1. virna disse:

      Oi, Natália! Fico muito feliz que você também ama esse livro <3
      Não, o "Ceifador de Chicletes" só existe mesmo dentro do livro, mas todas músicas são reais =)



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