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Resenha: A pele em flor – Vinícius Neves Mariano

“A pele em flor”
Vinícius Neves Mariano
Arte de Capa: Oga Mendonça
Alfaguara – 2025 – 136 páginas

Em A pele em flor, Vinícius Neves Mariano conduz seus personagens por trajetórias das quais eles emergem com uma nova consciência, prontos para florescer em direção a um novo futuro.

No conto de abertura do volume, Vinícius ― o narrador que se confunde com o escritor ― testemunha no café de uma livraria uma funcionária negra ser humilhada porque errou o pedido. Perplexo, ele ouve o amigo Henrique, que também presencia a cena, explicar o ocorrido como sintoma de uma doença: o “mal do senhor”. Vinícius decide, então, investigar essa grave mazela que, assim como a narrativa do conto, entrelaça realidade e fabulação.

Em “Fawohodie”, uma releitura brilhante e provocativa do Aleph de Borges, Mariano questiona não só o que é digno do cânone literário, mas quem pode ocupar esse posto e quais temas são pertinentes na chamada “alta literatura”.

As tradições e heranças culturais e simbólicas são a chave para os personagens de A pele em flor entenderem suas emoções e construírem seu lugar no mundo. Na busca pela própria individualidade, eles encontram ressonância no coletivo.

“A pele em flor” foi meu primeiro contato com a escrita de Vinícius Neves Mariano, o terceiro livro do autor, temos o seu primeiro na Alfagara. Quando a oportunidade de ler o livro e conversar com o autor surgiu, não hesitei depois de ler a sinopse porque imaginei saber o que me esperava, mas não fui capaz de prever a profundidade o que este livro com 6 contos trazem – e que boa surpresa foi esta que me chegou. Em algumas resenhas do ano passado, afirmei que a literatura nacional passa por uma fase incrível, com diversos autores que precisamos acompanhar, e Vinícius definitivamente faz parte desta leva. Todos os contos desta antologia trazem a cor da pele em seu centro, seja em seus personagens principais, seja a motivação para esconder o que estava acontecendo em seus relacionamentos amorosos ou familiares. A cor aqui importa, e importa de uma forma que te mostra que vai importar pra você também.

O desenvolvimento coletivo desses arquétipos ocorreu ao longo da escravidão e é possível compreender uma relação de interdependência entre eles: a alma alva só reconhece sua própria humanidade porque o subser não é humano — isto é, a imagem do subser violentado, massacrado, humilhado é o que humaniza a alma alva. Algo como: “Sou humano porque o que acontece com eles (subseres) jamais poderia acontecer comigo”.
Feita a exposição dos arquétipos no imaginário escravocrata brasileiro, os autores apontam uma ruptura psíquica que viria a definir muitas das relações sociais inter-raciais no Brasil pós-abolição: se antes do Treze de Maio a violência ancestral dos brancos era reconhecida e legitimada pelo Estado, o que acontece com essa pulsão cruel e hereditária quando ela não é mais legalizada?
Os autores respondem: o mal do senhor.

Quando comecei “Mal do Senhor”, não podia prever, de forma alguma, um conto tão simples e tão brutal, que iria diretamente ao ponto que tanto vemos no dia a dia ai fora: o racismo estrutural, a sociedade que nos ensinou qual o lugar que cada pessoa deve ocupar se baseando em seu tom de pele. O jovem homem protagonista neste conto – que você pode até pensar se tratar do próprio Vinícius – vai a um café bater papo e encontrar seu amigo também escritor – se você ler a sinopse completa deste livro já terá uma surpresa ao ler este conto – quando se deparam com uma cena ingrata, grotesca e cruel: uma mulher branca humilha a jovem preta que lhe serviu o café. Indignada com a troca do seu pedido, a mulher chega a ir embora pedindo que a moça seja demitida. Aquela cena faz o escritor falar o termo que dá titulo a este conto para o narrador. Confesso que não o conhecia, mas agora que o conheço, parece impossível fechar os olhos ao que aprendi.

Tudo neste conto é compassado, forte e direto, mostrando nuances e pensamentos que não são organicamente ensinados à todas pessoas terem assim que veem uma cena horrenda como aquela. A narrativa, sendo um conto, parece terminar no momento mais do que certo, com um tom alto que o acompanhou por todas as páginas. Logo depois temos “Subúrbio da solidão”, uma ode à religião e uma metáfora sobre os que vão e os que são tirados de nossas vidas, em uma narrativa repleta de pequenos momentos que deixam o leitor entregue ao que sente.

Ele estava pegando um café quando ela entrou na copa. Impossível não se notarem. No colégio, foi o único da sala; na faculdade, o único da turma; no estágio, na consultoria, no prédio moderninho e paranoico, também; que bom descobrir que não é mais o único na construtora. Cibele deve ter pensado o mesmo porque, assim que o viu, acenou com um olhar apertado, mas muito vivo.

Mas foi em “Engenharia”, o maior conto do livro e que é dividido em partes, nove no total, que me peguei chorando com a história de um jovem engenheiro que irá encontrar a namorada por quem está profundamente apaixonado. Morando no interior, o leitor é enganado desde o começo, quando se espera que aconteça uma coisa e nos é entregue outra, nos levando a acompanhar a mudança do jovem para São Paulo. Formado em engenharia, algo aconteceu a ponto de o fazer se afastar de seu sonho de se tornar Engenheiro hidráulico de alguma grande construção e se jogar no trabalho com consultoria de estatísticas. Levado por essas ondas, em uma cidade para qual se mudou sem emprego e que parece não saber seu rumo, mas sua mãe, mulher forte e que realmente o preparou para a vida, sabe. Temos aqui um conto que começa sem pontuação, sem pausa, sem tempo para respirar, confuso, um verdadeiro conto sobre a cor da pele, sobre relacionamentos, sobre expectativas da faculdade, sobre relacionamento com os pais, sobre fracassar e suceder, tudo em uma única narrativa que faz todo o sentido no final – há!

Ossos no quintal” também é dividido em partes, mas aqui para nos contar uma história sobre a escravidão e a forma como muitos segredos tentam ser empurrados para baixo do tapete com todas as forças. Me peguei odiando muitos personagens aqui, e acredito que qualquer um de vocês que lerem, também odiarão porque não podemos enterrar nosso passado: temos de ser melhores, precisamos germinar esta semente que fica conosco depois de ler algo tão potente quanto estes contos. Os nomes das personagens se repetem ao longo dos séculos justamente porque é uma história de tentar apagar e fazer com que esquecemos o nosso passado, mas não há como fazer isso, nem devemos.

A conversa flui sem barreiras. Elmira se expressa muito bem e domina a mensagem que deseja passar; está acostumada a falar com a imprensa. No dia 14 de novembro vai oferecer um jantar beneficente no casarão da família, que em agosto completou cento e trinta e oito anos. Larissa assegura que esse será o lead da matéria e então pergunta: “A senhora é uma das maiores benfeitoras do Brasil. Como a filantropia se tornou parte da sua vida?”. Quando começou naquele emprego, costumava questionar as perguntas que o chefe indicava como obrigatórias; ainda sonhava em desenterrar uma história fantástica, e para isso são necessárias perguntas mais perspicazes. Baixa o olhar para o caderno e risca a pergunta, como se o gesto também eliminasse da pauta a vergonha que sente ao fazê-la. Elmira conta que solidariedade, gratidão e retribuição são valores que aprendeu dentro de casa desde cedo. Explica que cresceu acompanhando a mãe e a avó em campanhas de caridade pelo bairro. Além disso, sempre ouviu o pai dizer que toda pessoa com a sorte de estar em uma posição privilegiada precisa ajudar o próximo. “São valores cristãos, acima de tudo”, conclui.

Fawohodie” é o conto mais poderoso de todos, com toda certeza. Confesso também, em minha ignorância, que não conhecia o termo usado para o titulo do conto, e foi lendo que o pesquisei e descobri que é um simbolo de liberdade ou independência e que reflete a responsabilidade que vem com (definição adaptada do inglês deste post, onde vocês podem ver o simbolo também). Ana Rita, a prima do protagonista Vinícius, preta retinta que parece ainda não se dar conta da forma como nossa sociedade é maquinada para fazer com que não vejamos como a meritocracia jamais será igualitária e não funcionará, me causou bastante revoltada em alguns momentos, refletindo falas que cansamos de ver ao longo de nossas vidas. Um conto capaz de entrar embaixo da sua pele e lhe mostrar as verdades mais cruas das quais você tente se esconder.

Como já deixei claro, Vinícius Neves Mariano é um autor para se ficar de olho. Também roteirista e já finalista do prêmio Jabuti, dono de uma voz potente e de uma escrita tão forte quanto sua voz, entrega um livro com contos necessários para você entender melhor a pele e a delicadeza que há nela, mas também uma força muito maior do que imaginamos. E se você se questiona sobre o sexto conto… bem, talvez ele seja um conto. Ou não. Seja como força, você precisa ler e entender o poder que há em chamar atenção para consciência social, nos lembrando que sempre podemos evoluir e um dia entenderemos que a pele tem poder.

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