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Resenha: Revival – Stephen King


“Revival”
Stephen King
Tradução: Michel Teixeira
Suma – 2015 – 376 páginas

Em uma cidadezinha na Nova Inglaterra, mais de meio século atrás, uma sombra recai sobre um menino que brinca com seus soldadinhos de plástico no quintal. Jamie Morton olha para o alto e se depara com a figura impressionante do novo pastor da cidade, Charles Jacobs. Em pouco tempo, como todos à sua volta, Jamie fica encantado pelos sermões contagiantes do reverendo. Até que, um dia, uma desgraça atinge Jacobs e o faz ser banido da cidade.

Muito tempo depois, Jamie se vê com trinta e poucos anos, carregando seus próprios demônios. Integrante de uma banda que vive na estrada, ele leva uma vida nômade, fugindo da própria tragédia familiar. Viciado em heroína, perdido, desesperado, Jamie acaba reencontrando o antigo pastor. O elo que os unia se transforma em um pacto que assustaria até o diabo, e é então que Jamie percebe que reviver pode adquirir vários significados.

Acho que uma das coisas que mais me incomoda sobre a fama de Stephen King é de que ele é um ator voltado para o terror porque tenho plena certeza (assim como milhares de pessoas ao redor do mundo) que King já conquistou muito mais do que somente um gênero literário, escrevendo histórias que transitam entre tantos outros gêneros – cito “Billy Summers”, “Misery” e o meu favorito “Dolores Claiborne” como exemplos de livros que não tratam do sobrenatural (você pode ler a resenha deles sem spoilers clicando AQUI)– mas que, ainda assim, este homem de atuais 77 anos conseguiu transpor do que poderiam ser somente histórias que ressoariam nas pessoas porque as palavras dele, em cada uma dessas tramas, encontra ecos e vivências em diversos pontos nas vidas dos leitores ao redor do mundo.

Sim, “Revival” tem elementos sobrenaturais e de terror. Sim, “Revival” flerta com o gore em algumas cenas. Sim, “Revival” é uma história sobre tragédias e monstros – não necessariamente fora da humanidade. Mas essencialmente, “Revival” é um livro sobre a fé – sim, a fé. O que acontece quando temos a fé no centro de nossa vida, como um pilar fundamental, e então uma fatalidade tão grande acontece que nos rouba aquela coisa que nos motiva, que nos impulsa para a frente – e pior, quando essa “coisa” são pessoas? O que fazer quando perdemos a fé de que há uma força boa (literalmente boa) muito maior do que compreendemos ai fora nos guiando e criamos a certeza de que podemos fazer o que quisermos que não haverá consequências, seja destruindo a vida de alguém a usando como objeto de uma experiência, seja usando a fé destas pessoas. Se você parar para pensar como este livro me fez pensar, muito da humanidade é guiada pelas leis da sociedade e pela fé, o medo das consequências de nossos atos sempre guiando nossos passos – e quando perdemos tudo isso?

Às vezes, porém, entra em nossa vida alguém que não se encaixa em nenhuma dessas categorias. É o palhaço de mola que pula da caixinha vez por outra ao longo dos anos, não raro durante momentos de crise. No cinema americano, esse alguém é chamado de quinto personagem, ou agente de mudança. Quando ele surge em um filme, dá para saber que foi o roteirista quem o pôs ali. Mas e o roteiro da nossa vida? Quem escreve? O destino ou o acaso? Quero acreditar que seja o último. Quero mesmo, do fundo do coração. Quando penso em Charles Jacobs — meu quinto personagem, meu agente de mudança, minha Nêmesis —, não ouso acreditar que a presença dele em minha vida tenha qualquer ligação com o destino, pois isso significaria que todas aquelas circunstâncias terríveis — aqueles horrores — estavam fadadas a acontecer. Se for assim, a luz não existe, e nossa crença nela é mera ilusão. Se for assim, vivemos na escuridão, como animais em uma toca, como formigas nas profundezas de suas colônias.
E não estamos sós.

Nesta trama acompanhamos a vida de James “Jamie” Morton, filho mais novo do casal Laura e Dick Morton, com 4 irmãos mais velhos: Claire, Andy, Terry e Con. Com uma vida boa e simples, com pais preocupados e amorosos, a vida do pequeno Jamie ia muito bem. Brincando com um presente que sua irmã mais velha lhe deu, aos 6 anos, entraria em sua vida alguém que o acompanharia em diversos pontos diversos de sua vida: o Pastor Charles Daniel Jacobs. O homem parecia ter uma afeição especial por James, a quem mostrou pequenos projetos com eletricidade que tinha – fazer um boneco Jesus andar sobre as águas e coisas pequenas assim. O Pastor era casado com Patsy e tinha um filhinho chamado Morrie. Uma típica família pilar da sociedade, respeitada e benquista. Por 3 anos, a família continuou assim, até mesmo com o Pastor ajudando Con quando o irmão de Jamie perdeu a voz em um acidente de esqui. Até que uma tragédia, como bem menciona a sinopse, acontece. E é ai que o terror começa, mas não pelo sobrenatural e sim pela própria comunidade.

Patsy e Morrie morrem em um acidente horrendo de carro causada por um homem que infelizmente teve uma convulsão ao dirigir. A cena é digna de filme de terror e olha que King sequer descreve o que a mulher e o filho passam, somente mostrando o acidente pelo ponto de vista de uma senha que dirigia e para seu carro para ajudar a mulher acidentada e mutilada e seu filho moribundo em seus braços. A partir dai, Charles obviamente começa a perder o rumo, culminando em um fatídico dia que faz um sermão tão repleto de absurdos (na visão da pequena comunidade cristã) que se torna conhecido como “Sermão Terrível”. Claro que a comunidade se volta contra o pastor, mostrando sempre o pior do ser humano, e sei que já falei isso em outras resenhas, mas o pior monstro dos humanos são os próprios humanos. Ninguém consegue ser tão cruel e vil quanto nossos próprios pares, capaz de trazer a tona o que há de pior de todos, sem compaixão por alguém que já está sofrendo e no pior momento de sua vida. E isso sim, me assusta mais do que qualquer demônio, et palhaço assassino ou entidades.

— Acho que não é preciso entrar em mais detalhes, mencionando os incêndios, terremotos, revoltas e assassinatos, mas eu poderia. O mundo é sacudido por acontecimentos assim. No entanto, ler essas histórias me deu algum conforto, porque elas provam que não estou sozinho em meu sofrimento. O conforto é pequeno, no entanto, porque essas mortes, como as da minha mulher e do meu filho, parecem cruéis e excêntricas. Segundo nos dizem, Cristo subiu aos céus em seu corpo, mas é comum que nós, pobres mortais aqui da terra, sejamos deixados com horrorosos pedaços de carne mutilada e uma pergunta renitente, que não para de reverberar: por quê? Por quê? Por quê?

A história não para ai – Jamie tem apenas 9 anos ai e vamos companhá-lo até se tornar um homem adulto,passando por diversas fases da vida dele, o que mostra a construção narrativa desta trama: é cronológica, mas há diversos pontos em que retroage ou acelera para adicionar elementos que fazem parte diretamente de toda narrativa, como, por exemplo, o Sermão Terrível completo. A vida separa Charles e Jamie nesta idade, mas o destino volta a fazer com que eles se encontrem quando o garoto já é um adulto, viciado em drogas, guiado por um trauma familiar horrendo que não sabe realmente lidar com, deixando o leitor a pergunta sobre quem conseguiria lidar com algo daquele nível. Tendo sido deixado para trás por sua banda, já como não estava comparecendo aos ensaios e apresentações de tão chapado, Jamie se vê andando por uma cidade do interior que está tendo uma feira. E lá estava Charles Jacobs, agora chamado simplesmente de Dan, seu nome do meio. O homem tão bom e calmo outrora parecia continuar assim, mas agora fazia algum “truque mágico” que envolvia eletricidade, mas nem mesmo todos aqueles anos o fizeram não reconhecer o jovem pelo qual já teve tanta afeição.

Vendo o estado de Jamie, Charles – ou Dan, como você preferir – o ajuda com seu experimento que é baseado em eletricidade. Sem realmente acreditar que algo assim realmente poderia dar tão certo, Jamie aceita e tem sua vida mudada de uma forma que não esperava. Há algum efeito colateral pequeno, mas a afeição de Charles por Jamie é sincera, mesmo quando o deixa para trás. Refazendo sua vida, mais uma porção de anos se passa e acredito que chega de falar sobre a trama porque já contei até demais, apesar de não dar detalhes demais, mas, como vocês podem imaginar, uma trama que acontece ao longo de tantos anos, há muito mais na trama que não foi mencionado aqui. No final, o que acontece é a vida, da pior forma como se pode imaginar, com suas tragédias, dores e felicidades, trazendo e levando pessoas ao nosso redor. E algo maior também acontecendo: Charles.

Só mais uma coisa. Nós viemos do mistério, e é para o mistério que vamos. Talvez exista alguma coisa lá, mas aposto que não é Deus como qualquer igreja O entende. Basta ver a ladainha de crenças conflitantes para perceber. Uma cancela a outra, e não resta nada. Se quiserem a verdade, um poder maior que vocês, olhem para o raio, um bilhão de volts, cem mil amperes de corrente e temperaturas de mais de vinte e cinco mil graus Celsius. Isso é um poder superior, eu garanto. Mas aqui, neste prédio? Não. Acreditem no que quiserem, mas digo a vocês: por trás do espelho em enigma de são Paulo, não há nada além de uma mentira.

As 100 primeiras páginas deste livro que se passa no Kingverso (com direito a menção a Castle Rock!) são, definitivamente, com toda certeza do mundo, meu top 3 de livros na vida. O livro inteiro é uma trama que te mostra o poder da fé em todas as suas formas: em Deus (ou como você o chame), nas pessoas, na família, no que você sente, no que você acredita que sentem por você – e a perda dessa fé, a sensação de vagar, de não ter chão, de não poder confiar em você mesmo porque você não sabe mais quem é sem aquela força motora que existia em sua vida. E se você a substituir? E se você deixar de acreditar em Deus (ou como você o chamar, de novo!) para acreditar no poder da física, dos raios, da eletricidade? Até onde esse poder pode te levar? E o principal: o que você pode fazer com ele?

Como em grandes livros com grandes dilemas, você se vê questionando o que faria naquela situação: quando você perde tudo, quando você não pode ajudar quem você ama, quando você sente que falhou, quem você é realmente? Esse é o grande poder de King: há o horror, mas há as perguntas feitas sobre o que aconteceu, e ele nunca falha nisso. Nunca. Viver é difícil, é doloroso e para algumas pessoas, é uma batalha diária, por diversos motivos. Reviver significa tantas coisas, mas, essencialmente, é ganhar uma segunda chance, e a questão é como esta segunda chance pode chegar até quem quer – e quem não quer também. Não posso responder isso por nenhum leitor, mas posso afirmar com toda certeza que “Revival” merece quantas chances você precisar dar para ler um livro desse quilate. E você não vai se arrepender.

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