Resenha: Misery: Louca obsessão – Stephen King
“Misery: Louca obsessão”
Stephen King
Tradução: Elton Mesquita
Suma – 2014 – 328 páginas
Paul Sheldon é um escritor famoso, reconhecido por uma série de best-sellers protagonizados pela mesma personagem: Misery Chastain. Annie Wilkes é uma enfermeira aposentada, leitora voraz e obcecada pela história de Misery. Quando Paul sofre um acidente de carro em uma nevasca, ele é resgatado justamente por Annie, e esse encontro entre fã e autor é o ponto de partida de uma das tramas mais aterrorizantes de Stephen King.
Insatisfeita com o final do último livro da série, a fã isola o autor debilitado em um quarto em sua casa. Com torturas, ameaças e uma vigilância persistente, ela faz de tudo para obrigá-lo a reescrever a narrativa com o final que ela considera apropriado. Considerada uma das vilãs mais assustadoras e complexas do universo King e interpretada por Kathy Bates no filme que se tornou um clássico, Annie Wilkes é a figura que faz de Misery um livro essencial.
Confesso que parece loucura querer resenhar “Misery: Louca obsessão” atualmente porque faz 37 anos de sua publicação (sim!) e com uma personagem que já entrou para todas as listas de maiores e melhores vilões de todos tempos, então o que eu poderia escrever aqui que não já foi dito e apontado por tantas outras pessoas bem mais competentes do que eu? E a resposta também parece obvia para mim: para tentar chegar até você, que me lê agora, e ainda não leu este livro ou ainda não leu nada do autor e precisa de um pequeno empurrão para isso. Sim, o livro é um horror, mas um horror psicológico parecido ter sido escrito sob medida para todos nós, bookstans, e sem nenhum elemento sobrenatural – talvez só se você considerar uma mulher realmente desequilibrada capaz de torturar, matar e sequestrar algo sobrenatural.
King se tornou o mestre do terror atual, conhecido por sua velocidade literária (ele publica livros quase todos os anos atualmente, mesmo com 77 anos de idade) e vilões sobrenaturais que aterrorizam crianças ou mortos que voltam a vida ou ainda uma gama sem fim de seres capazes de tirar o sono de muitos. Mas acredite em mim, tudo isso pode ser assustador, mas nada, absolutamente nada, consegue ser mais assustador e verdadeiro do que os verdadeiros vilões da humanidade: os seres humanos. Você não deve ter mais dúvidas sobre isso nos tempos em que vivemos, então quando encontramos uma trama como essa, que mostra o pior do ser humano, temos a certeza de que estamos lidando com o verdadeiro horror, aquele tipo de horror que nos faz prender a respiração por alguns segundos de tanto pavor que sentimos, a descarga de adrenalina correndo por nosso corpo. E tudo que podemos fazer é continuar a leitura, exatamente como fazemos com a vida porque não vamos parar até entender a cabeça de Annie Wilkes, a maior vilã do autor, sem sombras de dúvidas.
úmerr ouummmm
sssuaaa fãããnnn úmerrr
oouummmm
Estes sons: mesmo em meio à névoa.
Uma das coisas que mais surpreender o leitor é como King começa a trama: Paul Sheldon, conhecido autor da série sobre Misery Chastain, livro bastante vendido, já sofreu o acidente e se encontra sedado na casa da sua fã número 1, Annie Wilkes. Tendo terminado de escrever seu mais novo livro, “Carros Velozes”, Paul está simplesmente feliz porque acreditava que o livro seria o melhor de sua carreira, mas, mais do que isso, ele está completamente feliz e em paz com a decisão aparentemente drástica que tomou em seu livro anterior: matar Misery, a personagem principal de sua serie de livros mais famosa. Aparentando ter um profundo desprezo sobre a personagem, Paul realmente acredita que fez o melhor em se livrar daquela personagem e do seu triangulo amoroso que acontecia lá.
Tendo terminado de escrever o livro, Paul sai de carro com a única cópia dele, decidido a ir comemorar – e então sofre um acidente de carro e é salvo pela enfermeira que ele considera feia e absolutamente estranha. Com as pernas quebradas e diversos outros ferimentos, o homem fica entrando e saindo de um sono que entende que está sendo causado por um forte medicamento (o qual King deixa claro que não existe com o nome usado no livro), até que enfim, desperta para conversar e conhecer mais de sua enfermeira e sim, fã número 1. E este é só o começo do seu pior pesadelo.
Mas ainda se passaria muito tempo até ele finalmente conseguir romper a camada de saliva ressequida que selara seus lábios e gemer “Onde eu estou?” para a mulher que sentava ao seu lado na cama com um livro nas mãos. O nome do homem que escrevera o livro era Paul Sheldon. Ele reconheceu o próprio nome sem surpresa.
— Sidewinder, Colorado — respondeu a mulher, quando ele finalmente conseguiu perguntar. — Meu nome é Annie Wilkes. E eu sou…
— Eu sei — disse ele. — Você é minha fã número um.
— Sim — respondeu ela, sorrindo. — É isso mesmo que eu sou.
Desde o primeiro momento, Annie deixa claro que sim, é a fã número 1 de Paul (peguei pavor dessa frase, mas ela significa muito para o livro, então preciso repeti-la até vocês gravarem também) e que ainda não leu “O Filho de Misery”, o último livro de Misery – justamente no qual ela morre. Paul logo entende que está em maus lençóis quando a mulher entender que sua adorada personagem morreu, mas não há muito que ele possa fazer até ali. Algo próximo da intuição deixa claro para o homem que Annie não é nada estável emocionalmente e parece ter muitos demônios, mas nada o preparou para a reação de Annie quando ela termina a leitura, desaparecendo por dias e deixando o homem, que não pode se mover sozinho, sem remédio, comida e bebida.
Quando ela volta, já mais “calma”, Annie deixa claro que Paul deverá dar outro final para sua amada Misery. Mas como, se ele a matou? Ao mesmo tempo que tenta lidar com os ataques de fúria e loucura de Annie, Paul começa a desenvolver uma trama para trazer a personagem que ele justamente não gosta e também formar alguma especie de trama que o ajude a escapar daquela fazenda que está sendo mantido preso, sem qualquer ajuda medica, por mais que fique claro para ele que Annie foi enfermeira em algum ponto de sua vida.
Suas outras deduções podiam ser castelos de areia, mas essa opinião sobre Annie Wilkes lhe pareceu sólida como a Rocha de Gibraltar. Devido às suas pesquisas para Misery, ele tinha bastante conhecimento sobre neuroses e psicoses; sabia que, embora um psicótico latente pudesse ter períodos alternados de depressão profunda e alegria e hilaridade quase agressiva, o ego inchado e doente subjazia a tudo, certo de que todos os olhos se voltam para ele, certo de ser a estrela de um drama grandioso cujo resultado milhões aguardam com a respiração presa.
Um ego assim simplesmente ignora certos padrões de pensamento. Esses padrões são previsíveis, pois progridem na mesma direção: da pessoa instável para objetos, situações ou outras pessoas fora do seu campo de controle (ou fantasia: pode haver alguma diferença para o neurótico, mas para o psicótico, trata-se da mesma coisa).
Claro que sendo mantido trancado em um quarto, somente podendo ir para uma cadeira de rodas mas sem permissão de andar pela casa, limita muito o que Paul pode fazer contra a sua algoz, mas a mente do homem não para, mesmo depois de sofrer uma das maiores torturas que um escritor pode sofrer: guiada por um senso de justiça e puritanismo que parece ter sido incutido em Annie ainda criança, Annie o obrigada a queimar seu manuscrito do seu amado livro “Carros Velozes”, o qual ele não tem cópia – a cena chega a ser desesperadora de ler porque vemos que Annie está sentindo prazer em causar dor em Paul, alguém que ela diz amar e ser fã. Mas calma que essa não é a pior tortura que ela faz contra o escritor: mais adiante da trama, ela usará um machado e permanecerá para sempre em nossa imaginação como uma das pessoas mais sádicas que o autor já conseguiu imaginar.
Voltando um pouco, Paul começa a excursionar pela casa sempre que pode, e em uma das fugas que ele encontra um álbum ou algo que se assemelha a isto com diversos recortes de jornais guardados – e aqui um lembrete: estamos em 1987, não havia internet, muito menos telefones celulares, o que ajuda para a construção do clima de desamparo que Paul sente porque a única ajuda que pode chegar para ele é se forem o procurar. Há desde o casamento dos pais de Annie quanto menção a seu irmão, a sua formatura como enfermeira e também sobre seu casamento e divórcio, uma verdadeira maquina de lembranças nas palmas das mãos do homem. Mas, para desespero dele, há diversos recortes de jornais de mortes: vizinhos da família de Annie, quando ela era adolescentes, morreram em um incêndio; pacientes idosos do hospital no qual ela trabalhava e, posteriormente, bebes mortos, que chamaram a atenção da policia, levando Annie a ser investigada, mas absolvida por faltas de provas concretas. O pavor toma conta do personagem e King faz um trabalho perturbador e perfeito em ser um momento tão explosivo que as sensações passam para o leitor com a maior facilidade: você sente nojo, repulsa, raiva, tudo junto por uma mulher profundamente perturbada.
— Não fale assim. Eu odeio quando você fala desse jeito.
Ele olhou para ela, honestamente confuso.
— Falar assim como?
— Quando você perverte o talento que Deus lhe deu chamando de “ramo de negócios”. Eu odeio isso.
— Sinto muito.
— É pra sentir mesmo — disse ela, ríspida. — Por que não se chama logo de prostituta?
Não, Annie, pensou ele, furioso de repente. Eu não sou uma prostituta. Carros Velozes foi o que me fez deixar de ser uma. E pensando bem, foi por isso que matei a escrota da Misery. Eu estava indo para a Costa Oeste para celebrar minha alforria do prostíbulo. O que você fez foi me puxar dos destroços e me meter de volta na zona. Dois dóla papai-mamãe, quatlo dóla completinha. E de vez em quando eu vejo em seus olhos que uma parte de você sabe muito bem disso. Um júri pode absolver você por insanidade, mas eu não, Annie. Esse aqui não.
Já mencionei também que Annie é considerada uma das maiores vilãs de todos os tempos, e acho que muito se deu também pela adaptação magistral em formato de filme que o livro ganhou em 1990 com Kathy Bates, que ganhou o Oscar naquele ano de melhor atriz por interpretar uma Annie Wilkes de uma forma perfeita, e James Caan como Paul. A personagem ainda apareceu em “Castle Rock”, uma série no formato antologia com somente 2 temporadas, sendo a personagem principal da 2º, mas levemente modificada. Claro que essas duas versões são bastante populares, mas nenhuma das duas se compara a este livro que é tão profundamente perturbador por mostrar que pessoas más conseguem se livrar do mau que fazem e que estão ai fora, levando o leitor a se questionar se essas pessoas precisam de ajuda ou se precisam serem retiradas de uma vez por todas do convívio da sociedade.
Um dos principais pontos do livro, pelo menos para mim, é que Paul não é um mocinho fofo que estamos torcendo por ele. Ele é um homem comum, e, sendo sincera, mais para um cara cheio de si e convencido do que um cara legal do qual você gostaria de ser amiga. Divorciado duas vezes, claro que há pessoas procurando por ele, e é justamente ai onde a trama, que já é assustadora o suficiente, começa a se encaminhar para seu clímax com direito a mortes gráficas e um embate final entre Paul e Annie que se torna inesquecível para quem lê. Não tenho como deixar mais claro a atmosfera deste livro e a forma como King impregna em cada página o medo, a paranoia, o nervoso e desespero que o personagem principal sente o tempo inteiro com o qual ele lida com uma mulher que tem o poder de deixá-lo viver ou morrer. O livro já teve o titulo de “Angustia”, uma das possíveis traduções para a palavra, e por mais que esteja correta, fico com “Miséria” mesmo, em seu significado direto: o estado de sofrimento, a infelicidade, a desgraça – porque tudo isso se manifesta na personagem que teve uma das trajetórias mais icônicas que já li.
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