01.11


“De onde eles vêm”
Jeferson Tenório
Arte de capa: Alceu Chiesorin Nunes
Companhia das Letras – 2024 – 208 páginas

Após episódios de censura e duzentas mil cópias vendidas de O avesso da pele , o novo romance do autor vencedor do prêmio Jabuti. Com a lei de cotas raciais como tema, uma história sobre preconceito e luta, exclusão e sonho.

De onde eles vêm tem como pano de fundo o ingresso dos primeiros cotistas na universidade brasileira. Na história, que se passa em Porto Alegre, por volta dos anos 2000, acompanhamos o despertar racial do narrador, Joaquim, em meio a um ambiente hostil.

Órfão, tendo que cuidar da avó doente, desempregado e sem dinheiro, Joaquim busca a todo custo manter seu amor pelos livros e pela literatura. Romance de formação de um leitor, este é o retrato de uma jornada feita de obstáculos num momento em que políticas para amenizar desigualdades eram vistas como problema, não como possibilidade de solução.

A pergunta que me fiz ao terminar “De onde eles vêm”, a mais nova canetada de Jeferson Tenório, foi: “Como eu posso sequer tentar resenhar esta trama?”. E é com esta mesma pergunta que quero começar escrevendo aqui porque tenho total ciência de que não tenho habilidade para tal porque a sensação que tenho é que o que esta trama passa é muito mais do que somente a vida de Joaquim, protagonista da história, passando por temas de suma importância para jovens adultos que ainda não encontraram seu lugar em um mundo que não foi feito para pessoas de sua cor e não lhe dão oportunidade de tentar ascenderem. Você precisa entender que o lugar de onde Joaquim já começa é muito mais difícil do que outras pessoas, sendo preto, órfão e pobre, e as cotas universitárias pareciam um ótimo primeiro passo em um caminho que pode levá-lo a vida melhor no futuro.

Mas estamos falando aqui do começo das cotas, as quais eram vistas como problema e não como uma tentativa de proporcionar oportunidade para pessoas que justamente precisam delas, e a jornada de Joaquim vai ser muito, muito tortuosa, passando por relacionamentos e saúde mental, além de deixar claro e assinalar as desigualdades deste mundo que mudou pouco nestes 20 anos entre o tempo que a trama passa e o tempo atual, e usemos o próprio autor como exemplo: caso você não tenha morado no Brasil no último, o último livro do autor, ganhador do Jabuti, “O avesso da pele”, sofreu censura em diversos estados do nosso país (e você pode ler minha resenha sem spoilers clicando AQUI). Se no livro anterior Tenório nos levou em uma viagem sobre um relacionamento entre pai e filho com a cor tendo grande impactos na vida das personagens, aqui temos a juventude e as costas como cenário. Enfim, tudo isso foi pra falar que não me sinto capaz de considerar isso uma resenha porque o livro é realmente fora da curva de tão bom e quem já esteve nesta fase da vida vai se identificar em algum ponto com estas personagens, seja qual for em alguma passagem, mas não perca o foco e tente abrir seu coração e sua mente para o poder que as cotas podem (e devem!) ter.

Enquanto isso vai preenchendo esse formulário aqui, ela disse. Eram duas folhas com questões para quem entrava pelo sistema de cotas raciais. Trinta e duas perguntas cujo intuito era comprovar que de fato você é uma pessoa negra. Li uma delas, aleatoriamente: você já foi impedido de entrar em algum espaço devido à cor da sua pele? Eu ri. Fui preenchendo, ainda tenso com aquela indefinição. Pouco tempo depois, a secretária retornou. Hoje é seu dia de sorte, garoto, disse, você pode fazer a matrícula. Mas precisa trazer o documento atualizado na semana que vem. Agora, você passa naquela salinha ali e entrega o formulário. Na sala em questão ficava a comissão que analisava os candidatos cotistas. Eram três professores brancos. Entreguei o formulário, não me fizeram nenhuma pergunta. Minha cor retinta não deixava dúvidas de que eu era um inquestionável e exemplar espécime de rapaz negro. Todos foram gentis comigo, me deram orientações sobre como escolher as disciplinas. Depois sorriram e me desejaram um bom semestre.

Joaquim é apresentado como uma criança que via muito, apesar de não entender o mundo. Com uma mãe que trabalhava fora e ficando com seus vizinhos, uma passagem na qual o casal idoso tenta “comprar” seu desenho de um cavalo porque ele não entendia ainda o conceito de dinheiro e pagamento, mas tudo muda quando sua mãe precisava praticamente sair fugida do lugar, levando o pequeno com ele. A mulher morre quando ele tem 12 anos e o jovem fica morando com a avó materna, Joelma, e a tia Julietta, já como seu pai havia sumido, algo que ocorre com muitas famílias por todo nosso país. A avó de Joaquim é a típica matriarca de famílias brasileiras: cuidava de sua família e tinha gênio forte forjado em uma vida difícil que precisa de muita força e confiança de que as coisas vão melhorar para poder continuar lutando.

Aos 24 anos, o inicio da faculdade é protocolar com uma funcionária já tentando dificultar a vida do jovem (quem nunca sentiu que a burocracia é feita para nos fazer desistir de algo que temos direito?) e mesmo assim ele consegue se inscrever na faculdade de Letras. Disposto a se tornar um poeta, o amor aos livros mantêm a sanidade e a força de Joaquim em uma vida na qual ele não tem dinheiro para viver com calma: tem que se preocupar com comprar os medicamentos da avó que não são dados pelo SUS, com pagar as passagens de ônibus para a universidade, com ter dinheiro para um lanche – acho que vocês já entenderam que bem, precisamos de dinheiro para… tudo. E as oportunidades para alguém que não tem formação e ainda estuda, tomando parte do dia em horário comercial, se tornam mais escassas ainda.

Lancei um olhar pela janela, e o cenário na rua também me pareceu caótico e triste. Como se não houvesse saída. Não é possível, pensei. Não é possível. Há de haver algo de bonito nisso tudo. Não era possível que a síntese da minha vida fosse um ônibus lotado em meio a um calor insuportável de verão. Então, a cada prédio, a cada rua, a cada pessoa que passava, eu empreendia uma busca por algo bonito que me fizesse doer. Não a dor física. Mas a dor sutil e invisível de algo que nos atinge e nos desabriga. E no ônibus suado, com cheiro de gente, apinhado de trabalhadores que rumavam para suas casas, entendi que aquele microcosmo caótico era o cenário que eu tinha. Há de haver alguma beleza nessa vida fodida de merda, pensei.

Namorando Jéssica, que já tem uma filha de um relacionamento anterior, tudo que Joaquim realmente almeja é se tornar um poeta, se inscrevendo na matéria de Moacir Malta, uma disciplina de produção de texto ficcional. No dia da apresentação, na primeira aula, o jovem deixa claro o que quer e atrai levemente a atenção do professor, talvez não pelos motivos certos. E por mais que nós, os leitores, esperemos que a vida dele começa a dar certo e seguir para a frente com mais esperança, tudo para Joaquim para estar repleto de desafios perpetuados por uma visão de mundo que vai nos fazendo pensar mais e mais sobre as cotas e como elas precisavam de mais ajuda e não somente dar o acesso à faculdade. O relacionamento com Jéssica parece estar começando a esfriar enquanto ele se aproxima de uma colega chamada Elisa, branca, e confesso que também foi algo inesperado a forma como tudo foi se desenrolando no setor sentimental da vida dele.

Lauro, o amigo de infância, passa por uma descoberta e tentativa de se assumir gay em uma família que claramente não o aceita. Quando Joaquim passa a dormir na casa da mais nova namorada, é ele que ajuda Julieta com a mãe e avó do amigo. Personagem que apresentou um crescimento maravilhoso no livro, preciso apontar que se esta trama tem um problema é justamente a falta de informações e desfechos que queremos sobre os coadjuvantes, de tão maravilhosos que são, Lauro como exemplo e também a estudante Saharienne e a professora Berenice, trama que me tocou profundamente porque muitas vezes deixamos nos atingir por fragilidade nossa, sem entender que às vezes, a luta vale a pena sim (quando você ler, você entenderá).

Uma ocasião, Sinval me disse que escrever um bom livro dependia do quanto a gente tinha sofrido na vida. Embora fosse jovem e não tivesse consciência disso, eu ainda não havia conhecido o rancor, não de maneira visceral. Mesmo assim, sabia que a tristeza me dava uma certa vantagem. Acontece que essa sensação também me causava algum desconforto, pois, quanto mais eu refletia sobre a escrita, mais avaliava se valia a pena, se seria esse o preço a pagar. Ganhar experiência através das humilhações, da violência, e de todas as outras situações degradantes só para ter o que contar depois? A literatura vale tanto assim?

O espiral de destruição que Joaquim vai passando se agrava com a demência de sua avó a levando a sofrer uma isquemia. O que já era difícil, se torna mais ainda porque ele e a tia não tem condições de internar a avó, então os cuidados com ela o levam a perder o fio de seu relacionamento, o qual começa a se desintegrar, o levando a perder a única coisa que realmente se agarrava. A partir dai, com a saúde mental já fragilizada e demonstrado isso em dias passagens bastante fortes anteriormente, Joaquim se entrega a bebida e vai perdendo contanto com o jovem que morava dentro dele, tão sonhador, que acreditava em ser poeta, esmagado pelo peso de uma realidade brutal e uma sensação de não pertencimento que o leva a beira do precipício.

Confesso que não esperava o final da trama da forma como foi, não pelo tom, mas pela grande ironia que nos apresenta, nos fazendo fechar o livro pensando que a vida não era daquela forma ali não, mas fazer companhia a Joaquim e a toda sua jornada foi algo deveras despertador para questionamentos que quem é privilegiado não faz e, muitas vezes, apontavam as cotas como sendo “injustas”, sem terem a menor ideia de que entrar na faculdade poderia apresentar desafios que sequer pensamos sobre: comida, roupa, materiais, transporte, livros, eventos sociais, tudo isso vem com uma cadeia de relacionamentos que precisa de dinheiro para se movimentar. Despertar para verdades como essa é um dom que Jeferson Tenório tem e sua escrita aqui é a mesma hipnotizadora do seu premiado livro anterior: capítulos curtos com parágrafos únicos que chegam como um soco, lembrando exatamente de onde aquelas pessoas vêm – e que elas merecem chegar onde quiserem.

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