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Resenha: Intermezzo – Sally Rooney


“Intermezzo”
Sally Rooney
Tradução: Débora Landsberg
Companhia das Letras – 2024 – 488 páginas

Além do fato de serem irmãos, Peter e Ivan Koubek não parecem ter muita coisa em comum. Peter é advogado em Dublin e está na faixa dos trinta anos ― é bem-sucedido, competente e parece ser invencível. Mas logo depois da morte do pai, ele passa a tomar remédios para dormir e a sentir dificuldade de administrar a relação com duas mulheres bem diferentes ― Sylvia, seu primeiro amor, e Naomi, uma universitária para quem a vida é uma grande brincadeira.

Ivan tem 22 anos e é jogador de xadrez. Sempre se considerou um cara que não tem muito traquejo social, um solitário, a antítese do irmão mais velho e fútil. Nas primeiras semanas do luto, ele conhece Margaret, uma mulher mais velha que está deixando para trás um passado turbulento, e a história dos dois logo se entrelaça profundamente.

Para os dois irmãos enlutados e as pessoas que eles amam, esse é um novo intermezzo ― um interlúdio de desejo, desespero e possibilidades ―, uma oportunidade de descobrirem o que uma vida pode conter sem se quebrar.

Mais novo e maior livro de Sally Rooney (sim, conferi a quantidade de páginas de seus outros livros), “Intermezzo” chegou ao Brasil simultaneamente ao lançamento mudial pela Companhia das Letras e é exatamente o que a sinopse nos traz: dois irmãos lidando com a perda do pai e as consequências desta morta, as lembranças de uma vida inteira entre dois irmãos que nunca conseguiram criar laços fraternais no sentido literal da palavra, o relacionamento com uma mãe ausente e seus relacionamentos amorosos. A diferença aqui de outros livros da autora é que os dois personagens centrais que possuem a liderança da narrativa são homens e apesar de seus relacionamentos serem com mulheres, eles são os protagonistas – e aqui preciso deixar claro para você que os homens criados e narrados pela autora são, em sua grande maioria, os piores tipos e explicarei mais durante esta narrativa. Em uma época que todos tentam esconder sua trama para reviravoltas e dar o minimo possível em suas sinopses, é sempre diferente ler as histórias de alguém que traz simplesmente a vida em suas vidas, sem qualquer motivação de prender o leitor além de contas uma história que poderia acontecer com qualquer um de nós.

Já li todos os livros de Sally, os 3 publicados pela Companhia das Letras (leia as resenhas dos livros sem spoilers clicando AQUI) e os 3 tem em comum a vida, pura e simples. Não há um vilão em nenhum de seus livros a não ser pessoas desestruturadas por diversos motivos, pessoas que conhecem outras e mexem com a cabeça de outras pessoas e suas vidas, exatamente o que acontece quando abrimos a porta de nossa casa e saímos para a rua. Pensando sobre este livro, a conclusão que chego sobre esta autora de sucesso é que amo suas tramas – e desprezo seus personagens masculinos com toda força do meu coração (sim, até Connell e estou pronta para discutir com quem quiser que ele fez Marianne de besta a vida inteira – e ninguém mudará minha opinião) e, para ser honesta, algumas personagens femininas também. O que não podemos esconder pe o talento e a forma como Rooney sabe conduzir suas histórias, com seu característico texto sem travessões, parágrafos grandes, uma narração crua e permeada por pensamentos misturados com frases e aqui temos uma narrativa mais madura, mais focada em família e a ideia que cada um dos irmãos tem sobre o amor.

O irmão de Ivan, Peter, que tem trinta e dois anos e fez mes­trado em filosofia, diz que essa escola de pensamento sobre as relações entre corpo e mente já foi refutada. Para Ivan, soa como quando alguém diz que o Gambito do Rei foi refutado. As pessoas vivem usando a palavra “refutado” só porque a leram em algum fórum, Gambito do Rei é Destruído com um Lance ou sabe-se lá o quê, e então o lance é 3… d6. Valeu, Bobby Fischer! Não que Peter seja do tipo que diz coisas só porque leu a respeito em fóruns. É um homem adulto com vida social e talvez nem saiba o que são fóruns. Mas mutatis mutandis. Ele provavelmente ouviu em aula que mente e corpo não são mais considerados coisas separadas e pensou, entendi. Peter é do tipo que prossegue naturalmente na superfície da vida. Fala muito ao telefone e come em restaurantes e diz que as escolas filosóficas foram refutadas. Houve uma época em que os sentimentos de Ivan por ele eram mais negativos, chegando às raias da inimizade total, mas agora ele os classificaria como neutros. De qualquer modo, precisa admitir que Peter organizou praticamente tudo o que dizia respeito ao velório e tudo mais, Ivan não fez nada, ele admite sem titubear. Talvez devesse demonstrar mais gratidão nesse aspecto. Quanto à história toda de Peter fazer um elogio fúnebre e Ivan não, a decisão foi tomada pelos dois. É óbvio que agora Ivan se arrepende, já remoeu isso, o arrependimento, várias vezes, mas a culpa é dele mesmo, não de Peter, não é nem compartilhada, mas sim exclusivamente dele. Ele não pensou muito de antemão, é claro. Mas de que vale remoer? O pai não vai ganhar um segundo velório em que Ivan pode se desculpar pelo erro dizendo todas as coisas que mais tarde passaram pela sua cabeça. A mente humana, apesar de toda a importância que lhe deu um minuto atrás, é muitas vezes repetitiva, vira e mexe empacada em um ciclo conhecido de pensamentos improdutivos, que no caso de Ivan costumam ser da natureza do arrependimento. Arrependimentos banais, como perguntar àquela mulher, Margaret, se ela jogava xadrez, horrível, e arrependimentos grandiosos, como se recusar, ou melhor, não conseguir dizer na­da no velório do pai. Arrependimentos grandiosos como dedicar a vida ao xadrez competitivo só para ver sua pontuação cair regu­larmente ao longo dos anos, chegando ao momento em que etc. Ele já remoeu tudo isso, a irrecuperabilidade do passado, o que está feito está feito, e agora não é hora, de qualquer forma. Ele vai é comer a barrinha de chocolate que levou na mala e tomar uma xícara de café. É bom visualizar essas ações de antemão, co­mo ele vai desembrulhar a barra de chocolate, qual vai ser o gosto do café, se vai ser servido com pires ou só na xícara. É nisso que se deve pensar nesta altura: coisas exatas, tangíveis, coalhadas de detalhes sensoriais. E então os jogos vão começar.

Como também já falei, a sinopse diz exatamente o que você pode esperar do livro: dois irmãos, Peter e Ivan, que acabaram de perder o pai que os criou depois que a mãe de ambos, Christine, foi embora com Ivan aos 5 anos e Peter aos 15. Com 15 anos de diferença entre os irmãos, parece claro que o abismo entre eles é mais do que “só” o lapso temporal os colocando sempre em lugares diferentes na vida, mas também as personalidades e modo de enxergar a vida. Peter, aos 30 e poucos anos, um advogado em Dublin, prático, racional e que gosta de julgar os outros com sua regua moral que sequer é tão bem calibrada assim, já como ele vive um relacionamento com Naomi, que tem a idade do seu irmão, e que deixa claro para ela que a sustenta e não a leva à sério em nada. Já Ivan tem 22 anos e tem o xadrez como o centro de sua vida, não sendo fã de interações com as pessoas e com um jeito bem seu de ver a vida, temos aqui o segundo melhor personagem da trama por sua vulnerabilidade – e a melhor personagem da trama fica pra Sylvie, a ex de Peter.

Preciso voltar ao relacionamento de Peter e Naomi porque preciso deixar muito claro que ele não leva o relacionamento à sério porque ela é mais nova ou porque ela não leva a vida à sério: ele não o faz porque ele é apaixonado por sua ex-namorada, Sylvie, mas mais do que isso: ele chega a humilhar Naomi em diversas passagens do livro porque bem, ele tem o poder financeiro da relação e acredita que ela só o quer por dinheiro, mas ele mesmo não se analisa e não vê a pessoa merda que está sendo ficando com uma garota mais nova somente porque sua ex sofreu um acidente e sofre agora de dores crônicas, não conseguindo mais fazer sexo. Sim. É isso. E a própria Sylvie o deixou antes que ele a deixasse porque sabia que isso eventualmente aconteceria, já como ela sentia tantas dores que não conseguia mais realizar o ato sexual. Enfim, só precisava colocar essa parte da trama pra fora do meu peito porque Peter entrou na galeria de personagens de mais odiados de todos tempos.

Tão próximo dela que sente que de certo modo ela é ele, a mesma pessoa, ambos juntos na escuridão. Não, ele diz. Não posso ficar.
Ela afasta a mão. Por que não?
Eu tenho coisa pra fazer de manhã.
De trabalho?
Não, ele diz. Vou ver uma amiga.
O estalo baixinho da língua se desalojando do céu da boca. Sua amiga Sylvia, ela diz.
Abrindo os olhos, ele a vê o fitando de cima. É, ele responde.

Quando a trama começa, Peter está voltando do velório do pai (lembram-se que em muitos países, velórios só acontecem depois de muitos dias da morte do ente querido) e aparece para Naomi só ai contando o que aconteceu com ele. Mas claro que a cabeça de Peter está em encontrar com Sylvie e falar com a ex-namorada, o que logo acontece com ele bebendo mesmo tomando um remédio para dormir, porque claro que ele está afetado com tudo que está acontecendo em sua vida: a partida do pai, o encontro com a mãe, a falta de relacionamento com Ivan e, claro, seus sentimentos por Sylvie. O caminho do personagem vai sendo construído com calma a partir da dor e da saudade que ele sente, se dando conta de seus erros e da forma como poderia ter conduzido as coisas melhores, principalmente com o irmão e sua reação ao descobrir sobre o relacionamento de Ivan.

Já Ivan conhece Margareth, mulher de 36 anos, que toma conta de seus pensamentos e de seu coração. O romance deles é realmente muito natural e são pessoas que parecem que estão separadas por diversas vivências da vida, mas, de alguma forma, ainda conseguem se completar. Torci e não foi pouco pelos dois, porque mesmo com uma falta de detalhes e profundidade que se poderia ter, Margareth é uma mulher admirável, saída de um casamento falido que lhe deixou marcas, é claro. Parece bizarro a forma como os anos pesam no sentimentos dos dois, mas não dá pra dizer que isso não aconteceria, já como todos tem opiniões formadas para darem sobre as vidas dos outros, mesmo sem pagarem seus boletos e mesmo Margareth fazendo bem a Ivan, tendo conversas que o ajudam a revistar seu passado e seu relacionamento com o irmão mais velho.

Peter esfrega os olhos com os dedos, dando a impressão de estar cansado e deprimido. Devagarinho, diz: Não me leve a mal, Ivan. Mas a mulher tem quase quarenta anos. Já foi casada. Você tem vinte e dois anos, acabou de sair da faculdade, nem tem emprego ainda. Não estou tentando te desmerecer, mas você acha que uma mulher normal da idade dela ia querer sair com alguém na sua situação?
Ivan sente uma coceira na nuca, e também debaixo dos braços, uma coceira no sangue. O que você está querendo dizer?, ele diz. Que ela não é normal?
Estou apenas perguntando.
Você não conhece ela.
Você também não, por sinal, diz Peter. Você se encontrou com ela o quê, duas vezes?
Com um tremor calorento no corpo inteiro, Ivan afasta a cadeira da mesa e se levanta. Vai à merda, ele diz.
Peter fica sentado com um sorriso cansado no rosto, e diz: Vamos manter a civilidade, por favor?
Num tom de voz propositalmente baixo, quase sibilado, Ivan diz: A verdade é que eu te odeio. Te odiei a minha vida inteira.
Sem se agitar, sem olhar em volta para ver se os outros clientes ou os funcionários os observam, Peter responde apenas: Eu sei.

Os dias se passam e com eles diversas conversas sobre tudo que aconteceu com os dois, o luto tomando conta e depois recuando, exatamente como a vida é. Não há muito o que falar sobre “Intermezzo” sem deixar claro que ele é realmente um interlúdio, o tempo que vem antes de mudanças e depois de grandes acontecimentos que definirão a vida e relacionamentos e que muitas vezes passamos por estes tempos sem nos darmos conta do quão importantes eles são para nosso crescimento pessoal e fortalecimento de relacionamentos, ou ainda para nos mostrar que algumas coisas realmente não funcionam e precisamos ter força para os deixar para trás.

Se você ainda não conhece Sally Rooney e sua escrita, suas tramas repletas de momentos reais com personagens reais (até demais) que só querem encontrar a boa e velha felicidade, sua hora chegou. Definitivamente a trama mais complexa e forte da autora, “Intermezzo” entrega muito em desenvolvimento de relacionamentos e personalidades, mostrando que a vida continua apesar das maiores dores – porque é isso que podemos fazer: continuar tentando, mesmo que a vida seja difícil o tempo todo e nossas escolhas erradas sempre nos voltam para nos cobrar. O que sei é que mais uma trama da autora ficará comigo por um bom tempo, me consumindo por dentro, pensando como estes personagens poderiam ser pessoas melhores e onde não – e isto é o que um grande livro faz conosco, vivendo em nossa mente mesmo depois de fechar a última página.

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