Essa carta se passa cronologicamente entre o final de “Corrente de Ferro” e “Corrente de Espinhos”, então tem spoilers do segundo livro de “As Ultimas Horas”. A carta é exclusiva da edição da LitJoy.
Querida Lucie,
Estou escrevendo esta mensagem sentado à penteadeira do seu quarto, enquanto você dorme aqui em frente.
Sua respiração é lenta e tranquila; o que quer que você esteja passando nestes dias, pelo menos parece ser de natureza não traumática para você. Sonhos? Viajar em dimensões remotas de morte, de renascimento? Ou talvez, quando você finalmente acordar, pareça que nem um instante tenha se passado para você?
E quando é que você vai acordar, minha querida Lucie? Eu gostaria muito que você me mostrasse sinais que me ajudassem a determinar isso. Malcolm me garante que tudo o que você precisa é descansar — que você levou seu corpo além de seus limites físicos e, portanto, agora ele precisa ficar imóvel até recarregar suas energias. Fico perguntando a ele – por mais que isso o irrite – quanto tempo ele acha que vai demorar. Na maioria das vezes, ele se limita apenas a dizer que não sabe. Mas quando perguntei a ele ontem, quando o sol do jardim já havia se posto pela metade e era difícil ver para além do porto — era ainda pior do que quando escurecia completamente — Malcolm fechou os olhos e respondeu: “O que a senhorita Herondale fez… é sem precedentes.” E se afastou de cabeça baixa.
Eu nunca estive na Cornualha antes. Como você bem sabe, eu nunca tinha estado em nenhum lugar antes, exceto em Londres e na extensão de terra em Idris onde ficava a propriedade Blackthorn. Tudo é esplêndido por aqui. Eu gostaria que você estivesse acordada para ver isso; você escreveria sobre isso muito bem, capturando a cena para o prazer dos outros. Estou realmente fascinado, mas não sou tão bom com as palavras quanto você. No entanto, tentarei descrevê-lo: a faixa de terra em que a casa de Malcolm foi construída começa na cidade de Polperro e envolve seu porto como a cauda de um antigo dragão de pedra. A própria Polperro, situada nesta circunferência, é maravilhosamente movimentada durante o dia; ouço os pescadores saindo e entrando no porto, chamando uns aos outros em voz alta.
Eu ouço com meus ouvidos e vejo com meus olhos, Lucie, que você restaurou para mim. Falando nisso, eu mal sei o que dizer. Cada instante me lembra que estou vivo novamente, que habito meu corpo. Quando saio, sinto o frio eriçar os pelos dos meus braços; quando volto para dentro, sinto um leve frio queimar minhas bochechas quando o calor da lareira as atinge. Ao acordar, sinto o linho dos lençóis, um entorpecimento reconfortante, o cheiro almiscarado da manta de lã. Quando a água fria escorre pela minha garganta, quando o sabor da sopa permanece na minha boca… É a você que devo agradecer, e a cada momento me emociona pensar no que você me deu. E então o peso da sua condição atual vem me esmagar, e não consigo mais sorrir.
Você trocou sua vida pela minha, Lucie? Se assim fosse, não seria correto da sua parte. Nunca aceitei tal troca. E eu nunca aceitaria. Não só porque considero a sua vida mais importante que a minha — tenho certeza que você já sabia disso —, mas também porque viver de novo, mas sem você, seria menos de uma meia-existência.
O que estou dizendo é que, ao escrever esta carta, esperava, contra todas as probabilidades, ser interrompido. Desejei que terminasse em uma linha brusca, uma mancha de tinta causada pelo som de sua voz, ou o rangido de sua cama enquanto você se sentava. Como você sabe, enquanto crescia, não fui ensinado a experimentar reverência por nosso criador.
Mas agora me encontro aqui, na quietude da escuridão, dizendo: Raziel, por favor. Lucie é a melhor de nós, de todas as coisas que você criou, e ela fez um milagre em seu nome. Traga-a de volta para mim. Faça com que esta carta permaneça sem assinatura, porque a necessidade de terminá-la desapareceu junto com todas as minhas preocupações e culpas.
Raziel opera de maneiras misteriosas, e minha vela quase se consumiu. Como resultado, vejo-me tendo que relutantemente terminar a mensagem e assiná-la como seu para sempre, não importa o que o futuro reserve — para sempre seu,
Jesse
[Traduzido por Equipe IdrisBR. Dê os créditos. Não reproduza sem autorização.]