No dia 8 de setembro de 2022, o site da Editora norte-americana de Cassandra Clare liberou para leitura o Prólogo e o 1º capítulo de “Chain of Thorns”. Essa é a tradução destas páginas.
“É preciso aprender a sofrer o que não se pode evitar. Nossa vida é composta, como a harmonia do mundo, de coisas contrárias e também de diversos tons, doces e ásperos, agudos e graves, fracos e fortes. O músico que só gostasse de uns, o que quereria cantar? Ele tem de saber utilizá-los em conjunto e misturá-los. E nós também, os bens e os males que são consubstanciais à nossa vida. Sem essa mescla nosso ser nada pode: e um lado não é menos necessário que o outro.”
– Michel de Montaigne, “Os Ensaios”
Mais tarde James apenas se lembraria do som do vento. Um grito metálico, como uma faca raspando em um pedaço de vidro, e bem baixo disso o som de uivos, desesperados e famintos.
Ele estava caminhando por uma longa estrada sem trilha: parecia que ninguém havia vindo antes dele, pois não havia marcas no chão. O céu acima era igualmente vazio. James não poderia dizer se era dia ou noite, verão ou inverno. Apenas o chão marrom se estendia diante dele, e acima o céu com cor de calçada.
Foi então que ele escutou. O vento, chutando, juntando folhas mortas e cascalho solto em seus tornozelos. Crescendo em intensidade, o som disso quase cobriu o som de passos se aproximando.
James se virou e olhou para trás. Redemoinhos de poeira giravam onde o vento os haviam encontrado. Areia pinicavam seus olhos enquanto ele olhava. Cortando a mancha de tempestade de areia estavam uma dúzia – não, uma centena, mais que uma centena – de figuras sombrias. Elas não eram humanas, ele sabia disso; apesar de não voarem, elas pareciam fazer parte do vento furioso, sombras se enrolando nelas como asas.
O vento uivava em seus ouvidos quando elas passaram, um grupo entrelaçado de criaturas sombrias, trazendo consigo não apenas um calafrio físico, mas uma sensação fria de ameaça. Sob e através do som da passagem, como os fios tecendo em um tear, veio uma voz sussurrada.
“Elas acordaram,” disse Belial. “Você ouve isso, meu neto? Elas acordaram.”
James se endireitou, ofegante. Ele não conseguia respirar. Ele se puxou para cima, saindo da areia e das sombras, para se encontrar em um quarto desconhecido. Ele fechou seus olhos, e os abriu novamente. Não era desconhecido: Ele sabia onde estava agora. O quarto de estalagem que ele dividia com seu pai. Will estava dormindo na outra cama; Magnus estava em algum outro lugar no fim do corredor.
Ele escorregou para fora da cama, estremecendo com o contato dos pés no piso frio. Ele cruzou o quarto silenciosamente até a janela, olhando para fora para a luz da lua, campos nevados cobriam o chão até onde a vista alcançava.
Sonhos. Eles o amedrontavam: Belial o havia alcançado através de sonhos desde que ele se lembrava. Ele havia visto os sombrios reinos demoníacos em seus sonhos, havia visto Belial matar em seus sonhos. Ele não sabia, ainda agora, quando um sonho seria apenas isso, um sonho, ou seria uma terrível forma de comunicação.
O mundo preto e branco do lado de fora refletia apenas a desolação do inverno. Eles estavam em algum lugar próximo ao congelado Rio Tamar; eles haviam parado na noite passada quando a neve se tornara muito espessa para continuar a cavalgada. Não havia sido uma nevasca bonita e agitada, nem mesmo uma rajada caótica. Essa neve tinha direção e propósito, caindo em um ângulo agudo contra o chão puro e marrom, como uma incansável chuva de flechas.
Apesar de não ter feito nada além de se sentar em uma carruagem o dia todo, James se sentia exausto. Ele mal havia conseguido forçar para baixo um pouco de sopa quente antes de fazer seu caminho para cima e colapsar na cama. Magnus e Will continuaram no salão, em poltronas próximas da lareira, conversando em voz baixa. James apostou que estivessem discutindo sobre ele. Que discutam. Ele não se importava.
Era a terceira noite desde que haviam deixado Londres, na missão de encontrar a irmã de James, Lucie, que havia fugido com o Feiticeiro Malcolm Fade e o cadáver preservado de Jesse Blackthorn, com objetivos desconhecidos. Bem, não inteiramente desconhecidos. James poderia apostar na nobre e estupida ciosa que Lucie estava tentando fazer; ele sabia que Magnus e Will também temiam o mesmo, apesar de nenhum deles ter dito a palavra que todos temiam.
Necromancia.
A coisa importante, Magnus apontou, era alcançar Lucie o mais rápido possível. O que não era tão fácil de fazer quanto de falar. Magnus sabia que Malcolm possuía uma casa na Cornualha, mas não exatamente onde, e Malcolm havia bloqueado qualquer meio de rastrear os fugitivos. Eles tinham que se procurar métodos mais antiquados de encontrá-los: eles paravam sempre, em diversos bebedouros do Submundo no trajeto. Magnus ia conversar com os moradores locais enquanto James e Will foram relegados a esperar na carruagem, mantendo suas identidades como caçadores de sombras escondidas.
“Nenhum deles vai me dizer algo se pensarem que estou viajando com Nephilins.” Magnus havia dito. “A hora de vocês vai chegar quando encontrarmos o Malcolm e tivermos que lidar com ele e Lucie.”
Esta noite ele havia dito a James e Will que achava ter encontrado a casa, que eles facilmente chegariam lá em poucas horas de jornada na manhã seguinte. Se não fosse o lugar certo, eles continuariam a viagem.
James estava desesperado para encontrar Lucie. Não apenas por estar preocupado com ela, apesar de estar. Mas por todo o resto acontecendo em sua vida. Tudo o que ele havia colocado de lado, e dito para não pensar sobre, até que encontrasse sua irmã e soubesse que ela está a salvo.
“James?” A voz sonolenta cortou seus pensamentos. James se afastou da janela para ver seu pai se sentando na cama. “Jamie bach, qual é o problema?”
James encarou seu pai. Will parecia cansado, seus cabelos pretos despenteados. As pessoas comumente diziam a James que ele parecia com Will, ao que ele sabia ser um elogio. Durante toda sua vida, seu pai pareceu ser o homem mais forte que ele conhecia, o com mais princípios e o mais feroz com seu amor. Will não tinha dúvidas sobre si. Não. James não era nada como Will Herondale.
Descansando suas costas na janela fria, ele disse: “Apenas um sonho ruim.”
“Mmm.” Will pareceu pensativo. “Você teve um desses noite passada também. E na noite anterior. Têm algo que você queira conversar, Jamie?”
Por um momento, James imaginou sobre despejar o fardo sobre seu pai. Belial, Grace, o bracelete, Cordelia, Lilith. Tudo.
Mas a cena não se fixou em sua mente. Ele não pode imaginar a reação de seu pai. Ele não pode imaginar pronunciar as palavras. Ele havia segurado tudo para si por tanto tempo, ele não saberia fazer nada além de segurar por mais tempo, mais apertado, protegendo a si mesmo da única forma que ele conhecia.
“Eu só estou preocupado com a Lucie.” James disse. “Sobre no que ela pode ter se metido.”
A expressão de Will mudou – James pensou ver uma sombra de desapontamento cruzar o rosto de seu pai, apesar de que isso era difícil de ver no meio escuro. “Então volte para a cama.” Ele disse. “Nós provavelmente vamos encontrá-la amanhã, Magnus disse, e seria melhor estarmos descansados. Ela pode não ficar contente ao nos ver.”
Minha Paris é uma terra onde os dias de crepúsculo
Mergulham em noites violentas de preto e dourado;
Onde, pode ser, a flor da aurora é fria:
Ah, mas as noites douradas e os caminhos perfumados!
– Arthur Symons, “Paris”
Os azulejos dourados brilharam sob a luz magnífica do lustre, que enviava pequenas gotas de luz como flocos de neve balançados de um galho de árvore. A música era baixa e doce, crescendo conforme James caminhava para fora da multidão e estendia sua mão para Cordelia.
“Dance comigo.” Ele disse. Ele estava belo em seu sobretudo preto, a escuridão de suas vestes acentuava o dourado de seus olhos, as suas maçãs do rosto. O cabelo escuro caiu pela testa dele. “Você está linda, Daisy.”
Cordelia aceitou sua mão. Ela virou sua cabeça conforme ele a levava para a pista, vendo de relance os dois no espelho no fim do salão de baile, James vestido de preto, e ela em um ousado vestido de veludo vermelho rubi. James olhava para ela – não – ele olhava o outro lado do salão, onde uma garota pálida num vestido marfim, seu cabelo da cor de pétalas de rosas-brancas, estava olhando de volta para ele.
Grace.
“Cordelia!”, a voz de Matthew fez os olhos dela se abrirem. Cordelia, meio zonza, colocou a mão na parede do vestiário para se acalmar. O sonho acordada – pesadelo? Não tinha sido agradável – tinha sido horrivelmente vivido. “Madame Beausoleil quer saber se você precisa de ajuda. É claro,” Ele adicionou com a voz cheia de travessura, “Eu ofereceria a ajuda eu mesmo, mas isso seria escandaloso.”
Cordelia sorriu. Homens geralmente não acompanhavam nem mesmo as esposas ou irmãs em lojas de costura. Quando eles chegaram para a primeira visita, dois dias atrás, Matthew usou o Sorriso e encantou Madame Beausoleil para permitir que ele ficasse na loja com Cordelia. “Ela não fala francês,” Ele mentiu, “e precisará de minha ajuda.”
Mas deixar ele entrar na loja era uma coisa. Deixar que ele entrasse na sala onde ela estava experimentando as roupas, onde Cordelia tinha acabado de vestir um vestido intimidante estiloso em vermelho e de veludo, seria de fato un affront et un scandale!” – especialmente em um estabelecimento tão exclusivo quanto o de Madame Beausoleil.
Cordelia falou que estava bem, mas um momento depois teve uma batida na porta e uma das modistas apareceu, empunhando um botão. Ela atacou os fechos na parte de trás do vestido de Cordelia sem pedir nenhuma instrução; claramente ela já tinha feito isso, e ela empurrou e puxou Cordelia como se ela fosse um manequim. Um momento depois – seu vestido preso, seus seios erguidos, suas saias ajustadas – Cordelia saiu para a sala da costureira.
Era uma espécie de lugar de confecção, tudo em azul pálido e dourado, como um ovo de páscoa mundano. Na primeira visita deles, Cordelia ficou ao mesmo tempo assustada e estranhamente encantada ao ver como eles exibiam suas mercadorias: modelos – altas, infames e quimicamente loiras – passeavam para cima e para baixo na sala, usando fitas pretas numeradas em torno de suas gargantas para mostrar que eles estavam exibindo um estilo em particular. Atrás de uma porta de cortina tinham muitos tecidos para se escolher: sedas e veludos, cetim e organza. Cordelia, ao ser presenteada com o tesouro, silenciosamente agradeceu Anna por instruí-la na moda: ela afastou os laços e tons pasteis e foi rapidamente para o que ela sabia que ficaria bem nela. Em alguns dias, a costureira tinha feito o que ela pediu e agora ela voltou para experimentar o produto final.
E, se fosse pelo olhar que Matthew tinha no rosto, ela escolheu bem. Ele estava sentado em uma cadeira dourada com listras em preto-e-branco, um livro – o escandalosamente ousado Claudine em Paris – aberto em seu joelho. Quando Cordelia saiu da sala e foi se olhar no espelho triplo, ele olhou para cima e seus olhos verdes escureceram.
“Você está linda.”
Por um momento ela quase fechou os olhos. Você está linda, Daisy. Mas ela não podia pensar sobre James. Não agora. Não quando Matthew estava sendo tão doce e emprestando a ela dinheiro para que comprasse essas roupas (ela saiu de Londres com apenas um vestido e estava desesperada para usar algo limpo). Eles dois tinham feito promessas, afinal de contas – Matthew, que ele não beberia em excesso enquanto estivessem em Paris; Cordelia, que ela não se puniria com pensamentos ruins sobre suas falhas: pensamentos sobre Lucie, sobre seu pai, sobre seu casamento. E desde que eles chegaram, Matthew não tinha tocado nenhuma taça de vinho ou uma garrafa.
Afastando a própria melancolia, ela sorriu para Matthew e voltou sua atenção para o espelho. Ela parecia quase uma estranha para ela mesmo. O vestido tinha sido feito sob medida, e o decote mergulhava ousadamente para baixo enquanto a saia se agarrava aos quadris dela antes de se alargar, como o caule e as pétalas de um lírio. As luvas eram curtas e franzidas, deixando seus braços a mostra. As Marcas dela sobressaiam em preto contra a sua pele marrom clara, mesmo que o glamour impedisse que qualquer olho mundano notasse qualquer coisa.
Madame Beausoleil, que tinha sua loja em Rue de la Paix, onde ficava a costureira mais famosa do mundo – Jeanne Paquin, na House of Worth – era, de acordo com Matthew, conhecida no Mundo das Sombras. “Hypatia Vex não compra em nenhum outro lugar.” Ele falou para Cordelia durante o café da manhã. O passado de Madame era cercado em grande mistério, o que Cordelia achava muito francês da parte dela.
Tinha muito pouco por baixo do vestido – aparentemente era moda na França que os vestidos tomassem a forma do corpo. Aqui, espartilhos finos foram trabalhados no tecido do corpete. O vestido franzia no busto com uma roseta de flores de seda; a saia se alargava na parte inferior em um babado de renda dourada. A parte de trás era aprofundada, mostrando a curva de sua coluna. Era uma obra de arte, o vestido, o que ela falou para Madame (em inglês, com Matthew traduzindo) quando ela apareceu, com a almofada de alfinetes na mão, para ver os resultados de seu trabalho.
Madame deu uma risadinha. “Meu trabalho é muito fácil,” Ela falou. “Eu só preciso realçar a grande beleza já possuída pela sua esposa.”
“Oh, ela não é minha esposa.” Matthew falou, seus olhos verdes brilhando. Matthew não amava nada mais do um aparente escândalo. Cordelia fez uma careta para ele.
Para crédito dela – ou talvez apenas fosse assim que eles agissem na França – Madame nem ao menos hesitou. “Então,” Ela disse. “É raro que eu consiga vestir uma beleza tão natural e incomum. Aqui, a moda é sempre para loiras, loiras, mas loiras não conseguem dar conta de uma cor assim. É sangue e fogo, intenso demais para a pele e cabelos tão pálidos. Elas podem usar laços e pastel, mas a senhorita…?”
“Senhorita Carstairs.” Cordelia falou.
“Senhorita Carstairs escolheu perfeitamente as cores dela. Quando você entrar em uma sala, senhorita, você vai parecer como a chama de uma vela, atraindo olhos para você como mariposas.”
Senhorita Carstairs. Cordelia não tinha sido Sra. Cordelia Herondale por muito tempo. Ela sabia que não devia se apegar a esse nome. Doía perdê-lo, mas isso seria autopiedade, ela disse a si mesma firmemente. Ela era uma Carstairs, uma Jahanshah. O sangue de Rostam percorria em suas veias. Ela se vestiria de fogo se ela quisesse.
“Um vestido assim precisa de adornos,” A Madame falou pensativamente. “Um colar de rubi e ouro. Essa é uma bela bugiganga, mas muito pequena.” Ela cutucou o colar pequeno de ouro que estava no pescoço de Cordelia. Um pequeno globo em uma corrente de ouro.
Tinha sido um presente de James. Cordelia sabia que devia tirá-lo, mas ela ainda não estava pronta. De algum modo parecia um gesto mais final do que cortar sua runa de casamento.
“Eu compraria rubis para ela, se ela deixasse,” Matthew falou. “Mas ela se recusa.”
Madame pareceu confusa. Se Cordelia era amante de Matthew, como ela claramente concluiu, o que ela estava fazendo rejeitando colares? Ela bateu de levinho no ombro de Cordelia, com pena de seu péssimo senso de negócios. “Tem ótimas joalherias na Rue de la Paix.” Ela falou. “Talvez, se olhar pelas janelas, você mude de ideia.”
“Talvez”, Cordelia falou, segurando a vontade de mostrar a língua para Matthew. “No momento eu preciso me concentrar nas roupas. Como meu amigo explicou, minha mala se perdeu na viagem. Você pode entregar essas roupas no Le Meurice essa tarde?”
“Claro, claro.” A Madame assentiu e foi para o balcão do outro lado da sala, onde ela começou a fazer contas com um lápis em uma nota de vendas.
“Agora ela pensa que sou sua amante.” Cordelia falou para Matthew, colocando as mãos nos quadris.
Ele moveu os ombros. “Aqui é Paris. Amantes são mais comuns que croissants ou xícaras de café desnecessariamente pequenas.”
Cordelia bufou e entrou novamente no vestiário. Ela tentou não pensar nos custos das roupas que ela pediu – o vestido vermelho para tardes frias, e quatro mais: um vestido para caminhada com listras brancas e pretas com uma jaqueta combinando, um de cetim de esmeralda decorado com um verde mais pálido, um ousado vestido preto de cetim para a noite, e um de seda cor de café com um laço dourado adornando. Anna estaria orgulhosa, mas levaria todo seu dinheiro para pagar Matthew de volta. Ele ofereceu para pagar tudo, argumentando que não seria problema para ele – parece que os avós dele pelo lado de seu pai deixaram um grande dinheiro para Henry – mas Cordelia não podia aceitar isso. Ela já tinha tomado muito de Matthew.
Colocando seu vestido velho de volta, Cordelia voltou para encontrar Matthew no salão. Ele já tinha pagado, e Madame confirmou a entrega dos vestidos para aquela tarde. Uma das modelos piscou para Matthew enquanto ele levava Cordelia para fora da loja e para as ruas cheias de Paris.
Era um dia claro, com o céu azul – não tinha nevado em Paris naquele inverno, mesmo que tivesse em Londres, e as ruas estavam frescas, mas brilhantes. Cordelia concordou alegremente em caminhar de volta ao hotel com Matthew ao invés de chamarem um fiacre (o equivalente Parisiense de um táxi). Matthew, com o livro guardado no bolso de seu sobretudo, ainda estava falando sobre o vestido vermelho.
“Você brilhará nos cabarés.” Matthew claramente sentia como se tivesse ganhado algo. “Ninguém olhará para as performers. Bom, para ser justo, as performers vão estar pintadas de vermelho e usando falsos chifres de demônios, então talvez chame um pouco de atenção.”
Ele sorriu para ela – o Sorriso, aquele que transformava os rabugentos mais severos em manteiga derretida e fazia homens e mulheres fortes chorarem. Cordelia também não era imune. Ela sorriu de volta.
“Viu só?” Matthew falou, acenando com o braço na frente deles – a grande avenida Parisiense, os toldos coloridos das lojas, as cafeterias onde mulheres em chapéus esplendidos e homens em calças extraordinariamente listradas se aqueciam com copos de chocolate quente. “Eu prometi que você teria bons momentos.”
Ela estava tendo bons momentos? Cordelia se perguntou. Talvez sim. Até agora ela tinha sido capaz de manter fora da mente como ela horrivelmente falhou com todos que ela se importava. E isso, afinal de contas, era o proposito da jornada. Uma vez que você perdeu tudo, ela pensou, não tinha motivo para aproveitar qualquer pequena felicidade que você pudesse. Não era essa, aliás, a filosofia de Matthew? Não foi por esse motivo que ela foi com ele?
Uma mulher sentada em um café próximo, usando um chapéu carregado de plumas de avestruz e rosas de seda, olhou de Matthew para Cordelia e sorriu – aprovando, Cordelia imaginou, o amor jovem. Meses atrás, Cordelia teria ficado corada; agora ela apenas sorriu. O que importava se as pessoas pensassem coisas erradas sobre ela? Qualquer garota ficaria feliz de ter Matthew como seu pretendente, então que as pessoas pensassem o que quisessem. Era como Matthew lidava com as coisas, no final das contas – não se importando com o que os outros pensavam, apenas sendo ele mesmo, e era impressionante como isso o permitia se mover facilmente pelo mundo.
Sem ele, ela duvidava que tivesse ido para Paris no estado que ela estava. Ele os levou – deprivados de sono, bocejando – da estação de trem até o Le Meurice, onde ele estava só sorrisos, iluminado e brincando com o mensageiro. Poderiam até pensar que ele dormiu em uma cama de penas aquela noite.
Eles dormiram durante a tarde, naquela primeira noite (nos dois quartos separados da suíte de Matthew, que dividia uma sala de estar em comum), e ela sonhou que ela havia confessado todos os seus pecados para o funcionário do Meurice. Veja só, minha mãe está prestes a ter um bebê, e eu posso não estar presente quando isso acontecer porque estou muito ocupada vagabundeando com o melhor amigo do meu marido. Eu costumava carregar a espada mística, Cortana – talvez você a conheça de La Chanson de Roland? Sim, pois bem, eu me tornei indigna de carregá-la e dei-a para o meu irmão, isso, aliás, o coloca em um perigo mortal por não um, mas dois demônios poderosos. Eu deveria me tornar a parabatai da minha melhor amiga, mas agora isso nunca pode acontecer. E eu me permiti pensar que o homem que eu amo pode ter me amado, e não Grace Blackthorn, apesar de ele sempre ter sido honesto e direto a respeito do seu amor por ela.
Quando ela terminou, olhou para cima e viu que o funcionário tinha o rosto de Lilith, cada um de seus olhos um emaranhado de serpentes negras.
Você se saiu bem, pelo menos ao meu ver, querida. Lilith disse, e Cordelia acordou com um grito que ecoou em sua cabeça por minutos depois disso.
Quando ela acordou pela manhã com o som de uma servente abrindo as cortinas, ela olhou em direção a manhã brilhante, os telhados de Paris combinando com o horizonte distante como soldados obedientes. À distância, a torre Eiffel, se erguendo desafiadora contra o céu azul. E no quarto ao lado, Matthew aguardando que ela se juntasse a ele em uma aventura.
Pelos dois dias seguintes, eles comeram juntos – uma vez no incrível Le Train Bleu, dentro da Gare de Lyon, que havia deslumbrado Cordelia: tão lindo, foi como jantar em uma safira cortada! – e andando juntos pelos parques, e feito compras juntos: camisas e ternos para Matthew em Charvet, onde Baudelaire e Verlaine haviam comprado suas roupas, e vestidos e sapatos e um casaco para Cordelia. Ela parou logo antes de permitir que Matthew a comprasse chapéus. Com certeza, ela disse, devem haver limites. Ele sugeriu que o limite fossem guarda-sóis, que eram essenciais para uma vestimenta apropriada, e duplamente úteis como armas. Ela riu, e pensou então como era bom rir.
Talvez o mais surpreendente de tudo, Matthew manteve sua promessa: não bebeu uma gota de álcool. Ele até mesmo suportou o olhar desaprovador dos garçons quando ele negava vinho em suas refeições. Baseado na experiência de quando seu pai bebia, Cordelia esperava que ele sofresse com a abstinência, mas ao contrário, ele estava lúcido e energético, arrastando-a por todo centro de Paris pelos pontos turísticos, museus, monumentos e jardins. Pareceu muito maduro e mundano, o que com certeza era o objetivo. Antes disso, ela apenas havia visto Paris borrada pela janela de uma carruagem.
Agora ela olhava para Matthew e pensava: Ele parece feliz. Honestamente, plenamente feliz. E se essa viagem para Paris não fosse a salvação dela, ela faria pelo menos com que fosse a dele.
Ele pegou seu braço para guiá-la sobre um pedaço de pavimentação quebrada. Cordelia pensou na mulher no café, como ela havia sorrido para eles, pensando que eles eram um casal apaixonado. Se eles apenas soubessem que Matthew não havia nem tentado beijar Cordelia. Ele havia sido o modelo perfeito de um cavalheiro. Uma ou duas vezes, ao se desejarem boa noite na suíte do hotel, ela pensou ter avistado algo em seu olhar, mas talvez ela houvesse imaginado? Ela não tinha certeza do que estava esperando, nem tinha certeza do que sentia sobre – bem, nada.
“Eu estou me divertindo.” Ela disse agora, e realmente sentia isso. Ela sabia que estava mais feliz aqui do que estaria em Londres, onde ela estaria isolada na casa de sua família em Cornwall Gardens. Alastair tentaria ser gentil, e sua mãe estaria chocada e de luto, e o peso de tentar suportar tudo a faria querer morrer.
Isso era melhor. Ela havia mandado uma mensagem curta para sua família do serviço de telegrafia do hotel, avisando-os que ela estava fazendo compras para seu guarda-roupas de primavera em Paris, cuidada por Matthew. Ela suspeitou que eles poderiam achar isso estranho, mas pelo menos, ela esperava, não alarmante.
“Eu estou apenas curiosa,” Ela disse, conforme se aproximavam do hotel, com sua fachada gigantesca, todas as sacadas de ferro fundido com luzes brilhando através das janelas, lançando sombras nas ruas invernais. “Você mencionou que eu iria brilhar em um cabaré? Que cabaré, e quando vamos?”
“Na verdade, hoje a noite.” Matthew disse, abrindo a porta do hotel para ela. “Nós vamos ter uma jornada pelo coração de Hell juntos. Você está preocupada?”
“De jeito nenhum. Eu estou apenas contente por ter escolhido um vestido vermelho. Será temático.”
Matthew riu, mas Cordelia não conseguia não se perguntar: uma jornada para Hell juntos? O que ele queria dizer?
Eles não encontraram Lucie no dia seguinte.
A neve não havia se prendido no chão, e pelo menos as estradas estavam limpas. Balios e Xanthos trotavam entre muros de sebes, sua respiração formando uma nuvem branca no ar. Eles chegaram em Lostwithiel, um pequeno vilarejo no interior, no meio do dia, e Magnus se dirigiu a um bar chamado Wolf’s Bane, para fazer uma investigação. Ele voltou sacudindo a cabeça, e apesar de eles terem ido ao endereço que eles haviam recebido mais cedo, acabou sendo apenas uma fazenda abandonada, o velho teto desabando sobre si.
“Há uma outra opção..” Magnus disse, subindo na carruagem. Flocos de neve finos, que haviam saído dos restos do telhado, estavam presos em suas sobrancelhas pretas. “Em alguma época do século passado, um misterioso cavalheiro de Londres comprou uma capela em ruínas em Peak Rock, em uma vila de pescadores chamada Polperro. Ele restaurou o lugar, mas raramente sai de lá. A fofoca dos Seres do Submundo locais é que ele é um feiticeiro – aparentemente chamas roxas escapam da chaminé as vezes.”
“Eu pensei que um feiticeiro vivesse aqui.” Will disse, indicando a casa queimada.
“Nem todos os rumores são verdadeiros, Herondale, mas todos eles devem ser investigados.” Magnus disse serenamente. “Nós conseguimos chegar em Polperro em poucas horas, de qualquer modo.”
James suspirou interiormente. Mais horas, mais espera. Mais preocupação – com Lucie, com Matthew e Daisy. Sobre seu sonho.
Elas acordam.
“Eu vou entretê-lo com um conto, então,” disse Will. “O conto da minha viagem infernal com Balios de Londres até Caldair Idris, em Gales. Sua mãe, James, estava desaparecida – sequestrada pelo canalha do Mortmain. Eu subi na sela de Balios. ‘Se você já me amou, Balios’, eu gritei, ‘que seus pés sejam rápidos, e me carreguem para a minha querida Tessa antes que o mal caia sobre ela.’ Era uma noite de tempestade, apesar de a tempestade que acontecia em meu peito ser muito mais feroz –”
“Eu não acredito que você ainda não ouviu essa história, James.” Magnus disse suavemente. Os dois estavam compartilhando um dos lados da carruagem, pois havia se tornado rapidamente claro que Will precisava inteiramente do outro lado para gesticulações dramáticas.
Era muito estranho ter ouvido histórias sobre Magnus sua vida inteira e agora estar tão próximo viajando com ele. O que ele havia aprendido em seus dias de viagem era que apesar de suas roupas elaboradas e ares teatrais, que haviam alarmado diversos hospedes, Magnus eram surpreendentemente calmo e prático.
“Eu não ouvi,” disse James. “Não desde a última quinta-feira.”
Ele não disse que para ele era reconfortante ouvir novamente. Era uma história que era contada com frequência para ele e Lucie, que adorava ouvi-la quando mais nova – Will, seguindo seu coração, correndo ao encontro do resguate de sua mãe, que ele ainda não sabia que o amava também.
James encostou sua cabeça contra a janela da carruagem. O cenário se tornou dramático – penhascos apareceram a sua esquerda, e abaixo o alvoroço do mar, ondas quebrando contra as rochas que se esticavam como dedos no oceano cinza azulado. A distância, ele viu uma igreja no topo um monte de terra projetado para o mar, sua silhueta contra o céu, sua torre cinza parecendo, de alguma forma, terrivelmente solitária, terrivelmente longe de tudo.
A voz de seu pai era um som suave em seus ouvidos, as palavras do conto tão familiares quanto uma canção de ninar. James não conseguia não pensar em Cordelia, lendo Ganjavi para ele. O poema favorito dela, a respeito dos amantes condenados, Layla e Majnun. Sua voz mais suave que uma pelica. E quando sua bochecha revelou a lua, mil corações foram vencidos: nenhum orgulho, nenhum escudo, poderiam vencer seu poder. Layla, ela se chamava.
Cordelia sorria para ele sobre a mesa no escritório. O jogo de xadrez estava disposto, e ela tinha um cavalo de marfim em sua mão graciosa. A luz da lareira iluminava seu cabelo, uma auréola de chamas e ouro. “Xadrez é um jogo Persa,” ela disse para ele. “Jogue comido, James.”
“Kheili khoshgeli.” ele disse. Ele encontrou as palavras facilmente: eram as primeiras que ela havia ensinado para ele em Persa, apesar de ele nunca as ter dito para sua esposa antes. Você é tão linda.
Ela corou. Seus lábios tremeram, vermelhos e cheios, seus olhos eram tão escuros, eles brilhavam – eram serpentes negras, movendo-se e erguendo-se, mostrando seus dentes para ele –
“James! Acorde!” A mão de Magnus estavam em seu ombro, o sacudindo. James acordou, com ânsias, seu punho pressionando contra o estômago. Ele estava na carruagem, mas o céu lá fora havia escurecido. Quanto tempo havia se passado? Ele estava sonhando. Sonhando novamente. Dessa vez, Cordelia havia sido arrastada para seus pesadelos. Ele afundou no assento almofadado, sentindo-se enjoado.
Ele olhou para seu pai. Will estava olhando para ele com uma rara expressão severa, seus olhos muito azuis. Ele disse: “James, você tem que nos dizer o que há de errado.”
“Nada.” Havia um gosto amargo na boca de James. “Eu dormi – outro sonho – eu te disse, estou preocupado com Lucie.”
“Você estava chamando por Cordelia.” Will disse. “Eu nunca ouvi alguém parecer sentir tanta dor. Jamie, você tem que falar conosco.”
Magnus olhou de James para Will. Sua mão estava no ombro de James, pesada com o peso dos anéis. Ele disse: “Você choramingou outro nome também. E uma palavra. Um que me deixa bem nervoso.”
Não, James pensou. Não. Fora da janela, o sol estava se pondo, as fazendas entre as colinas brilhavam em um tom escuro de vermelho. “Eu tenho certeza de que eram bobagens.”
Magnus disse: “Você choramingou o nome Lilith.” Ele olhou para James fixamente. “Há muita fofoca no Submundo sobre os recentes acontecimentos em Londres. A história que ouvi não é algo que me agrade. Há rumores, também. Sobre a mãe os demônios. James, você não precisa nos contar o que você sabe. Mas nós iremos descobrir de qualquer jeito.” Ele olhou para Will. “Bem, eu vou. Eu não posso prometer nada por seu pai. Ele sempre foi lento.”
“Mas eu nunca usei um chapéu russo com orelheiras,” disse Will, “ao contrário de alguns indivíduos atualmente presentes.”
“Erros foram cometidos em todos os lados.” disse Magnus. “James?
“Eu não tenho um chapéu com orelheiras.” James disse.
Os dois homens olharam para ele.
“Eu não posso dizer tudo agora.” Disse James, e sentiu seu batimento cardíaco pular: pela primeira vez ele admitiu que havia algo a dizer. “Não se estamos indo encontrar Lucie—”
Magnus balançou a cabeça. “Já está escuro e começando a chover, e todo o caminho de Chapel Hill até o Peak Rock é considerado precário. É mais seguro parar esta noite e partir amanhã de manhã.”
Will assentiu. Estava claro que ele e Magnus discutiram seus planos enquanto James dormia.
“Muito bem,” disse Magnus. “Vamos parar na próxima hospedaria decente. Vou reservar um salão onde podemos conversar em privado. E James – seja o que for, podemos resolver isso.”
James duvidava muito disso, mas parecia inútil dizer. Ele viu o sol desaparecer pela janela em vez disso, levando sua mão ao bolso enquanto o fazia. As luvas de Cordelia, o par que ele havia pegado de sua casa, ainda estavam lá, a pelica macia como pétalas de flores. Ele fechou sua mão em torno de uma delas.
Em um pequeno quarto branco perto do oceano, Lucie Herondale acordava e caia no sono novamente.
Quando ela acordou pela primeira vez, ali na cama estranha que cheirava a palha velha, ela ouviu uma voz – a voz de Jesse – e ela tentou falar para deixá-lo saber que ela estava consciente. Mas antes que ela pudesse, a exaustão tomou conta dela como uma onda fria e cinzenta. Uma exaustão que ela nunca tinha sentido antes, ou mesmo imaginado, profunda como uma ferida de faca. A sua pontinha de consciência tinha se esvaído, derrubando-a na escuridão de sua própria mente, onde o tempo balançava e balançava como um navio em uma tempestade, e ela mal podia dizer se ela estava acordada ou dormindo.
Nos momentos de lucidez, ela havia se atentado a apenas alguns detalhes. O quarto era pequeno, pintado em uma cor de casca de ovo; havia uma única janela através da qual ela podia ver o oceano enquanto suas ondas iam e vinham, um cinza escuro metálico com pontas brancas. Ela podia ouvir o oceano também, ela pensou, mas seu rugido estava distante e muitas vezes misturado com ruídos muito menos agradáveis, e ela não podia dizer o que de sua percepção era real.
Duas pessoas entravam no quarto de vez em quando para checá-la. Uma era Jesse. A outra era Malcolm, uma presença mais tímida; ela sabia de alguma forma que eles estavam na casa dele, a de Cornwall, com o Mar de Cornish batendo nas rochas lá fora.
Ela ainda não tinha sido capaz de falar com nenhum dos dois; quando ela tentou, foi como se sua mente pudesse formar as palavras, mas seu corpo não respondia aos seus comandos. Ela não conseguia nem mexer um dedo para chamar a atenção para o fato de que ela estava consciente, e todos os seus esforços só a enviaram de volta para a escuridão.
A escuridão não era apenas o interior de sua mente. Ela tinha pensado que era, a princípio – a escuridão familiar que vem antes do sono que traz as cores vivas dos sonhos. Mas essa escuridão era um lugar.
E naquele lugar, ela não estava sozinha. Embora parecesse um vazio pelo qual ela flutuava sem propósito, ela podia sentir a presença de outros, não vivos, mas não mortos: incorpóreos, suas almas rodopiando no vazio, mas nunca se encontrando com ela ou um com o outro. Eram infelizes, essas almas. Eles não entendiam o que estava acontecendo com eles. Eles mantinham um lamento constante, um grito sem palavras de dor e tristeza que se enterrava sob a carne dela.
Ela sentiu algo roçar sua bochecha. Isso a trouxe de volta ao seu corpo. Ela estava no quarto branco novamente. O toque em sua bochecha era a mão de Jesse; ela sabia disso sem ser capaz de abrir os olhos, ou mover-se para responder.
“Ela está chorando.” Ele disse.
A voz dele. Havia uma profundidade nela, uma textura que não possuía quando ele era um fantasma.
“Ela pode estar tendo um pesadelo.” A voz de Malcom. “Jesse, ela está bem. Ela gastou grande parte de sua energia trazendo você de volta. Ela precisa descansar.”
“Mas você não vê – isso é por que ela me trouxe de volta.” A voz de Jesse falhou. “Se ela não se curar… eu nunca poderei me perdoar.”
“Esse dom dela. Essa capacidade de alcançar através do véu que separa os vivos dos mortos. Ela teve isso a vida toda. Não é sua culpa; se é de alguém, é de Belial.” Malcom suspirou. “Nós sabemos tão pouco sobre os reinos das sombras além do fim de tudo. E ela foi bem longe neles, para te puxar de volta. Vai levar um pouco de tempo para ela voltar.”
“Mas e se ela estiver presa em algum lugar horrível?” O toque leve veio novamente, a mão de Jesse pressionando seu rosto. Lucie queria tanto virar o rosto na palma da mão dele que até doía. “E se ela precisar de mim para puxá-la, de alguma forma?”
Quando Malcolm falou novamente, sua voz era mais gentil. “Foram dois dias. Se até amanhã ela não estiver acordada, eu posso tentar alcançá-la com magia. Eu vou dar uma olhada nisso, se, enquanto isso, você parar de ficar em cima dela, se preocupando. Se você realmente quer se tornar útil, você pode ir até a aldeia e trazer algumas coisas que precisamos…”
Sua voz vacilou, desaparecendo em silêncio. Lucie estava no lugar escuro novamente. Ela podia ouvir Jesse, sua voz um sussurro distante, quase inaudível. “Lucie, se você pode me ouvir, eu estou aqui. Eu estou cuidando de você.”
Eu estou aqui, ela tentou dizer. Eu posso te ouvir. Mas como antes e antes disso, as palavras foram engolidas pelas sombras, e ela caiu de volta no vazio.
“Quem é o pássaro bonito?” Ariadne Bridgestock disse.
Winston, o papagaio, estreitou os olhos para ela. Ele não ofereceu nenhuma opinião sobre quem poderia ou não ser o pássaro bonito. Seu foco, ela tinha certeza, estava no punhado de castanhas-do-pará em sua mão.
“Eu pensei que podíamos bater um papo,” ela disse a ele, tentando-o com uma castanha. “Os papagaios são feitos para falar. Por que você não me pergunta como foi meu dia até agora?”
Winston a olhou carrancudo. Ele tinha sido um presente de seus pais, muito tempo atrás, quando ela chegou a Londres e ansiava por algo colorido para compensar o que ela achava ser o cinza sombrio da cidade. Winston tinha um corpo verde, uma cabeça cor de ameixa e um caráter de canalha.
Seu olhar deixou claro que não haveria conversa até que ela desse uma castanha-do-pará. Manipulada por um papagaio, pensou Ariadne, e entregou-lhe uma guloseima através das grades. Matthew Fairchild tinha um lindo cachorro amarelo como animal de estimação, e aqui estava ela, presa ao temperamental Lord Byron das aves.
Winston engoliu a castanha e estendeu uma garra, envolvendo-a em uma das barras de sua jaula. “Pássaro bonito,” ele gargalhou. “Pássaro bonito.”
Bom o suficiente, pensou Ariadne. “Meu dia foi péssimo, obrigada por perguntar.” Ela disse, alimentando Winston com outra castanha através das barras. “A casa está tão vazia e solitária. A mãe fica tagarelando, parecendo desanimada e preocupada com o pai. Agora faz cinco dias inteiros que ele se foi. E… nunca pensei que sentiria falta de Grace, mas pelo menos ela seria uma companhia.”
Ela não mencionou Anna. Algumas coisas não eram da conta de Winston.
“Grace.” Ele resmungou. Ele bateu nas barras de sua jaula de uma maneira cheia de significado. “Cidade do Silêncio.”
“Isso mesmo.” Ariadne murmurou. Seu pai e Grace partiram na mesma noite, e suas partidas deviam estar relacionadas, embora Ariadne não soubesse exatamente como. Seu pai correu para a Cidadela Adamant, com a intenção de interrogar Tatiana Blackthorn. Na manhã seguinte, Ariadne e sua mãe descobriram que Grace também havia partido, tendo empacotado suas escassas coisas e saído na calada da noite. Só na hora do almoço que um mensageiro trouxe um bilhete de Charlotte, as avisando que Grace estava sob custódia dos Irmãos do Silêncio, falando com eles sobre os crimes da sua mãe.
A mãe de Ariadne havia desmaiado de agitação com isso. “Oh, ter inconscientemente abrigado uma criminosa sob nosso teto!” Para isso, Ariadne revirou os olhos e salientou que Grace tinha ido por sua própria vontade, não foi arrastada pelos Irmãos do Silêncio, e que era Tatiana Blackthorn quem era a criminosa. Tatiana já havia causado muitos problemas e dor e, se Grace desejasse dar aos Irmãos do Silêncio mais informações sobre suas atividades ilegais, bem, isso era apenas uma boa colaboração.
Ela sabia que era ridículo sentir falta de Grace. Ela raramente tinham se falado. Mas o sentimento de solidão era tão intenso, pensou Ariadne, que apenas ter alguém ali certamente a aliviaria. Haviam pessoas com quem ela desejava falar ativamente, é claro, mas ela estava fazendo o seu melhor para não pensar nessas pessoas. Eles não eram seus amigos, não de verdade. Eles eram amigos de Anna, e Anna –
Seu devaneio foi interrompido pelo tilintar áspero da campainha. Winston, ela viu, tinha adormecido, pendurado de cabeça para baixo. Apressadamente, ela despejou o restante das castanhas em seu prato de comida e correu do jardim de inverno para a frente da casa, esperando por notícias.
Mas sua mãe tinha chegado à porta primeiro. Ariadne parou no topo da escada quando ouviu sua voz. “Consul Fairchild, olá. E Sr. Lightwood. Que gentileza da sua parte aparecerem.” Ela fez uma pausa. “Talvez vocês tenham notícias de Maurice?”
Ariadne podia ouvir o medo na voz de Flora Bridgestock, e isso a paralisou. Pelo menos ela estava na curva da escada, fora da vista da porta. Se Charlotte Fairchild trouxesse notícias — más notícias — estaria mais disposta a contar à mãe dela, sem Ariadne lá.
Ela esperou, agarrando-se ao corrimão da escada, até ouvir a voz gentil de Gideon Lightwood. “Não, Flora. Nós não ouvimos nada desde que ele partiu para a Islândia. Nós estávamos esperando que… bem, que você tivesse noticias.”
“Não,” Sua mãe disse. Ela parecia alheia, distante; Ariadne sabia que estava lutando para não demonstrar seu medo. “Eu achei que se ele estivesse em contato com alguém, ele estaria em contato com o escritório da Cônsul.”
Houve um silêncio constrangedor. Ariadne, sentindo-se tonta, suspeitou que Gideon e Charlotte desejavam nunca terem vindo.
“Você não ouviu nada da Cidadela?” Sua mãe disse finalmente. “Das Irmãs de Ferro?”
“Não.” Admitiu a Cônsul. “Mas elas são um grupo reservado, mesmo nas melhores circunstâncias. Tatiana é provavelmente um assunto difícil de questionar; é possível que elas simplesmente sintam que ainda não há notícias.”
“Mas você enviou mensagens para elas.” Flora disse. “E elas não responderam. Talvez – o Instituto de Reykjavik?” Ariadne pensou ter ouvido um sinal do medo de sua mãe passar pelos muros de suas boas maneiras. “Eu sei que não podemos rastreá-lo, por causa da água, mas eles poderiam. Eu poderia lhe dar algo dele para enviar a eles. Um lenço ou –”
“Flora”. A Cônsul falou com sua voz mais gentil; Ariadne adivinhou que ela estava, agora, segurando delicadamente a mão de sua mãe. “Está uma missão do maior sigilo; Maurice seria o primeiro a exigir que não alarmássemos a Clave em geral. Enviaremos uma segunda mensagem à Cidadela e, se não obtivermos resposta, iniciaremos uma investigação própria. Eu prometo.”
A mãe de Ariadne murmurou que sim, mas Ariadne estava preocupada. A Cônsul e seu conselheiro mais próximo não a visitavam pessoalmente porque estavam apenas ansiosos por noticias. Algo os preocupou; algo que não haviam mencionado a Flora.
Charlotte e Gidein se despediram entre outras garantias. Quando Ariadne ouviu a porta se fechar, ela desceu as escadas. Sua mãe, que estava parada imóvel na entrada, sobressaltou-se quando a viu. Ariadne fez o possível para dar a impressão de que acabara de chegar.
“Ouvi vozes”, ela disse. “Foi a Cônsul que acabou de sair?”
Sua mãe assentiu vagamente, perdida em pensamentos. “E Giden Lightwood. Eles queriam saber se tínhamos recebido uma mensagem de seu pai. E aqui eu esperava que eles tivessem vindo para me dizer que eles tiveram notícias dele.”
“Está tudo bem, mamãe.” Ariadne segurou as mãos de sua mãe. “Vcoê sabe como o pai é. Ele vai ser cuidado e levar seu tempo e aprender tudo o que puder.”
“Oh, eu sei, mas… Foi ideia dele enviar Tatiana para a Cidadela Adamant em primeiro lugar. Se algo deu errado –”
“Foi um ato de misericórdia.” Ariadne disse com firmeza. “Não a trancando na Cidade do Silêncio, onde ela sem dúvidas teria enlouquecido mais do que já estava.”
“Mas não sabíamos o que sabemos agora.” Sua mãe disse. “Se Tatiana Blackthorn teve algo a ver com Leviathan atacando o Instituto… isso não é um ato de uma louca merecedora de pena. É uma guerra contra os Nephilins. É o ato de um adversário perigoso, aliado ao maior dos males.”
“Ela estava na Cidadela Adamant quando Leviathan atacou,” Ariadne apontou. “Como ela poderia ser responsável sem que as Irmãs de Ferro soubessem? Não se preocupe, mamãe,” Ela acrescentou. “Vai ficar tudo bem.”
Sua mãe suspirou. “Ari”, ela disse, “Você cresceu e se tornou uma garota tão adorável. Eu sentirei tanto a sua falta, quando algum bom homem a escolher e você for se casar.”
Ariadne fez um ruído evasivo.
“Oh, eu sei, foi uma experiência terrível com aquele Charles.” Sua mãe disse. “Você vai encontrar um homem melhor com o tempo.”
Ela respirou fundo e endireitou os ombros, e não pela primeira vez, Ariadne foi lembrada de que sua mãe era uma Caçadora de Sombras como qualquer outra, e enfrentar dificuldades era parte de seu trabalho. “Pelo Anjo!” Ela disse, em um tom novo e enérgico. “A vida continua e não podemos ficar no vestíbulo e nos afligir o dia todo. Eu tenho muito o que cuidar… a esposa do Inquisidor deve manter a casa enquanto o mestre está fora e todas essas coisas…”
Ariadne murmurou seu consentimento e beijou sua mãe na bochecha antes de voltar a subir as escadas. No meio do corredor, ela passou pela porta do escritório de seu pai, que estava entreaberta. Ela empurrou a porta ligeiramente aberta e olhou para dentro.
O estudo tinha sido deixado em uma bagunça alarmante. Se Ariadne esperava que olhar para dentro do escritório de Maurice Bridgestock a fizesse se sentir mais próxima de seu pai, ela ficou desapontada – ao invés disso, a fez se sentir mais preocupada. Seu pai era meticuloso e organizado, e se orgulhava disso. Ele não tolerava bagunça. Ela sabia que ele tinha saído as pressas, mas o estado da sala mostrou como ele deve ter entrado em pânico.
Quase sem pensar, ela se viu endireitando-se: empurrando a cadeira para baixo da mesa, soltando as cortinas que estavam dobradas sobre um abajur, levando as xícaras para o corredor onde a governante as encontraria. As cinzas ficaram frias na frente da grelha; ela pegou a pequena vassoura de latão para levá-los de volta para a lareira –
E fez uma pausa.
Algo branco brilhou entre as cinzas da lareira. Ela podia reconhecer a caligrafia elegante de seu pai em uma pilha de papel carbonizado. Ela se inclinou para mais perto – que tipo de notas seu pai sentiu que precisava destruir antes de deixar Londres?
Ela tirou os papéis da lareira, sacudiu as cinzas deles e começou a ler. Ao fazê-lo, sentiu uma secura penetrante na garganta, como se estivesse prestes a sufocar.
Rabiscadas no topo da primeira página estavam as palavras Herondale/Lightwood.
Era uma transgressão óbvia continuar lendo, mas o nome Lightwood queimou suas letras em seus olhos; ela não podia se desviar disso. Se havia algum tipo de problema enfrentado pela família de Anna, como ela poderia se recusar a saber?
As páginas estavam marcadas com os anos: 1896, 1892, 1900. Ela folheou as folhas e sentiu um dedo frio subir pela nuca.
Na mão de seu pai não havia contas de dinheiro gasto ou ganho, mas descrições de eventos. Eventos envolvendo Herondales e Lightwoods.
Não, não evento. Erros, Erros. Pecados. Era um registro de qualquer ação dos Herondales e Lightwoods que havia causado o que seu pai considerava problemas; qualquer coisa que pudesse ser caracterizada como irresponsável ou mal considerada foi anotada aqui.
03/12/01: G2.L ausente da reunião do Conselho sem explicação. CF irritado.
09/06/98: WW em Waterloo diz que WH/TH recusaram a reunião, fazendo com que eles perturbassem o Mercado.
01/08/95: Chefe do Instituto de Oslo se recusa a encontrar-se com TH, citando sua herança.
Ariadne sentiu-se mal. A maioria dos atores observados pareciam mesquinhos, pequenos ou boatos; o relato de que o chefe do Instituto de Oslo não se encontraria com Tessa Herondale, uma das senhoras mais gentis que Ariadne já conhecera, era revoltante. O chefe do Instituto de Oslo deveria ter sido repreendido; em vez disso, o evento foi registrado aqui como se tivesse sido culpa dos Herondale.
O que foi isso? O que seu pai estava pensando?
No fundo da pilha havia outra coisa. Uma folha de papel de carta branco-creme. Não notas, mas uma carta. Ariadne ergue a missiva do resto da pilha, seus olhos examinando as linhas em descrença.
“Ariadne?”
Rapidamente, Ariadne enfiou a carta no corpete de seu vestido, antes de se levantar para encarar sua mãe. De pé na porta, Flora estava franzindo a testa, com olhos semicerrados. Quando ela falou, foi sem o calor que ela teve na conversa no andar de baixo. “Ariadne, o que você está fazendo?”
[Traduzido por Equipe IdrisBR. Dê os créditos. Não reproduza sem autorização.]