Resenha: Filha – Manoela Sawitzki
“Filha”
Manoela Sawitzki
Arte de Capa: Omar Salomão
Companhia das Letras – 2025 – 128 páginas
Numa cidade pequena do Rio Grande do Sul, Manu é uma jovem às vésperas da adolescência. Dentro e fora do ambiente doméstico, onde a masculinidade domina, ela percebe que ser mulher é uma condição que limita seu lugar no mundo – uma fonte de privação e angústia. Cedo a garota chega à conclusão de que precisa encontrar uma rota de fuga, de preferência bem longe dali.
Já adulta, morando em outra cidade, Manu recebe a notícia de que o pai está muito doente e decide visitá-lo. O retorno é um caminho doloroso: por um lado, a força a se haver com mágoas do passado; por outro, oferece a chance de ressignificar uma relação marcada pela incompreensão, pelo silêncio e pela violência.
Neste romance com fortes tintas autobiográficas, Manoela Sawitzki joga luz sobre o processo de se tornar mulher, a delicadeza das dinâmicas familiares e o modo como o luto é capaz de reconfigurar vínculos.
Feroz. Se fosse definir “Filha” em uma única palavra, definitivamente seria Feliz, em todos seus significados. Feroz por ser uma história selvagem sobre uma garota, desde sua infância até se tornar adulta e sua procura por se libertar de um ambiente que a diminuía e a colocava em uma caixa da qual ela sentir necessidade de fugir. Feroz pelo próprio instinto de fera que a personagem principal, Manu, aprendeu a ter, com sentidos aguçados sobre como reagir perto de uma figura que a oprimia. Feroz por é uma história cruel sobre crescer e se tornar uma nova versão de si mesma enquanto ainda tenta cicatrizar feridas que provavelmente nunca estarão completamente fechadas. No resumo, este livro é corajoso, forte, feroz, com sentimentos saltando das páginas, e definitivamente é um livro que ficará com quem o ler por um bom tempo.
Tirando minha irmã mais velha e, mais tarde, o irmão mais próximo de mim em idade, minha família costuma se equilibrar na linha tênue da vida cotidiana. A Loja do pai, onde a mãe também passa a trabalhar, deixando o cargo de secretária no Hospital Militar, é o assunto dominante. Em geral, o tema da Loja se confunde com o do dinheiro ou com o problema de ter que gastá-lo. Depois da Loja, vêm os funcionários da Loja, seguidos dos parentes — pessoas que raras vezes tomam decisões acertadas ou se mostram dignas de elogios sinceros. Quando estamos todos juntos, quase não há assuntos além desses, e a televisão está sempre ligada se encarregando dos hiatos. Ninguém sabe exatamente o que o outro pensa ou como se sente. Sentimentos são reprimidos e palavras afetuosas estão fora do roteiro. Também não há espaço pra conversas filosóficas ou exercícios inúteis de imaginação — o que eu faço mais que qualquer outra coisa. É uma questão de estratégia: uns ficam mais ou menos imóveis, lidando com o que os afeta diretamente, enquanto outros procuram escapar. Faço parte do segundo grupo.
Manu, nome da protagonista que é somente revelado com 40% da leitura concluída em uma cena que é o pesadelo de qualquer adolescente, nasceu em uma família de 7 filhos no interior do Rio grande do Sul, em uma cidade somente referida como S. Desde sempre a garota entendeu que o casamento de seus pais não era funcional, e desde pequena compreendeu que o mundo ao seu redor era composto por muitas notas que compunha uma canção que não soava tão melodiosa assim.
Os irmãos, cada um a seu modo, tentava fugir de espancamentos dado por seu pai, grande promessa de tudo e que realizou realmente quase nada. Comerciante da cidade e figura local com certa relevância, o homem tinha a plena certeza de que poderia se ressentir da esposa e dos filhos porque ele poderia ter conquistado muito, apesar de nunca realmente chegar a lugar nenhum. Essa sensação e ressentimento o leva a um lugar no qual se sentia um verdadeiro Rei dentro de casa, com mandos e desmandos, de uma forma que deixou sua marca em todos os filhos, como vocês podem imaginar.
De tempos em tempos, o pai também bate na mãe. Acontece sempre durante uma discussão, à noite, depois do expediente comercial, mas principalmente numa janela que se abre entre as sextas-feiras e os domingos. Nas noites de sexta, ele começa a beber pra aliviar as tensões dos negócios que vão quase sempre mal, em grande parte por nossa culpa. A inflação também galopa, desvalorizando do dia pra noite os parcos trocados reunidos, e a situação é tão calamitosa que, na Loja, tabelas plastificadas são produzidas num intervalo de poucos dias, porque seria impossível remarcar todas as mercadorias na velocidade da flutuação dos preços. E, nas mesmas sextas, a mãe deve fazer seus próprios balanços e constatar mais uma vez que sua vida não é divertida nem privilegiada, que não se casou com um homem galante, rico e carinhoso como sonhou um dia. Em vez disso, trabalha fora e em casa e tem que lidar com um marido carrancudo, endividado e bêbado e uma ninhada de filhos ingratos. Logo, não há motivos pra ficar de bom humor.
A pequena Manu queria ir embora daquela cidade e escapar, e assim o faz quando chega aos 17 anos e meio, indo estudar na capital do estado. Mas não há como se fugir de uma família assim, as marcas deixadas ainda a acompanhando, e toda trama, contada através dos olhos da garota, depois adolescente e, por fim, adulta, é um grande exercício que nos faz pensar sobre o relacionamentos entre pais, mães e filhos e a forma como tudo, absolutamente tudo isso, define a pessoa que um dia você será.
“Filha” é realmente um livro com impacto bastante pessoal, de acordo com sua vivência. Normalmente livros são mesmo experiencias individuais onde entra a personalidade do leitor e a época na qual está sendo lido para se chegar a um veredito, mas este livro em especifico é mais ainda porque pra mim era impossível responder as perguntas que a narrativa me levantou porque a minha vivência familiar direta (deixo claro, a família direta) foi a mais amorosa possível, então como pode um pai ter esse poder e ser uma fugira tão sombria? Não sei responder, mas sei que a nossa protagonista entrega uma complexidade de sentimentos que vão desde o ódio até o respeito, até um tardio relacionamento mais amoroso.
Com dezessete, já ouvi falar mal dos homens com riqueza de detalhes e já vi a maior parte deles se comportar das piores formas possíveis. Sinto medo deles, e atração por eles, e então mais medo, e em cada estágio do ciclo intuo que alguma coisa no meu corpo me põe em perigo permanente. Há sinais por toda parte de que habito um mundo feito por eles e pra eles em primeiro lugar. Só então viemos nós, mais falantes, bandeirosas e, por isso mesmo, tão mais vulneráveis. E caímos sem oferecer resistência, competimos, nos atacamos mutuamente, retocamos, dissimulamos, humilhamos e moldamos na urgência de alcançá-los, existindo obedientes às suas regras. Em momentos cruciais, não percebemos a desvantagem, nem nos insurgimos contra ela, como se houvesse uma ordem natural por trás disso, assim como as estações se sucedem e cada elemento ocupa seu próprio espaço e função no planeta, transtornando tudo caso avance pra além de seus limites. Muitas vão adiante, reproduzindo os métodos e a violência deles. Não contra eles: contra as outras e contra si mesmas.
Foi meu primeiro livro da autora Manoela Sawitzki, apesar de já ter ouvido falar bastante do trabalho anterior dela (“Vinco”, de 2022) e confesso que o respeito que tive pela mulher escrever este livro com tom autobiografico foi imenso. A coragem de expor feridas, traumas e dores em um livro é para deixar qualquer um admirado, mesmo que o leitor não saiba aonde começa e termina a linha teunue que pode separar a ficção da narrativa e de eventos passados. Não consegui parar de me fazer tantas perguntas depois de ler esta narrativa de marcha rápida, mas acho que a principal foi: “O que faz você ser filha de alguém?” – e essa resposta não depende só de você porque muito destes relacionamentos não nascem só por insistinto e sim são construídos ao longo da vida.
Estive na cabine de leitura com a autora e agradeço a oportunidade de ler a obra antecipadamente, que ainda está em pré-venda.
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