Resenha: Ainda estou aqui – Marcelo Rubens Paiva
“Ainda estou aqui”
Marcelo Rubens Paiva
Suma – 2017 – 272 páginas
Eunice Paiva é uma mulher de muitas vidas. Casada com o deputado Rubens Paiva, esteve ao seu lado quando foi cassado e exilado, em 1964. Mãe de cinco filhos, passou a criá-los sozinha quando, em 1971, o marido foi preso por agentes da ditadura, a seguir torturado e morto. Em meio à dor, ela se reinventou. Voltou a estudar, tornou-se advogada, defensora dos direitos indígenas. Nunca chorou na frente das câmeras.
Ao falar de Eunice, e de sua última luta, desta vez contra o Alzheimer, Marcelo Rubens Paiva fala também da memória, da infância e do filho. E mergulha num momento obscuro da história recente brasileira para contar ― e tentar entender ― o que de fato ocorreu com Rubens Paiva, seu pai, naquele janeiro de 1971.
Hoje é uma terça-feira. Terminei a leitura de “Ainda estou aqui” no domingo e fui ao cinema ontem, segunda-feira, ver o filme. Dizer que estou inundada de sentimentos por esta história real seria um eufemismo e acho que todos vocês que me leem podem entender o que quero dizer, com aqueles momentos em que trechos do livro e do filme voltam a minha memória, me lembrando dos horrores de um passado recente que muitas famílias enfrentaram em nosso pais, do poder de um livro de memórias repleto de significado e de atuações poderosas em um filme. Tudo isso é o retrato do melhor que o Brasil pode nos oferecer, tirando tudo do que de pior o nosso país também pode oferecer para seus cidadãos. É um misto de orgulho com tristeza, um lembrete forte de que o ser humano sempre será o pior de todos animais porque ele não ataca outros iguais quando está em risco e sim, em alguns casos, porque pode – e não consigo imaginar nada mais assustador do que isso.
Para os que não sabem, o livro “Ainda estou aqui” foi publicado em 2015. Escrito por Marcelo Rubens Paiva, já ai consagrado autor nacional e roteirista, o livro contava sobre a experiencia pessoal do autor ao desaparecimento do seu pai, Rubens Paiva, ex-deputado cassado que foi preso dentro de sua casa em uma manhã de janeiro de 1971, saindo de sua casa no Rio de Janeiro retirado por militares e nunca mais retornou. Nem mesmo seu corpo foi recuperado. Tudo que ficou foram as memórias de uma família em luto contra algo muito maior do que eles, a dor da saudade e a luta da matriarca da família, Eunice, para terminar de criar os filhos e tentar encontrar sentido na ausência que seu marido de 18 anos deixou para todos. É brutal, mas pior, porque é real. Aconteceu. E este ano ganhou um filme inspirado na história com Fernanda Torres como Eunice e Selton Melo como Rubens. Aqui falarei sobre os dois, separadamente, sem falar detalhes, mesmo que os eventos sejam de conhecimentos publico, mas já aviso que você precisa ler o livro e ver o filme, que são, ao mesmo tempo, uma história melancólica, triste e poderosa, mas também uma aula história – e precisamos aprender com o passado para não repetirmos no futuro.
A memória não é a capacidade de organizar e classificar recordações em arquivos. Não existem arquivos. A acumulação do passado sobre o passado prossegue até o nosso fim, memória sobre memória, através de memórias que se misturam, deturpadas, bloqueadas, recorrentes ou escondidas, ou reprimidas, ou blindadas por um instinto de sobrevivência. Uma fogueira no alto ajudaria. Mas ela se apaga com o tempo. E não conseguimos navegar de volta para casa.
O livro é um livro autobiográfico, contado em primeira pessoa por um Marcelo que estava dormindo na hora que sua vida mudou: com 4 irmãs mais velhas, acostumado com uma casa repleta de amigos, sons e conversa, mas que naquela manhã acordou para encontrar homens armados que haviam tirado parte de sua família. Demorando para entender o que aconteceu e ainda saindo para jogar futebol, o jovem de 11 anos só veio entender melhor quando tomou “uma dura” de um dos militares. Na manhã seguinte, sua mãe, Eunice, foi levada para prestar depoimentos também, junto com Eliana, a filha mais velha na casa, uma jovem de 15 anos. Deixaram Marcelo com duas irmãs, uma mais velha de 12 e a mais nova de 10, junto com a funcionária de casa, Maria José, trancados na casa. O que veio a seguir foi algo que acredito que o garotinho ainda não compreendia: seus avós chegaram de São Paulo, as irmã Eliana foi liberada e os irmãos foram separados, enviados para lugares diferentes, enquanto sua mãe ficou 12 duas presa. Quando saiu, estava mais magra, mas a personalidade forte estava lá.
Filha de um casal italiano, criada no meio desta família, Eunice pegou todas características que tanto ouvimos sobre italianos e as virou de ponta cabeça: centrada, era uma fortaleza que não tinha demonstrações de amor, mas cuidou da família com ferocidade. Não deixou nenhuma pessoa ver o seu sofrimento, nunca tirou fotos chorando, nunca permitiu que os filhos também demonstrassem publicamente a dor que enfrentavam e que também não dividia com eles tudo que ia descobrindo no meio ao que imperava em nossos país naquela época. Já sabendo que o marido estava morto, Eunice reuniu os filhos, partiu de volta para o Estado de São Paulo, onde as famílias de ambos ainda moravam e ingressou na faculdade de direito, tudo depois dos 41 anos, com todos filhos ainda menores de 18 anos. Mas a luta dela ainda estava começando porque obviamente o marido tinha o status de desaparecido oficialmente, já como os militares afirmavam que o estavam transferindo quando “subversivos” pararam o carro e o levaram com ele. Esta era a versão oficial e algumas grandes figuras atestavam isso, enquanto outras contaram o que realmente tinha acontecido: Rubens não voltaria.
Se tudo é recriação de algo já inventado, nada é invenção.
Sei que repetirei lá na frente o que narrei antes. Este livro sobre memória nasce assim. Histórias são recuperadas. Umas puxam outras. As histórias vão e voltam com mais detalhes e referências. Faço uma releitura da releitura da vida da minha família. Reescreverei o que já escrevi.
Ainda vejo o facho, não quero me afastar. Existem várias formas de contar a história sobre memória e a falta dela. Procurarei a fogueira no alto quando o mar me puxar. Vou para voltar. Quem nadou em mar aberto sabe: antes de lutar desesperadamente contra a correnteza, é melhor deixar-se levar por instantes; é preciso ter calma e coragem; a correnteza enfraquece, então saímos fora.
Como o próprio Marcelo fala, memórias não são cronológicas e o livro também não segue uma linha narrativa linear, indo e voltando no tempo, misturando os fatos com os pensamentos e impressões do passado que ele ainda tinha, enriquecendo a narrativa de uma forma como vi poucas vezes. Não é só um livro de memórias, é também um desabafo, momentos íntimos e pensamentos de uma família que lidava literalmente com o luto e dor sem poder enterrar e ter uma despedida do pai e marido. Em diversos pontos, há o questionamento sobre o motivo do pai ainda acreditar que poderia ficar no Brasil enquanto amigos e suas famílias abandonavam o país, e são questionamentos totalmente validos de um filho que lidou com as consequências das escolhas do pai, assim como Eunicec também questiona algumas dessas decisões, fazendo o leitor compreender que aquela família passou por todos estágios que uma situação inimaginável provocaria.
Mas não pense que a família parou no tempo e ficou estagnada: como já mencionei, Eunice foi estudar e se tornar advogada, tentando encontrar provas e conseguir um simples atestado de óbito porque não havia corpo, não havia confissão, não havia nada que pudesse ajudar juridicamente seus pedidos. Parece absurdo ler isso, mas aconteceu por 25 anos, a certidão somente sendo emitida em 1996. Agora pare um minuto e pense sobre isso: são 25 anos que a vida não para, tudo acontecia, os filhos cresciam, Eunice continuava a se tornar uma mulher forte e agora trabalhando como advogada, mas aquela ferida insistia em continuar aberta, sem ninguém aceitar a responsabilidade sobre a dor que causaram naquela família. Há idas ao passado, dados sobre a família de Rubens e de Eunice separadamente, o trabalho dele como engenheiro e até mesmo sobre o curto período no qual o homem foi Deputado Federal, logo caçado pelo inicio do Golpe Militar em 1964, tendo de fugir do país e também sua volta. Como já falei, o livro funciona perfeitamente como uma aula de história da época, tudo bem simples, até mesmo sobre os famigerados Ais, tudo muito, muito bem explicado e simplificado.
Minha mãe esteve na capa de todos os jornais no dia seguinte. Com o atestado de óbito erguido, alegre. Uma batalha foi vencida. V de vitória. Ela nunca faria uma cara triste. Bem que tentaram. Por anos, fotógrafos nos queriam tristes nas fotos. Tivemos nossa guerra fria contra o pieguismo da imprensa. Com o tempo, aprendemos a selecionar qual órgão evitar e como nos portar. Éramos “A família vítima da ditadura”. Apesar de preferirmos a legenda “Uma das muitas famílias vítimas de muitas ditaduras”. Não faríamos o papelão de sairmos tristes nas fotos. Nosso inimigo não iria nos derrubar. Família Rubens Paiva não chora na frente das câmeras, não faz cara de coitada, não se faz de vítima e não é revanchista. Trocou o comando, continua em pé e na luta. A família Rubens Paiva não é a vítima da ditadura, o país que é. O crime foi contra a humanidade, não contra Rubens Paiva. Precisamos estar saudáveis, bronzeados para a contraofensiva. Angústia, lágrimas, ódio, apenas entre quatro paredes. Foi a minha mãe quem ditou o tom, ela quem nos ensinou.
Com o tempo, mais e mais informações foram sendo coletadas e chegou aos nomes de quem executou os acontecimentos daquelas noites entre 20 e provavelmente 22 de janeiro de 1971 quando a vida de Rubens foi ceifada, mas se você espera algum tipo de punição, sinto lhe decepcionar. O livro funciona muito, muito bem em explicar todos caminhos que aconteceram para isso não acontecer, trazendo a sensação que o filho de Rubens provavelmente também sentiu: frustração. Eunice se reinventou, conseguiu se tornar uma renomada advogada, mas havia uma nova batalha em sua vida: o Alzheimer, com o qual foi diagnosticada em 2004. Uma das principais mensagens do livro é nos lembrar deste legado das vitimas deste regime que precisávamos levar as novas gerações e fazer as pessoas compreenderem melhor sobre uma época sombria em nossa história. Precisamos lembrar quando falhamos como sociedade. Precisamos contar essa história mais e mais vezes, até entendermos e entrar em nossos ossos, para que nunca mais se repita.
E aqui entra a adaptação cinematográfica desta história: Walter Salles, o mesmo diretor do consagrado “Central do Brasil”, que frequentava a casa de Rubens Paiva e era (ainda é) amigo de Ana Lúcia, uma das 4 filhas do ex-deputado. Como alguém que viu de perto a tragedia que se abateu sobre a família, Salles usa o livro como material para guiar ao contar uma história que coloca Eunice no centro, deixando de lado diversos detalhes sobre o horror que Rubens passou preso e que vieram a tona, assim como atenuar o momento que os militares chegam na casa da família Paiva. Mas há Fernanda Torres neste filme e em todas as cenas que ela aparece, parece que não há nada mais a se fazer do que olhar para a tela e tentar entender o que seu olhar e corpo dizem, ao contrário da expressão sempre estoica e calma. Há um desespero, um fogo contido na Eunice da tela demonstrada forma magistral. E, completando, ver em tela a cena de Rubens sendo levado com calma de dentro de casa e nunca mais voltar nos traz uma sensação que não senti enquanto lia: as pessoas não estavam seguradas dentro de casa e se você não está seguro dentro da sua própria casa, onde você pode estar? A sensação de violação, de impotência, de melancolia toma conta da maior parte do filme, que quando termina, te faz querer dar um abraço em todos filhos de Eunice e pedir desculpa por um crime que você não estava sequer nascido quando aconteceu, mas é parte responsabilidade nossa como sociedade.
— A tática do desaparecimento político é a mais cruel de todas, pois a vítima permanece viva no dia a dia. Mata-se a vítima e condena-se toda a família a uma tortura psicológica eterna. Fazemos cara de fortes, dizemos que a vida continua, mas não podemos deixar de conviver com esse sentimento de injustiça.
A força de Eunice fica clara na trama do filme. A passagem do tempo mostra que os anos se foram, mas a luta persistia, em 3 fases de sua vida: em 71, aos 41 anos; em 96, quando a certidão de óbito do marido lhe é entregue e já idosa em 2014, com o Alzheimer já toldando quem ela era, em uma comovente cena final interpretada pela impecável Fernanda Montenegro, que, claro, entrega tudo em seu limitado tempo de tela. Não vou dizer que o filme é perfeito e claro que muito se perde na transposição do papel para a tela, como os questionamentos que Marcelo sente sobre o pai e suas motivações, mas a história está lá, potente, forte, com algumas alterações sim, mas que traz a tona, mais uma vez, como as coisas foram brutais e não há como se apagar isso. Selton Mello como Rubens Paiva transmitiu a aura de pai divertido, marido apaixonado e detentor de um sorriso largo, feliz com a vida que tinha, e se eu pudesse ter dado a ele os momentos finais que Rubens supostamente teve, eu teria porque teria sido potente vê-lo o que dizem que ele repetiu preso. O filme preenche cada pedaço de tempo que tem, e as 2:15 horas de filme se tornam poucas para o tamanho do que foi contado. Há diversas participações menores que eu sequer sabia e não vou entregar aqui, que me surpreenderam e também contribuem para um filme que definitivamente entra no meu top 5 de filmes nacionais favoritos de todos tempos.
Terminei falando bem mais do que desejava mas não me contive porque essa história merece ser falada, contada e transmitida, tudo como já falei. Você precisa conhecer Rubens Paiva, ex-deputado morto durante uma época que não podemos esquecer. Você precisa conhecer Eunice Paiva, viúva de Rubens, que terminou de criar 5 filhos sozinha, se tornou advogada, ativista, especialista em Direito Indígena, mãe. Você precisa conhecer Marcelo, filho de um pai morto e uma mãe que fugiu a todos estereótipos, que cuidou dele quando sofreu um acidente e se tornou tetraplégico (essa é uma outra história que também ganhará resenha aqui, contada no livro “Feliz ano novo”) e ganhador do Prêmio Jabuti, presente em sua vida em quadros em programas tipo Fantástico. Você precisa conhecer essa historia. Você precisa conhecer a história do seu país e entender o tamanho das feridas deixadas. Você precisa conhecer e entender que parte disso ainda está aqui.
Assista ao trailer do filme:
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