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Resenha: Animais tropicais – Javier A. Contreras


“Animais tropicais”
Javier A. Contreras
Arte de Capa: Celso Longo
Companhia das Letras – 2025 – 176 páginas

É na beleza geográfica da Terra Luminosa, microcosmo de um Brasil ainda arcaico, que uma dupla investiga o desaparecimento de um jornalista, busca que culminará em um massacre naquela paisagem bucólica. Neste vertiginoso romance de Javier A. Contreras, a intensidade do thriller se alia à reflexão de como se forma o espectro de um país e de seu povo.

Uma dupla de jornalistas, Emílio e Sara, viaja a uma comunidade isolada de floricultores atrás de informações sobre um colega misteriosamente desaparecido. Enquanto os dois são forçados a permanecer na região após um acidente, conhecemos também a história da Terra Luminosa, que se entrelaça à vida de João Salvador ― filho do capataz do homem mais poderoso daquelas terras. É nesse espaço bucólico que a família Salvador ascende e, ao mesmo tempo que chega ao poder após décadas de subserviência, tenta preservar no lugar uma espécie de pureza, afastada da degeneração das grandes cidades.

Em Animais tropicais, Javier A. Contreras passeia por diferentes gêneros, como o thriller e o folk horror, reafirmando sua versatilidade e costumaz reflexão crítica, sempre em constante diálogo com os descaminhos sociais e políticos da América Latina e suas adesões ao autoritarismo.

Muitos não gostam do gênero terror por associarem somente com assombrações, espíritos malignos e exorcismos, e com isso perdem o poder das criticas e das analogias do gênero. Sei que sou suspeita para falar sobre porque quem acompanha nossas resenhas, sabe que eu sou fã do genero e não escondo de ninguém – inclusive sou muito fã de Stephen King e vocês podem ter certeza disso com a quantidade de resenhas que tem neste site sobre ele. Com esse histórico, não me parece surpresa para ninguém o meu desejo de ler “Animais tropicais”.

Prometendo um folk horror, ou, em bom português, um terror folclorico, parecia uma leitura que iria me prometer uma boa noite de leitura. O que não esperava era que fosse uma leitura tão boa como foi porque o texto não entregou só o interior como deveria entregar, mas também misturou uma passagem da nossa história que não conversamos muito sobre e que casou perfeitamente com a história. Capacitismo, suspense, mortes violentas e um certo ar de paranoia fez deste livro um dos meus horrores nacionais favoritos de todos os tempos.

Se ele passou por cima do carro, o corpo só pode estar naquela direção…
Tentavam olhar para fora, mas era quase impossível devido ao dilúvio que não cessava, ao para-brisa estilhaçado e aos vidros embaçados pelo calor do corpo e pela respiração afobada deles. Ainda que as luzes dos faróis ajudassem a melhorar a visibilidade da pista, era difícil enxergar qualquer evidência ou rastro do que havia sido atropelado. Nos estreitos acostamentos da estrada, era ainda pior; a vegetação alta não permitia saber o que haveria ali. A verdade é que nenhum dos dois tinha coragem suficiente para tomar aquela decisão porque, no íntimo, sabiam que haviam entrado em um estado de negação.
Acho que temos que ir lá fora checar o que aconteceu…

A trama abre com um ponto de vista que não sabemos quem está falando – ou, no caso, pensando. A principio, há estranheza e já confusão, mas logo terminamos essa parte e somos apresentados e um homem chamado Otávio que chega à Terra Luminosa, uma cidade no interior do Brasil. Sem dizer a região, somente podemos presumir por todas as pistas colocadas ali e ali, e nem em que época da nossa história estamos, a qual também presumimos pelo carro que o homem termina andando depois de ser confrontado por qual motivo chegou ao lugar. Tudo parece antigo e com costumes de outras epocas de nossa história ao mesmo tempo que pequenos pedaços de um grande quebra-cabeças vão sendo colocados na frente do leitor.

O livro é dividido em 4 partes e o que parece um simples ponto de vista em primeira pessoa no começo vai se tornando maior e contando a história de um jovem que nasceu e spfreu a vida inteira com um capacitismo capaz de enjoar até mesmo os mais fortes de estômago. Enquanto isso, na narrativa no que parece ser o tempo linear vai mostrando mais de uma história sobre dois jornalistas, Emilio e Sara, que estão em busca de pesquisar como e por qual motivo o chefe de ambos, Dirceu, desapareceu, em uma colônia de Terra Luminosa. O lugar, chamado Colonia Lumiar, parece ser somente uma pequena comunidade onde se cultiva flores, e confesso que foi aqui que me apaixonei pela trama porque tudo que um folk horror pode entregar está presente.

Depois, em silêncio absoluto, eles apanharam cada qual suas coisas e subiram a estrada a pé por cerca de vinte minutos até o topo. Na parte de cima da montanha, ainda tiveram que percorrer mais de um quilômetro por um caminho de terra e pedra que terminava bem na entrada da colônia, onde uma grande placa talhada em madeira anunciava com letras brancas bem delineadas: bem-vindo à colônia lumiar; e logo abaixo, como em um slogan, em letras menores: onde a terra e o céu se encontram. Acesos e sobreviventes à chuva, dois lampiões a querosene protegidos dentro de casas de madeira para pássaros estavam posicionados ao lado da placa e serviram como faróis para que chegassem até ali.

Ao chegarem na pequena colônia, Emilia e Sara, que estavam em um carro, são atingidos por uma grande chuva. Sem visibilidade da estrada precária, atropelam alguém – mas atropelam mesmo? O carro não mais funcionam e eles terminam percorrendo todo trajeto à pé, chegando no lugar e sendo recepcionados com uma parente gentiliza. Sara fica profundamente afetada por terem atropelado alguém, enquanto Emílio está mais propenso a ignorar tudo que aconteceu, enquanto tenta se misturar ao lugar logo sendo apresentados ao líder do lugar: João Lucas, é o filho mais novo da família Salvador e bastante diferente de seus irmãos. Mas não espere saber tudo sobre a trama de cara porque, como já falei, a trama não está seguindo uma linha cronológica certa e ainda apresenta o ponto de vista de alguém que só vamos entender quem é mais para o meio do livro, e ainda vamos ficar com essa voz e com tudo que ela nos contou por um bom tempo em nossa mente.

Enquanto vamos sendo apresentados a verdadeiras cenas de terror folclórico através dos olhos de Emilio e Sara, vamos compreendendo as outras tramas que parecem acontecer tão separadas, mas que se chocam em um determinado ponto de uma trama rápida e que sabia muito bem o que queria entregar, com reviravoltas sobre os papeis de cada um – a grande reviravolta só consegui pegar em mais da metade do livro, apesar das dicas. Há sim, cenas de morte que são capazes de embrulhar o estomago e nem todas perguntas são respondidas, principalmente o final de um personagem bastante querido. E se você se pergunta sobre a critica, ela está lá, bem na nossa cara, pronta para ser apreciada porque quem define quem são os monstros? Para mim, o monstro sempre será aquele que faz o mal, mas, para ele, ele próprio é o monstro? Acredito que não.

Me desculpem. Nosso furgão acabou de regressar e tenho más notícias…
Explicou que alguns pontos de deslizamento haviam sido registrados na estrada da serra que levava à Terra Luminosa; que já estavam acostumados a isso e que quase sempre bastava enviar uma equipe para efetuar a limpeza dos galhos e da terra acumulada. Daquela vez, contudo, em um desses locais, a pista havia rachado e cedido, o que provocara a interdição integral da estrada.
Nosso furgão teve que voltar do meio do caminho. A polícia rodoviária e um engenheiro da prefeitura já estão lá, do outro lado da pista. A rachadura é grande e disseram que talvez demore alguns dias até que possam pelo menos criar um acesso provisório. Pra completar o caos, um raio atingiu a torre referência de telefonia e internet da Terra Luminosa. Por isso estamos sem nenhum sinal. Sobre isso não conseguimos mais informações, mas já aconteceu outras vezes e não deve demorar tanto para restabelecerem…

E caso você tenha notado através das quotes acima, algo que me chamou bastante atenção foi a falta de aspas ou hífens para assinlar os diálogos. Como não li os outros livros de Javier A. Contreras (fato que preciso remediar), não posso afirmar que é uma característica dele em seus livros ou é algo especial desta narrativa para dar mais celeridade a trama e confesso que se era este o intento, funcionou, mas só depois de o estranhamento inicial cessou.

Animais tropicais” me ganhou por ser direto e entregar personagens bons, que não pensam sobre o motivo e reagem quando precisam (se bem que se eu fosse a Sara, eu jamais teria acompanhado a Rebecca – sim, sou desconfiada ainda mais em paisagens bucólicas do interior que me lembram filmes como “Midsommar”), sem contar o que acontece no final. Toda explicação e o uso da máxima “os monstros, para os monstros, sempre serão os outros” me pegou de uma forma boa. Enfim, há animais tropicais entre nós – e vocês deveriam lê-los.

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