“A cena acontece durante as páginas 170 a 174 (edição americana) de Cidade das Cinzas, no capítulo 8, A Corte Seelie, aqui do ponto de vista de Jace. Eu até dei um nome para ela – “Porque é Amargo” (Because it is Bitter). Porque, cara, Jace está amargo aqui.” –Cassandra Clare
Esse é um extra divulgado por Cassandra Clare. A icônica cena da Corte Seelie, de Cidade das Cinzas, no ponto de vista do Jace.
“Mas eu gosto
Porque é amargo,
E porque é meu coração” – Stephen Crane
– Eu sei que não vou deixar a minha irmã aqui na sua corte – disse Jace – e já que não há nada que se possa aprender sobre ela ou sobre mim, talvez você poderia nos fazer o favor de soltá-la.
A Rainha sorriu. Era um sorriso lindo e terrível. A Rainha era uma mulher adorável. Ela tinha aquela amabilidade inumana que as fadas tinham, que era mais como a amabilidade de um cristal duro do que a beleza de uma humana. A Rainha não aparentava ter uma idade em particular: ela poderia ter dezesseis ou quarenta e cinco anos. Jace supôs que haviam aqueles que a achavam atraente – pessoas tinham morrido pelo amor da Rainha – mas ela deu a ele um sentimento frio no peito, como se ele tivesse engolido água gelada muito depressa.
– E se eu lhe dissesse que ela poderia ser libertada com um beijo?
Foi Clary quem respondeu, espantada:
– Você quer que Jace a beije?
Quando a Rainha e a corte riram, a sensação gelada no peito de Jace se intensificou. Clary não entendia as fadas, ele pensou. Ele tinha tentado explicar, mas não tinha explicação, não de verdade. O que quer que fosse que a Rainha queria deles, não era um beijo dele. Ela poderia ter exigido isso sem todo aquele show e bobagens. O que ela queria era vê-los presos e lutando como borboletas. Era uma coisa que a imortalidade fazia com você, ele sempre pensava: retardava seus sentidos, suas emoções. As respostas afiadas, incontroláveis e lamentáveis dos seres humanos eram para fadas como sangue fresco para um vampiro. Uma coisa viva. Uma coisa que eles mesmos não tinham.
– Apesar do charme – a Rainha disse, lançando um olhar em direção a Jace. Seus olhos eram verdes, como os de Clary, mas nada como os de Clary – esse beijo não irá libertar a garota.
– Eu poderia beijar Meliorn – sugeriu Isabelle se encolhendo.
A Rainha balançou a cabeça devagar.
– Nem esse. Nem nenhum da minha corte.
Isabelle jogou as mãos para o alto; Jace queria perguntar a ela o que ela esperava – beijar Meliorn não a incomodaria, então obviamente a Rainha não ligaria. Ele supôs que tinha sido legal da parte dela oferecer, mas Iz, pelo menos, deveria saber melhor. Ela já tinha lidado com fadas antes.
Talvez não bastasse saber como o Povo das Fadas pensava, Jace imaginou. Talvez fosse saber como pessoas que gostavam da crueldade por causa da crueldade pensavam. Isabelle era imprudente e algumas vezes vaidosa, mas ela não era cruel. Ela jogou o cabelo negro para trás e fez uma careta.
– Eu não vou beijar nenhum de vocês – ela disse firmemente. – Só pra ficar oficial.
– Isso nem é necessário – disse Simon, indo para frente. – Se um beijo é tudo…
Ele deu um passo em direção a Clary, que não se moveu. O gelo no peito de Jace se tornou fogo líquido. Ele cerrou as mãos nos lados do corpo enquanto Simon pegou Clary gentilmente pelos braços e olhou para baixo, para o rosto dela. Ela colocou as mãos na cintura de Simon como se já tivesse feito isso milhões de vezes antes. Talvez ela tivesse, pelo que ele sabia. Ele sabia que Simon a amava. Ele soube desde que ele os viu juntos naquela cafeteria idiota, o outro praticamente engasgando para conseguir tirar as palavras “eu te amo” da boca enquanto Clary olhava pela sala inquietamente viva, seus olhos verdes percorrendo tudo. “Ela não está interessada em você, garoto mundano” ele pensou com satisfação. “Se manda”. E depois se surpreendeu por ter pensado isso. Que diferença fazia para ele o que essa garota que ele mal conhecia pensava?
Aquilo parecia ser seculos atrás. Ela não era mais uma garota que ele mal conhecia: ela era Clary. Ela era a única coisa na vida dele que importava mais que qualquer outra coisa e vendo Simon colocar as mãos nela, onde ele queria colocar, o fez se sentir enjoado e fraco e mortalmente com raiva. A vontade de ir até lá e separar os dois era tão forte que ele mal podia respirar.
Clary olhou para ele de relance, o cabelo vermelho escorregando pelo ombro. Ela parecia preocupada, o que já era ruim o suficiente. Ele não podia suportar o pensamento de que ela poderia estar com pena dele. Ele olhou para o outro lado rápido e pegou o olhar da Rainha Seelie, brilhando com prazer: agora, era disso que ela estava atrás. A dor, a agonia deles.
– Não – disse a Rainha para Simon em uma voz como o som macio do corte de uma faca. – Também não é isso que eu quero.
Simon se afastou de Clary, relutante. Alívio bateu pelas veias de Jace como sangue, abafando o que seus amigos estavam dizendo. Por um momento tudo que ele se importava era que ele não teria que assistir Clary beijando Simon. Então Clary pareceu entrar em foco: ela estava muito pálida e ele não podia evitar imaginar o que ela estava pensando. Ela estava desapontada por não ter sido beijada por Simon? Aliviada como ele? Ele pensou em Simon beijando a mão dela mais cedo naquele dia e empurrou a memória para longe ferozmente, ainda encarando a irmã. “Olhe para cima”, ele pensou. “Olhe para mim. Se você me ama vai olhar para mim.”
Ela cruzou os braços em volta do peito, como fazia quando estava com frio ou chateada. Mas ela não olhou para cima. A conversa continuou ao redor deles: quem ia beijar quem, o que iria acontecer. Uma raiva desesperada subiu pelo peito de Jace e, como sempre, ele encontrou sua escapatória em um comentário sarcástico.
– Bem, eu não vou beijar o mundano – ele disse. – Prefiro ficar aqui em baixo e apodrecer.
– Para sempre? – disse Simon. Seus olhos eram grandes e escuros e sérios. – Para sempre é um tempo terrivelmente longo.
Jace olhou de volta para aqueles olhos. Simon provavelmente era uma boa pessoa, ele pensou. Ele amava Clary e queria cuidar dela e fazê-la feliz. Ele provavelmente seria um namorado espetacular. Logicamente, Jace sabia, era exatamente o que ele deveria querer para sua irmã. Mas ele não conseguia olhar para Simon sem querer matar alguém.
– Eu sabia – disse ele sordidamente. – Você quer me beijar, não quer?
– É claro que não, mas se…
– Eu acho que é verdade o que dizem. Não há homens heterossexuais nas trincheiras.
– É ateus, idiota. – Simon estava vermelho vivo. – Não há ateus nas trincheiras.
Foi a Rainha quem os interrompeu, inclinando-se para frente de modo que seu pescoço branco e o peito ficaram exibidos acima do decote de seu vestido decotado.
– Por mais que isso tudo seja muito divertido, o beijo que irá libertar a menina é o beijo que ela mais deseja – disse ela. – Apenas isso e nada mais.
Simon foi de vermelho para branco. Se o beijo que Clary mais desejava não era o de Simon, então… o jeito que a rainha estava olhando para Jace, de Jace para Clary, respondeu aquilo.
O coração de Jace começou a bater forte. Ele encontrou os olhos da Rainha.
– Por quê está fazendo isso?
– Prefiro pensar que estou oferecendo uma bênção a você – disse ela. – O desejo nem sempre diminui com o desgosto. Nem pode ser outorgado, como um favor, aos mais merecedores. E como minhas palavras impõem a minha magia, você pode saber a verdade. Se ela não deseja seu beijo, não será libertada.
Jace sentiu sangue inundar seu rosto. Ele estava vagamente consciente de Simon argumentando que Jace e Clary eram irmãos, que não estava certo, mas ele o ignorou. A Rainha Seelie estava olhando para ele e os olhos dela eram como o mar antes de uma tempestade mortífera. E ele queria dizer “obrigado”. Obrigado.
E aquilo era a coisa mais perigosa de todas, ele pensou, enquanto ao redor dele seus companheiros discutiam se Clary e Jace tinham que fazer isso, ou o que qualquer um deles estaria dispostos a fazer para escaparem da Corte. Permitir que a Rainha lhe desse algo que você queria – muito, de verdade – era se colocar no poder dela. Como ela tinha olhado para ele e sabido? Ele se perguntou. Que isso era o que ele pensava, queria, sonhava e acordava arfando e suando? Que quando ele pensou, realmente pensou, sobre o fato de que ele poderia nunca mais beijar Clary novamente, ele queria morrer ou machucar ou sangrar tanto que ele ia para o sótão e treinava sozinho por horas até que estava tão exausto que não tinha escolha além de desmaiar, exausto. Ele tinha hematomas de manhã, hematomas e cortes e pele ralada e se ele pudesse nomear todos esses ferimentos eles teriam o mesmo nome: Clary, Clary, Clary.
Simon ainda estava falando, dizendo alguma coisa, com raiva de novo.
– Você não tem que fazer isso, Clary, é um truque…
– Não é um truque – disse Jace. A calma em sua própria voz o surpreendeu. – É um teste.
Ele olhou para Clary. Ela estava mordendo o lábio, a mão enrolando um cacho do cabelo. Os gestos tão característicos, tão parte dela, despedaçaram o coração dele. Simon estava discutindo com Isabelle agora enquanto a Rainha Seelie recostava e os assistia como um gato elegante e entretido.
Isabelle soou exasperada:
– Quem se importa, de qualquer forma? É só um beijo.
– É verdade – disse Jace.
Clary olhou para cima então, finalmente, e seus olhos verdes descansaram nele. Ele se moveu em direção a ela e, como sempre, o resto do mundo caiu até que eram só eles, como se eles estivessem em em um palco iluminado por um holofote em um auditório vazio. Ele colocou a mão no ombro dela, virando-a para encará-lo. Ela tinha parado de morder o lábio e as bochechas estavam coradas, os olhos de um verde brilhante. Ele conseguia sentir a tensão no próprio corpo, o esforço para se segurar, para não puxá-la contra ele e aproveitar essa única chance por mais perigosa e estúpida e imprudente que fosse, e beijá-la do jeito que ele pensou que nunca na vida poderia beijá-la novamente.
– É só um beijo – disse ele e ouviu a dureza na própria voz, e imaginou se ela tinha ouvido também.
Não que importasse – não tinha jeito de esconder. Era demais. Ele nunca tinha querido assim antes. Sempre houveram garotas. Ele já tinha se perguntado, na calada da noite, encarando as paredes vazias do quarto dele, o que fazia Clary tão diferente. Ela era bonita, mas outras garotas eram bonitas. Ela era inteligente, mas havia outras garotas inteligentes. Ela o entendia, ria quando ele ria, viu através das defesas que ele pôs para cobrir o que estava por baixo. Não havia Jace Wayland mais real do que aquele que ele via nos olhos dela quando ela olhava para ele.
Mas ainda assim, talvez, ele poderia achar tudo aquilo em outro lugar. Pessoas se apaixonavam e perdiam e continuavam suas vidas. Ele não sabia porque ele não conseguia. Ele não sabia porque e nem queria saber. Tudo que ele sabia era que qualquer coisa que ele tivesse que dever ao Inferno ou ao Céu por essa chance, ele ia fazer com que valesse a pena.
Ele procurou e pegou as mãos dela, entrelaçando seus dedos, e sussurrou no ouvido dela.
– Você pode fechar os olhos e pensar na Inglaterra, se quiser – ele disse.
Os olhos dela se fecharam tremulando, os cílios acobreados se alinhando contra a pele pálida e frágil:
– Mas eu nunca fui para a Inglaterra – ela disse e a suavidade, a ansiedade na voz dela quase o desfez.
Ele nunca tinha beijado uma garota sem saber se ela queria, geralmente mais do que ele, e esta era Clary e ele não sabia o que ela queria. Ele deslizou as mãos pelas mangas da blusa molhada e colada dela, até os ombros. Os olhos dela ainda estavam fechados mas ela estremeceu e se inclinou para ele – quase nada, mas foi permissão suficiente.
Sua boca desceu sobre a dela. E foi isso. Todo o autocontrole que ele exercia sobre as últimas semanas se foram, como água caindo por uma represa quebrada. Os braços dela subiram ao redor do pescoço dele e ele a puxou contra ele. Ela era suave e flexível mas surpreendentemente forte como ninguém que ele já havia segurado. As mãos dele se achataram contra as costas dela, pressionando-a contra ele, e ela estava nas pontas dos pés, beijando-o tão ferozmente quanto ele a beijava. Ele moveu sua língua alo longo dos lábios dela, abrindo a boca dela contra a dele, e ela tinha gosto salgado e doce como água de fada. Ele a apertou com mais força, embaraçando suas mãos no cabelo dela, tentando dizer com a pressão da sua boca na dela todas das coisas que ele nunca poderia dizer em voz alta: Eu te amo. Eu te amo e não me importo que você seja minha irmã. Não fique com ele, não queira ele, não vá com ele. Esteja comigo. Me queira. Fique comigo. Eu não sei como ficar sem você.
Suas mãos deslizaram até a cintura dela, puxando-a contra ele, perdido em sensações que espiralavam através dos nervos e sangue e ossos, e ele não tinha ideia do que teria feito ou dito em seguida, se teria sido algo que ele nunca poderia fingir ou retirar, mas ele ouviu uma risadinha – A Rainha das Fadas – e aquilo o sacudiu de volta para a realidade. Ele se afastou de Clary antes que fosse tarde demais, destravando as mãos dela de seu pescoço e dando um passo para trás. Foi como cortar fora a própria pele, mas ele o fez.
Clary o encarava. Seus lábios estavam separados, suas mãos ainda abertas. Os olhos dela estavam arregalados. Atrás dela, Isabelle os olhava boquiaberta. Simon parecia que estava prestes a vomitar.
“Ela é minha irmã” pensou Jace. “Minha irmã”. Mas as palavras não significavam nada. Elas poderiam muito bem estar em outra língua. Se poderia ter havido qualquer esperança de que ele poderia vir a pensar em Clary somente como sua irmã, isso – o que tinha acabado de acontecer entre eles – tinha explodido tudo em mil pedaços, como um meteorito colidindo com a superfície da Terra. Ele tentou ler o rosto de Clary – ela tinha sentido o mesmo? Ela aparentava que não queria nada mais além de se virar e sair correndo. “Eu sei que você sentiu”, ele disse para ela com os olhos, e foi metade um triunfo amargo, metade súplica. “Eu sei que você sentiu também.” Mas não havia resposta no rosto dela. Ela enrolou os braços em volta de si mesmo, do jeito que ela sempre fazia quando estava chateada, e se abraçou, como se estivesse com frio. Ela desviou o olhar para longe dele.
Jace sentiu como se seu coração estivesse sendo apertado por um punho. Ele girou para a Rainha:
– Foi bom o suficiente? – perguntou ele. – Serviu para diverti-los?
A Rainha lançou um olhar a ele: especial e secreto e dividido entre eles. “Você a avisou sobre nós” o olhar parecia dizer. “Que nós a machucaríamos, quebrá-la como se pode quebrar um galho entre os dedos. Mas você, que achou que não podia ser tocado – é você que acabou quebrado.”
– Nós estamos muito entretidos – ela disse. – Mas não tanto, eu acho, quanto vocês dois.
[Tradução feita por Mariana Perazio, postado e divulgado com a autorização.]