Trecho de Lin e Mariam

Trecho de “O Portador da Espada” postado na Tor.com.

Eu sinto muito.” Não parecendo nada arrependido, Dom Lafont – um homem nervoso e pequeno com óculos de aro preto empoleirados em seu nariz verrucoso – balançou a cabeça. “Não é possível.

Lin Caster colocou a mão espalmada sobre a bancada de madeira que os separava. A livraria “The Lafont” no quarteirão dos Escolares era um local empoeirado, as paredes enfeitadas com pôsteres antigos e esboços de Castellane e de figuras históricas do passado. Atrás do balcão, estantes de livros se estendiam: alguns brilhantes e novos, em jackets de couro coloridos, alguns simples, provas encadernadas produzidas pela Academie para ajudar alunos em seus estudos.

Era um desses – uma dissertação de doenças hereditárias por Ibn Sena, uma professora de medicina – que Lin queria colocar as mãos. Ela inclinou o pescoço, tentando ver qual exatamente era o manuscrito na prateleira, mas a loja era muito mal iluminada.

Dom Lafont”, Lin começou, “Eu tenho sido uma boa cliente sua. Uma cliente frequente. Não tem sido assim?” Ela virou para sua amiga Mariam Duhary, que estava assistindo a interação com preocupação no olhar. “Mariam, diga a ele. Não existe motivo para que ele não possa me vender um livro.

Eu sei disso, Srta Caster”, Lafont protestou. “Mas existem regras.” Ele franziu o nariz como um coelho. “O que você está me pedindo é para o estudo de alunos de medicina da Academie. Você não é uma estudante da Academie. Se você tivesse uma carta de Justicia, talvez-

Lin queria bater a mão no balcão. O homem estava sendo ridículo. Os Ashkar, como ele sabia perfeitamente bem, não podiam ir para a Academie como estudantes, ou pedir a Justicia por assistência. Essas eram as Leis – Leis ruins, que faziam o estomago dela retorcer, o sangue correr azedo em suas veias. Mas as coisas eram assim desde a fundação de Castellane. “Para estudantes”, ela falou, fazendo o esforço para soar calma. “Esses manuscritos são gratuitos. Eu estou oferecendo um pagamento. Diga seu preço, Dom Lafont.

Dom Lafont esticou mais as mãos. “Não é uma questão de dinheiro. É uma questão de regras.

Lin é uma médica”, Mariam falou. Ela era uma garota pequena, tão delicada quanto um passarinho, mas o olhar dela era firme e penetrante. “Como você já sabe. Ela curou sua gota no outono passado, não?

Ainda volta, às vezes”, ele falou amargamente. “Toda vez que eu como faisão

Que eu lhe falei para não comer, Lin pensou.

Lin apenas quer adquirir mais sabedoria que permitirá que ela trate mais doentes e alivie o sofrimento”, Mariam falou. “Você certamente não vai se opor a isso.

Lafont resmungou. “Eu sei que seu próprio pessoal pensa que você não devia praticar medicina”, ele disse para Lin. “Eu sei que você não deve tentar pagar por conhecimento não destinado ao seu tipo de gente.” O homem se inclinou no balcão. “Minha sugestão é que se vire com o que sabe – seus pequenos amuletos e truques de magica. Você já não tem conhecimento o suficiente, Ashkar?

Naquele momento Lin conseguiu se ver pelos olhos do vendedor. Alguém sem poder, alguém claramente diferente, quase forasteira. E sim, ela vestia, como a lei de Castellane exigia, as cores tradicionais dos Ashkar: um vestido cinza, uma jaqueta azul. Em torno do pescoço dela, o símbolo tradicional do povo dela: um circulo vazio dourado em uma corrente. Tinha sido da mãe de Lin antes.

Mas mais do que isso destacava ela. Estava no sangue dela, na forma que ela caminhava e falava, em algo invisível que ela, as vezes, sentia pairar por cima dela como uma nevoa fina. Ela era conhecidamente, claramente, Ashkar – diferente de uma forma que os marinheiros que lotavam o porto de Castellane não eram. Viajantes tinham uma linha e lugares claramente delineados. Os Ashkar não.

Você já não tem o bastante, sua Ashkar? Era o que toda Castellane sentia em algum grau. A Separação destruiu toda a magica, erradicou do mundo. Tudo menos pequenos feitiços e talismãs de gematria, a magia ancestral dos Ashkar. Por causa disso, o povo de Lin era odiado e invejado em igual medida. Por causa disso, Leis especiais se aplicavam a eles. Por causa disso, não permitiam eles fora do Sault, a comunidade murada que eles eram obrigados a morar assim que o sol se punha. Como se não pudessem confiar neles nas sombras.

Lafont moveu a cabeça, se virando. “Tem um motivo para livros assim não pararem em mãos como as suas. Volte se quiser comprar qualquer outra coisa. Minha porta estará sempre aberta.

O mundo pareceu escurecer na visão de Lin. Ela respirou fundo, suas mãos pequenas se fechando em punhos –

Um momento depois ela se viu fora da livraria, sendo arrastada pela rua por Mariam. “Mariam, o que-?

Você ia agredi-lo.”, Mariam falou sem folego. Ela parou entre uma pousada para estudantes e uma loja que vendia tinta e penas. “E então ele teria chamado os Vigilantes, e você teria sido multada, no mínimo. Você sabe que eles não gostam muito de Ashkar.

Mariam, Lin sabia, estava certa. Mesmo assim. “É inacreditável”, ela falou. “Aquele intolerante! Ele não me objetificou ao meu conhecimento quando quis que o tratasse de graça, não é? E agora é mantenha suas mãos sujas longe dos nossos livros. Como se o conhecimento pertencesse a apenas um tipo de pessoa –

Lin!” Mariam interrompeu com um sussurro. “As pessoas estão encarando.

Lin olhou em volta. Do outro lado da rua tinha uma loja de chá, já cheia com estudantes aproveitando um dia livre de aulas. Um grupo que se reuniu em uma mesa de madeira do lado de fora bebia karak – um chá bem apimentado com creme – e jogavam cartas; alguns outros estavam olhando para ela, parecendo se divertir. Um estudante bonito com um cabelo ruivo bagunçado e usando uma coroa de papel piscou na direção dela.

E se eu pedisse a um deles para comprar o livro? Lin pensou. Mas não; não funcionaria. Malbushim tinha o costume de suspeitar de Ashkar, e mesmo Dom Lafont veria através de tal estrategia logo depois que ela tentou comprá-lo. Lin retornou a piscada do jovem com uma encarada firme. Ele colocou a mão em seu peito, como se indicando ter sido ferido por ela e se virou de volta para seus companheiros.

Nós devíamos voltar para casa”, Mariam falou, meio ansiosa. “As ruas vão fervilhar em uma hora ou duas.

Isso era verdade. Era o dia que a independência de Castellane era celebrada, com discursos, musicas e desfiles que duravam a noite. Visitas aos templos para agradecimento eram feitas pela manhã; pelo fim da tarde, o palácio começaria a distribuir cerveja grátis para a população e as celebrações ficariam consideravelmente mais turbulentas. Pela Lei, todo Ashkar devia estar preso dentro do Sault no cair da noite; não seria bom ser pego nas ruas lotadas.

Você está certa”, Lin suspirou. “Melhor evitarmos a Grande Estrada, estará lotada. Se nós atalharmos por essas ruas laterais, nós chegaremos na Praça Valeriana.

Mariam sorriu. Ela ainda tinha covinhas, mesmo que ela tivesse ficado tão terrivelmente pequena que até as roupas feitas pra ela pareciam folgadas. “Lidere o caminho.

Lin pegou a mão de Mariam. Parecia como um monte de galhos na mão dela. Xingando Lafont silenciosamente, ela começou a caminhar, guiando sua melhor amiga através da inclinação acentuada e caminhos de paralelepípedo da Rua Estudantil, a parte mais antiga da cidade. Aqui as ruas estreitas tinham nomes de filósofos e cientistas Imperiais e se enrolavam em torno da imponente cúpula da universidade. Construída com um granito cinza, a cúpula com pilares da Academie erguia-se como uma nuvem de tempestade sobre os telhados de lojas e pensões frequentadas pelos estudantes e seus tutores.

Em um dia normal, os estudantes em seus uniformes pretos enferrujados passariam correndo entre as aulas, com sacolas de couro preenchidas com livros penduradas em suas costas. Houve um tempo em que Lin se perguntou como seria estudar na Academie, mas as portas eram fechadas para os Ashkar, e ela abandonou aquele sonho.

Ainda assim, o bairro dos Escolares mexia com a imaginação dela. Vitrines coloridas vendiam itens de interesse para estudantes: papeis e penas, tinta e ferramentas de medição, comida e vinhos baratos. Os prédios antigos pareciam se inclinar juntos para a frente como crianças cansadas trocando segredos. Em sua mente, Lin imaginava como seria viver em uma pensão junto com outros estudantes – ficar acordada até tarde para ler à luz de uma vela de sebo, mesas com pernas bambas e marcadas de tinta, janelas estreitas com painéis de diamante com vista para a Colina do Poeta e para a Grande Biblioteca. Correr para as aulas matinais com uma lamparina acesa na mão, parte de uma multidão de alunos ansiosos.

Ela sabia que provavelmente não era tão romântico assim na vida real, mas ainda assim ela gostava de imaginar a atmosfera de livros empoeirados e companheiros estudando. Ela aprendeu muito na Casa dos Médicos no Sault, de uma serie de professores severos e sérios, mas não poderia ser descrito como convívio.

Olhando em volta agora, ela conseguia sentir a atmosfera festiva no ar. Janelas estavam abertas, e estudantes se agrupavam em sacadas e até telhados, conversando animadamente enquanto bebiam vinho barato. Lampadas vermelhas e douradas, as cores de Castellane, estavam penduradas em laços de sacada em sacada nas janelas acima delas. Painéis brilhantes de lojas balançavam na brisa; o ar aqui tinha cheiro de papel e tinta, poeira e cera de vela.

Você ainda está braba”, Mariam observou enquanto elas cruzavam o Caminho dos Historiadores. As duas foram para o lado para deixar um grupo de estudantes embriagados passar. “Você está vermelha. Você só fica com essa cor quando está furiosa.” Ela bateu com seu ombro no de Lin. “Era um livro importante? Eu sei que Lafont disse que era um livro de estudos, mas não consigo imaginar nada que a Academie ensine que você já não saiba.

Fiel Mariam. Lin queria apertar a mão dela. Queria dizer: Eu preciso por sua causa. Porque você está ficando mais magra e mais pálida durante todo ano, porque nenhum dos meus remédios ajudou que você melhorasse ao menos um pouco. Porque você não consegue subir uma escada ou caminhar por uma rua sem perder todo seu folego. Porque nenhum dos meus livros consegue me dizer o que tem de errado com você, menos ainda como tratá-la. Porque o conhecimento que tínhamos antes da Separação está pela metade, mas eu não posso abandonar a esperança sem tentar tudo, Mariam. Você me ensinou isso.

Ao invés disso, Lin moveu a cabeça. “Foi o que ele disse, que nem o meu povo quer que eu seja uma médica.

Mariam pareceu compreender. Ela sabia mais do que quase todo mundo o quanto Lin lutou para convencer os idosos do Sault que ela, uma mulher, devia aprender medicina. Eles deram permissão, não acreditando que Lin passaria no teste de medicina. Ainda era prazeroso lembrar que a pontuação foi muito mais alta que a dos estudantes homens. “Não foi todo o Sault, Lin. Tinham pessoas que queriam que você fosse bem sucedida. E pense o quão fácil vai ser para a próxima garota que quiser ser uma médica. Você abriu o caminho. Não se importe com os que duvidam.

A ideia agradava Lin. Seria maravilhoso ter mais médicas mulheres no Sault. Pessoas com as quais ela pudesse trocar conhecimento, conversar sobre tratamentos e pacientes. Os homens a ignoravam. Ela esperou que a aceitassem depois que ela passou nos exames, e então novamente no primeiro ano de prática, mas a atitude deles não mudou. Uma mulher não devia ser médica, sendo boa nisso ou não. “Farei meu melhor para não me importar com eles”, ela falou. “Eu sou terrivelmente teimosa.

[Traduzido por Equipe IdrisBR. Dê os créditos. Não reproduza sem autorização.]

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