Resenha: Degola – Monique Malcher
“Degola”
Monique Malcher
Arte de capa: Alceu Chiesorin Nunes
Companhia das Letras – 2025 – 176 páginas
A Zona Franca de Manaus atraiu para o Amazonas milhares de migrantes em busca de uma vida melhor. Era símbolo do progresso. Sem recursos, a família de Sol, protagonista de Degola, vai morar em uma ocupação. Quando chovia, tudo virava barro, e era com ele que Sol modelava pequenas criaturas que depois esmagava. Era gostoso destruir o que ela mesma havia criado. As galinhas ficavam em redor dela, estranhando a menina, temerosas. Aquele lugar tinha mesmo fama de perigoso. A vida de todos e de tudo – humanos, animais, plantas, solo, água e ar – era violentada.
Já adulta, Sol sabia que precisava desfazer, ao menos em parte, o que dela foi feito quando criança. Aprender a nadar se torna o caminho para essa transformação. Um rito de passagem, que a autora descreve com beleza e originalidade magníficas.
Degola é um delicado exercício de imaginação e de linguagem. A precisão e a incisividade da poesia se combinam com a complexidade narrativa do romance. O resultado é um pequeno milagre da escrita.
Que fase maravilhosa estamos tendo na literatura nacional, meus amigos. Terminei a leitura de “Degola” e ainda estou pensando na pequena Sol, a personagem central da trama, que acompanhamos em duas fases de sua vida, ainda sofrendo por ela e por tudo que ela enfrentou em sua vida. Acredito que beleza da literatura é justamente essa, se perpetuar nas pessoas mesmo quando a leitura é findada. E posso afirmar para qualquer um que me lê que é o caso deste livro, de uma poesia, delicadeza, tristeza e crueza ímpar.
A trama começa com a pequena Sol com sua mãe em uma viatura policial, deixando o leitor curioso sobre como elas tinham parado lá. Aos poucos somos apresentados ao Mundo Novo, invasão na cidade de Manaus, onde a pequena morava com a mãe. Mas há toda uma história de amor e tragédia até se encontrarem no lugar, levando o leitor entre idas ao passado e o presente com uma mulher adulta com 36 anos revivendo a jornada que a levou até se tornar uma veterinária e fora daquele mundo de escassez e barro.
Sou no agora adulta e encaro essa parte que não me cabe decidir se boa ou ruim. A dor não me coroou com ensinamentos, só me fez demorar a gostar de estar viva no mundo que os adultos me apresentaram, e agora preciso estar em paz com ele enquanto lembro. Falo do que conheço. Como posso ousar tirar dos dentes felicidade? Existem lugares dos quais não conseguia lembrar — até pegar casca — como cheguei, nem como me despedi. A ocupação foi um deles.
Não há memória que invencione o que meus olhos presenciaram, pela primeira vez conheci o que era o fim e ele me acompanha toda vez que, mesmo que em pensamento, volto para aquele pedaço de Manaus. Fomos buscar a morte na terra prometida, esse foi nosso novo testamento.
Sol é uma garota de 9 anos que nasceu no Pará, morando com a família, composta pela mãe, Joana, e o pai, Alfredo, em Santarém. O irmão, Yan, morreu durante uma aula de natação e desde então mais morreu na família. O trauma que perpetuou a garota, a sensação de ter alguém que ela amava tirado dela, o enfrentamento com a morte, já arrancou um pedaço da garotinha. Mas também tirou algo da mãe, Joana, que nunca se recuperou totalmente da perda do filho mais novo, enquanto o pai, Alfredo, mascarou os sentimentos porque simplesmente não tinha como enfrentar algo tão duro assim.
A família morava em uma casa pequena na qual o pai tinha uma venda. A vida era difícil, mas depois da morte do pequeno, Joana convence o marido a se mudarem para a capital do Amazonas porque lá havia empreso na Zona Franca, havia abundancia, havia sonhos que eles tinham perdido. Alfredo, um idealista por natureza, sonhava em ser alguém provocador de alguma mudança ao redor dele – qual mudança não importava, mas havia essa vontade, essa vontade de se importar com o próximo.
Esse afastamento, não é algo ruim. Me auxilia a conduzir as situações como elas são, lidar com o que é possível. O descontrole me faria falhar. Algumas vezes você faz tudo que está ao alcance e mesmo assim a morte acontece. Ela é uma certeza que me conforta. Não a persigo, mas somos antigas companheiras. Fui acusada de assassina com nove anos, vez ou outra me acuso para não perder o hábito. Faço o papel de Joana em minha mente, ela está sempre comigo, feito um fantasma, me olhando crítica. Ainda tem uma parte de meu corpo que está aprisionado. Não entendo que um pedaço meu ficou na ocupação, mas não sou feita dele somente. O calendário avançou, hoje sou adulta, veterinária, moro sozinha, não me falta o alimento. E esses fatos nem sempre soam tão reais assim. No fundo me sinto atuando, pois acredito ainda ser a Sol criança, na poeira. Me questiono se todos os adultos atuam e na verdade nunca saíram da infância em seus gestos e vazios.
Ao se mudarem para a capital do Amazonas, a vida continua se movendo de uma forma bastante difícil e a família de 3 se vê morando na invasão Mundo Novo. E é lá que Alfredo sente todos seus impulsos de se tornar um líder comunitário crescerem dentro dele, mesmo que toma algumas atitudes erradas. O lugar, carente de todas as coisas mais básicas, precisa de pessoas que se importem, e é assim que a trama mistura parte ficção com fatos, já como a pessoa da Irmã Eliana representa a ajuda que muitas pessoas recebem e poucas se propõe a oferecerem. É uma vida árdua que nos faz pensar exatamente a quantidade de privilégios que temos ao nosso redor e sequer temos consciência.
Mas apesar de ter falado sobre a trajetória da família até a chegada em Manaus e sobre as malezas do nosso mundo, a coluna real do livro é o relacionamento entre Sol e Joana, que sequer é chamada mais de mãe pela mulher. A forma como todos parecem não verem o sofrimento da garota e o trauma pelo qual ela passa ao ver o irmão morto por ela ser uma criança é algo que muitos vão compreender. A falta de atenção com as crianças por acreditarem que elas não compreendem coisas “de adulto” é algo que perturba e causadora de traumas que se perpetuam por toda a vida.
Deixei de ser criança para ser uma falha.
Por mais estranha que eu pareça, posso tranquilamente dizer que a adulta que me tornei seria a pessoa de segurança que minha versão criança precisava ter por perto quando meu irmão morreu. Não tive ninguém ao meu lado, ninguém para conversar sobre o que era ver um garotinho morto. Não tive uma voz adulta ficando de joelhos e olhando nos meus olhos para anunciar que a culpa não era minha. Hoje brota uma felicidade no peito quando em raros momentos me orgulho de mim se ninguém tá olhando.
A indisponibilidade emocional de uma mãe enlutada, um pai que se recusa a deixar o luto sair do corpo e uma garota traumatizada em meio a um cenário de pobreza extrema pode parecer uma narrativa severa demais, mas a poesia que marca esta narrativa a torna quase delicada, mas de um jeito cru, de uma forma que a cada momento que vamos entrando mais na vida da Sol adulta, vamos entendemos tudo que ela ainda passa pela vida e a forma como seu relacionamento com sua mãe foi realmente destruído.
A degola aqui não é somente para as pessoas e para animais, mas para também relacionamentos que são arrancados em parte de um corpo. “Degola” me levou a lágrimas em sua parte final por causada aquela dor da realização de que as dores não são fatores de crescimento e sim de traumas e que precisávamos aprender a enfrentá-los, mesmo que doam sem parar, como uma grande cicatriz que nos impeça de respirar, todos os dias de nossas vidas.
Para comprar “Degola”, basta clicar no nome da livraria:
